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Atuação da APS em tempos de crise: uma análise da discricionariedade dos profissionais de saúde na pandemia da COVID-19

Resumo

Crises são eventos excepcionais que alteram os arranjos estruturais sob os quais a burocracia de nível de rua (BNR) atua normalmente, gerando insuficiência de recursos, suspensão de regras e de rotinas, e alteração das práticas de trabalho. Essas características ressaltam a importância do espaço de discricionariedade, uma vez que decisões rápidas precisam ser tomadas em um contexto atravessado pela imprevisibilidade. Neste artigo, analisamos o impacto da pandemia de COVID-19 no Brasil na discricionariedade dos profissionais de saúde da atenção primária à saúde (APS). Portanto, o objetivo do artigo é entender quais fatores impactaram a discricionariedade dos BNRs da APS, examinando aspectos organizacionais, emocionais e científicos. Para isso, analisamos os dados de um questionário, com respostas abertas e fechadas, com 1218 profissionais que atuavam na APS em março de 2021. Os resultados mostram que, diferente do esperado, a discricionariedade dos BNRs não se transforma em uma panaceia pela crise. Uma grande parcela dos profissionais seguiu operando dentro das regras, o que demonstrou a tendência dos BNRs de buscar respaldo para sua atuação, seja por melhores condições organizacionais, pela redução de incerteza ou por amparo na ciência.

Palavras-chave:
Profissionais de saúde; Atenção Primária à Saúde; Burocracia de nível de rua; Discricionariedade; COVID-19

Abstract

Crises are exceptional events that alter the structural arrangements under which street-level bureaucrats (SLBs) normally operate, generating resource shortages, the suspension of rules and routines, and changes in work practices. These characteristics highlight the importance of room for discretion, since quick decisions need to be made in a context pervaded by unpredictability. This study analyzed the impact of the COVID-19 pandemic in Brazil on the discretion of primary health care workers, seeking to understand which factors influence the exercise of discretion, focusing on organizational, emotional and scientific aspects. We used data from an online survey comprising open- and closed-ended questions conducted in March 2021 with 1218 primary care workers. The results show that, unexpectedly, discretion of SLBs does not become a panacea for the crisis. A large portion of professionals continued to operate within the rules, demonstrating a tendency to seek support at work, either through better organizational conditions, the reduction of uncertainty or from science.

Key words:
Health workers; Primary Health Care; Street-level bureaucracy; Discretion; COVID-19

Introdução

Desde dezembro de 2019, o mundo tem enfrentado uma crise sanitária de grandes proporções gerada pela pandemia da COVID-19. Essa crise tem tido consequências políticas, sociais e epidemiológicas. No caso brasileiro, essas consequências foram sentidas com o avanço vertiginoso de casos de COVID-19, impulsionado por um dos piores manejos da emergência sanitária no mundo, que logo tornou o país um dos epicentros da pandemia11 Ferigato S, Fernandez M, Amorim M, Ambrogi I, Fernandes LMM, Pacheco R. The Brazilian Government's mistakes in responding to the COVID-19 pandemic. Lancet 2020; 396(10263):1636.. Se, por um lado, fatores estruturais do país como persistentes desigualdades sociais e regionais impactam negativamente o manejo da crise22 Freitas CM, Pereira AMM, Machado CV. A resposta do Brasil à pandemia de COVID-19 em um contexto de crise e desigualdades. In: Machado CV, Pereira AMM, Freitas CM, editores. Políticas e sistemas de saúde em tempos de pandemia: nove países, muitas lições. Rio de Janeiro: Observatório COVID-19 Fiocruz, Editora Fiocruz; 2022., por outro, a estrutura federativa e descentralizada e a existência de um sistema de saúde público universal estruturado e focado em atender mais de 70% da população33 Castro MC, Massuda A, Almeida G, Menezes-Filho NA, Andrade MV, Noronha KVMS, Rocha R, Macinko J, Hone T, Tasca R, Giovanella L, Malik AM, Werneck H, Fachini LA, Atun R. Brazil's unified health system: the first 30 years and prospects for the future. Lancet 2019; 394(10195):345-356. evidenciaram que a coordenação da crise e a resposta à pandemia ficou aquém do esperado11 Ferigato S, Fernandez M, Amorim M, Ambrogi I, Fernandes LMM, Pacheco R. The Brazilian Government's mistakes in responding to the COVID-19 pandemic. Lancet 2020; 396(10263):1636.,44 Abrucio FL, Grin EJ, Franzese C, Segatto CI, Couto CG. Combate à COVID-19 sob o federalismo bolsonarista: um caso de descoordenação intergovernamental. Rev Adm Publica 2020; 54(4):663-677..

O enfrentamento de uma crise sanitária passa, necessariamente, pela provisão de serviços de saúde e cuidado à população55 Massuda A, Malik AM, Vecina Neto G, Tasca R, Ferreira Junior WC. A resiliência do Sistema Único de Saúde frente à COVID-19. Cad EBAPEBR 2021; 19(Supl.):735-744.,66 Fernandez M, Fernandes LMM, Massuda A. A Atenção Primária à Saúde na pandemia da COVID-19: uma análise dos planos de resposta à crise sanitária no Brasil. Rev Bras Med Fam Comunidade 2022; 17(44):3336.. A resposta dos sistemas de saúde durante a crise da COVID-19 decorre, entre outros fatores, da forma como as políticas públicas são implementadas nesse contexto e da atuação dos implementadores de políticas de saúde, ou burocratas de nível de rua (BNR)77 Lipsky M. Street-Level Bureaucracy: Dilemmas of the Individual in Public Services Expanded Edition. New York: Russell Sage Foundation; 2010.. A linha de frente que atua no enfrentamento à emergência sanitária, também chamada de frontline workers, compõe um tipo específico de burocracia no serviço público88 Fernandez M, Lotta G. How community health workers are facing COVID-19 pandemic in Brazil: personal feelings, access to resources and working process. Arch Fam Med Gen Pract 2020; 5:115-122.

9 Fernandez M, Lotta G, Passos H, Cavalcanti P, Corrêa MG. Condições de trabalho e percepções de profissionais de enfermagem que atuam no enfrentamento à COVID-19 no Brasil. Saude Soc 2021; 30(4):e201011.
-1010 Fernandez M, Lotta G, Oliveira GSS. Por Trás da Máscara: Percepções dos Médicos que Atuam na Linha de Frente da Pandemia de COVID-19 no Estado de São Paulo [Internet]. IEPS; 2020 [acessado 2023 mar 10]. Disponível em: https://www.ufrgs.br/redecovid19humanidades/index.php/br/por-tras-da-mascara-percepcoes-dos-medicos-que-atuam-na-linha-de-frente-da-pandemia-de-covid-19-no-estado-de-sao-paulo.
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No campo das políticas públicas, o estudo sobre a atuação dos BNRs e seu impacto nas políticas já é algo consolidado77 Lipsky M. Street-Level Bureaucracy: Dilemmas of the Individual in Public Services Expanded Edition. New York: Russell Sage Foundation; 2010.. Esses profissionais são identificados por sua interação direta com o público, como no caso de assistentes sociais, enfermeiros, agentes comunitários, médicos, entre outros. Esses trabalhadores desempenham um papel crucial na implementação de políticas e têm poder de decisão significativo em suas interações com os cidadãos77 Lipsky M. Street-Level Bureaucracy: Dilemmas of the Individual in Public Services Expanded Edition. New York: Russell Sage Foundation; 2010..

Uma das características centrais que a literatura sobre BNR ressalta no estudo sobre sua atuação é a discricionariedade1111 Fernandez M, Cordeiro Guimarães N. Caminhos teórico-metodológicos para a análise da burocracia de nível de rua. Rev Bras Cien Pol 2020; 32:283-322.. A discricionariedade é o espaço que o profissional possui para atuar de acordo com o demandado em certas situações1212 Lotta G, Santiago A. Autonomia e discricionariedade: matizando conceitos-chave para o estado de burocracia. BIB 2017; 83:21-42. e a forma como toma decisões neste espaço que possui1212 Lotta G, Santiago A. Autonomia e discricionariedade: matizando conceitos-chave para o estado de burocracia. BIB 2017; 83:21-42. . A discricionariedade é, portanto, um mecanismo adaptativo derivado do conhecimento, das habilidades e da proximidade que os BNRs têm com relação às tarefas essenciais desempenhadas na implementação de uma determinada política1313 Elmore R. Backward mapping: implementation research and policy decisions. Polit Sci Quarterly 1979; 94(4):601-616.. No dia a dia de suas atividades, os BNRs são impelidos a tomar decisões concernentes ao seu campo de atuação, exercendo seu entendimento sobre normas e regras77 Lipsky M. Street-Level Bureaucracy: Dilemmas of the Individual in Public Services Expanded Edition. New York: Russell Sage Foundation; 2010.. Assim, na prática, graças à discricionariedade, os BNR atuam como gatekeepers, definindo quem ganha o quê1414 Van Oorschot W. Making the difference in social Europe: deservingness perceptions among citizens of European welfare states. J Eur Soc Policy 2006; 16(1):23-42..

Desse modo, o exercício da discricionariedade pelos BNRs não se traduz em descumprimento de regras, regulamentos e diretrizes superiores ou de normas e práticas de seu grupo ocupacional1010 Fernandez M, Lotta G, Oliveira GSS. Por Trás da Máscara: Percepções dos Médicos que Atuam na Linha de Frente da Pandemia de COVID-19 no Estado de São Paulo [Internet]. IEPS; 2020 [acessado 2023 mar 10]. Disponível em: https://www.ufrgs.br/redecovid19humanidades/index.php/br/por-tras-da-mascara-percepcoes-dos-medicos-que-atuam-na-linha-de-frente-da-pandemia-de-covid-19-no-estado-de-sao-paulo.
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, mas sim no seu entendimento sobre estas normas e sua aplicação na realidade, dado o contexto em que estão inseridos. No entanto, o grau de controle e limitação das ações discricionárias dos trabalhadores de linha de frente deve ser analisado quando houver expectativas de que isso repercuta nos resultados esperados das políticas públicas1515 Meyers MK, Vorsanger S. Burocratas de nível de rua e a implementação de políticas públicas. In: Peters G, Pierre J, organizadores. Administração pública: coletânea. São Paulo, Brasília: Unesp/Enap; 2010..

Em contextos de crise, o exercício da discricionariedade ganha relevância em virtude da complexidade e ineditismo da situação1616 Brodkin EZ. Street-level organizations at the front lines of crises. J Compar Policy Analysis 2021; 23(1):16-29.. As crises são eventos importantes que apresentam situações excepcionais1717 Roux-Dufort C. Is Crisis Management (Only) a Management of Exceptions? J Conting Crisis Manag 2007; 15(2):105-114., que podem ser provocadas por desastres e emergências, como é o caso da pandemia da COVID-19. Esses contextos de crise revelam discussões importantes sobre circunstâncias estruturais que acabam afetando a atuação da burocracia de nível de rua1616 Brodkin EZ. Street-level organizations at the front lines of crises. J Compar Policy Analysis 2021; 23(1):16-29..

É esperado, em contextos de crise, que os BNRs cumpram suas funções independente da magnitude do desastre ou emergência enfrentado1818 Adams TM, Anderson L. Policing in natural disasters: stress, resilience, and the challenges of emergency management. Philadelphia: Temple University Press; 2019.. No entanto, sabe-se que quando choques exógenos incidem sobre as estruturas, gera-se uma mudança no funcionamento das organizações que tem como papel responder à crise e, portanto, aparecem alterações nas condições e formas de atuação desses profissionais1616 Brodkin EZ. Street-level organizations at the front lines of crises. J Compar Policy Analysis 2021; 23(1):16-29.. Assim, cenários de “surpresa” produzem mudanças comportamentais que demandam tomadas de decisão em ritmo acelerado1919 Kamkhaji JC, Radaelli CM. Crisis, learning and policy change in the European Union. J Eur Public Policy 2017; 24(5):714-734.. A literatura afirma que durante as crises há um aumento do espaço de discricionariedade, dada a ausência de regras e experiências prévias2020 Dunlop C, Howe A, Li D, Allen LN. The coronavirus outbreak: the central role of primary care in emergency preparedness and response. BJGP Open 2020; 4(1):bjgpopen20X101041.,2121 Henderson AC. The critical role of street-level bureaucrats in disaster and crisis. In Schwester R, organizador. Handbook of critical incident analysis. New York & Oxon: Routledge; 2014., o que pode se transformar em maior liberdade de ação para os profissionais2020 Dunlop C, Howe A, Li D, Allen LN. The coronavirus outbreak: the central role of primary care in emergency preparedness and response. BJGP Open 2020; 4(1):bjgpopen20X101041.. Assim, a excepcionalidade de momentos de crise pode impactar diretamente a atuação e velocidade de resposta dos BNRs1919 Kamkhaji JC, Radaelli CM. Crisis, learning and policy change in the European Union. J Eur Public Policy 2017; 24(5):714-734., além de propiciar mudanças de nível institucional e organizacional, diretamente ligadas às condições e formas de atuação1616 Brodkin EZ. Street-level organizations at the front lines of crises. J Compar Policy Analysis 2021; 23(1):16-29..

Em momentos de crise, a implementação de políticas públicas é impactada, e os BNRs passam a atuar de maneira mais incisiva no processo de redesenho e adaptação das políticas1616 Brodkin EZ. Street-level organizations at the front lines of crises. J Compar Policy Analysis 2021; 23(1):16-29.. Nesse sentido, a análise da atuação dos BNRs na pandemia da COVID-19 se torna ainda mais importante. Embora a literatura recente tenha dado muita atenção para como os trabalhadores da linha de frente atuaram durante a crise, e sob quais condições, há poucos estudos que analisam como a crise impactou a forma como estes profissionais tomam decisões. Assim, articular a literatura sobre a discricionariedade dos BNRs para entender o impacto da crise no processo de tomada de decisão dos profissionais da linha de frente da saúde pode trazer contribuições importantes para o campo da saúde pública, especialmente em momentos extremos.

A discricionariedade burocrática é tema recorrente em estudos da área, mas ainda há poucas informações sobre como essa burocracia, no caso brasileiro, lida com seu poder de decisão em contextos de crise. A magnitude da emergência sanitária da COVID-19, seus impactos aos trabalhadores da linha de frente e às políticas de saúde no Brasil evidenciam a importância da melhor compreensão da atuação dos burocratas em tais contextos. Por essa razão, propusemo-nos a entender como se dá a atuação discricionária dos BNRs em contexto de crise, investigando quais fatores impactam a propensão dos profissionais da linha de frente a passarem por cima de regras durante a crise. O presente artigo busca entender as ações individuais dos BNRs, trabalhadores da linha de frente da atenção primária à saúde (APS), analisando os fatores que poderiam estar vinculados à decisão de atuar de forma discricionária em contexto de crise, isto é, como a crise é interpretada como uma justificativa suficiente para o burocrata transgredir regras e quais fatores influenciam nesse ato de exercício extremo da discricionariedade.

Metodologia

Coleta dos dados

O presente estudo tem caráter descritivo. Para sua realização utilizamos dados coletados por meio de questionário on-line com perguntas abertas, fechadas e de múltipla resposta. A pesquisa foi realizada entre os dias 1 e 20 de março de 2021 utilizando uma amostra por conveniência (não-probabilística) de indivíduos que se voluntariaram para responder, anonimamente, após recrutamento via e-mail e em redes sociais (Twitter, Facebook, LinkedIn, WhatsApp) e a partir de grupos de representantes de profissionais de saúde. Surveys on-line vêm sendo utilizados por estudos similares que buscam investigar as condições dos profissionais de saúde no combate à COVID-192222 Felice C, Di Tanna GL, Zanus G, Grossi U. Impact of COVID-19 outbreak on healthcare workers in Italy: results from a national e-survey. J Community Health 2020; 45(4):675-683.

23 Lai J, Ma S, Wang Y, Cai Z, Hu J, Wei N, Wu J, Du H, Chen T, Li R, Tan H, Kang L, Yao L, Huang M, Wang H, Wang G, Liu Z, Hu S. Factors associated with mental health outcomes among health care workers exposed to coronavirus disease 2019. JAMA Netw Open 2020; 3(3):e203976.
-2424 Nogueira ML, Borges CF, Lacerda A, Fonseca AF, Vellasques AP, Morel CMM, Valsechi DF, Monteiro FF, Silva LB, Morosini MV, Barbosa MIS, Souza Junior PRB, Rego SEM, Pessoa V. Boletim da pesquisa: Monitoramento da saúde dos ACS em tempos de COVID-19. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2020. e no contexto de emergências sanitárias passadas2525 Khalid I, Khalid TJ, Qabajah MR, Barnard AG, Qushmaq IA. Healthcare workers emotions, perceived stressors and coping strategies during a MERS-CoV outbreak. Clin Med Res 2016; 14(1):7-14.,2626 Lin Y, Huang L, Nie S, Liu Z, Yu H, Yan W, Xu Y. Knowledge, attitudes and practices (KAP) related to the pandemic (H1N1) 2009 among Chinese general population: a telephone survey. BMC Infect Dis 2011; 11:1-9.. Considerando as dificuldades de pesquisa impostas pela pandemia e o contexto de urgência, esse tipo de pesquisa permite maior aceitabilidade do uso da amostra por conveniência2727 Bryman A. Social research methods. Oxford: Oxford University Press; 2016., pois preenche uma lacuna de falta de informações sintéticas e descritivas sobre a realidade desses profissionais da linha de frente. No entanto, por ser uma amostra não-probabilística, a pesquisa apresenta limitações na medida em que não podem ser generalizados a todos os profissionais da linha de frente da saúde os resultados aqui apresentados.

O questionário contou com 1.829 respostas. Foram analisados os dados relativos aos profissionais que atuam na Atenção Primária à Saúde (APS) (n=1218). Esse recorte leva em consideração a importância da APS no enfrentamento de crises sanitárias e, ao mesmo tempo, a ausência de diretrizes e consequente subutilização desse nível de atenção à saúde durante a emergência da COVID-1911 Ferigato S, Fernandez M, Amorim M, Ambrogi I, Fernandes LMM, Pacheco R. The Brazilian Government's mistakes in responding to the COVID-19 pandemic. Lancet 2020; 396(10263):1636.,66 Fernandez M, Fernandes LMM, Massuda A. A Atenção Primária à Saúde na pandemia da COVID-19: uma análise dos planos de resposta à crise sanitária no Brasil. Rev Bras Med Fam Comunidade 2022; 17(44):3336.. Foram identificadas respostas de profissionais de todas as unidades federativas, com diferentes profissões e tempos de serviço. A amostra é composta, principalmente, de Agente Comunitário de Saúde (ACS) e Agente de Combate às Endemias (ACE), que representam 78% dos respondentes (945 indivíduos). O segundo grupo é composto de Outros profissionais, que somam 123 respondentes (10%), seguidos de 106 enfermeiros (9%), e 44 médicos (4%). A maior parte dos respondentes é da região Nordeste (56%), seguidos daqueles oriundos da região Sudeste (19%) e Sul (12%). As regiões Norte e Centro-Oeste têm um total de 6% dos respondentes cada. De acordo com os dados de perfil dos respondentes, entre os 1.218 profissionais de saúde da nossa amostra, há 935 mulheres (76,77%). As pessoas pardas representam a maioria, 51,1%, e a maioria dos BNR da amostra atua na área há mais de 20 anos. A média de idade dos profissionais é de 44 anos.

Análise dos dados

A partir do suposto teórico de que a crise altera a forma como esses trabalhadores da linha de frente tomam suas decisões1616 Brodkin EZ. Street-level organizations at the front lines of crises. J Compar Policy Analysis 2021; 23(1):16-29., a dimensão analítica central da nossa análise é a discricionariedade dos BNRs. Tratamos de observar, por meio da descrição das frequências dos dados, como se dá a atuação discricionária dos profissionais da linha de frente na pandemia da COVID-19 em duas dimensões: a propensão à alteração de regras para benefício dos usuários e a propensão à alteração de regras para benefício do trabalho. As observações foram, então, agrupadas em três grupos: propensos à alteração de regras, não propensos à alteração de regras e indiferentes.

Além disso, analisamos, de forma qualitativa, a discricionariedade dos BNRs a partir de três variáveis explicativas: a questão organizacional, a questão emocional e a questão científica. A primeira faz referência às condições organizacionais com as quais os BNRs contaram para atuar durante a crise. A questão seguinte trata das condições emocionais que os BNRs vivenciaram, especialmente relativo ao impacto do medo em seu trabalho. E a terceira questão indica como os BNRs enxergam temas científicos.

Para a realização da análise, fizemos a leitura e categorização do material dos respondentes que afirmaram ser muito provável ou provável atuar de forma descricionária na pandemia. A análise qualitativa foi realizada tomando como base a análise temática2828 Minayo MCS. O Desafio do conhecimento, pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, ABRASCO; 1992., por meio da estratificação e agrupamento das categorias acima elencadas. São apresentadas as falas dos respondentes às perguntas abertas do questionário, identificados pela letra R (respondente) e pelo número de identificação na base de dados da pesquisa. As questões abertas mapeadas representam a percepção dos atores que estavam propensos a mudar as regras, em prol do processo de trabalho ou do usuário (Quadro 1).

Quadro 1
Temas e perguntas utilizadas no questionário com profissionais de saúde.

Em todas as etapas da pesquisa foram cumpridas as recomendações éticas para pesquisas envolvendo seres humanos (Resolução nº 466/2012, Resolução nº 510/2016 e Resolução nº 580/2018). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa.

Resultados

Discricionariedade burocrática

Buscamos entender a discricionariedade dos BNRs da amostra agrupando as observações em três grupos: os propensos a alterar as regras, isto é, aqueles que apontaram ser provável ou muito provável; os não propensos, aqueles que apontaram ser muito improvável ou improvável alterar as regras; e os indiferentes, aqueles que responderam ser nem provável, nem improvável (Tabela 1).

Tabela 1
A probabilidade de atuação discricionária durante a crise da COVID-19.

A partir dos dados apresentados, observamos que a atuação discricionária não é hegemônica entre os BNRs. A propensão à alteração de regras, seja para benefício do usuário ou para benefícios no processo de trabalho é relativamente similar: 39,76% dos respondentes apontam ser Improvável ou Muito Improvável alterar regras para o primeiro caso, enquanto 36,04% afirmam ser provável ou muito provável, e 24,20% são indiferentes à questão, isto é, não é nem provável nem improvável que alterem regras. No segundo cenário, que busca compreender a probabilidade de alteração nas regras para favorecimento de processos de trabalho, as respostas também apontam para maior propensão à não alteração (41,66% dos respondentes). Por outro lado, se aproximam aqueles que indicam que teriam probabilidade de alteração (31,29%) e que são indiferentes às alterações (32,32%). 61 respondentes não responderam à questão.

Questão Organizacional

A Questão Organizacional busca identificar como a atuação discricionária poderia ser afetada por condições ligadas à organização do ambiente de trabalho. Os respondentes que afirmam atuar de forma discricionária afirmam que há impacto das condições organizacionais na atuação diária dos BNRs durante a crise da COVID-19.

As jornadas de trabalho exaustivas, como aponta o relato número 3: “falta de apoio aos profissionais de saúde como no hospital que trabalho estou há 4 anos sem férias diante desta pandemia, nem feriados temos mais para descansar, é desumano” (R3), e a falta “de preparo e de EPIs” (R963), demonstram algumas das insatisfações no ambiente de trabalho. O relato 29 reforça a percepção de “falta de capacitação da equipe, a falta de EPIs e a falta de estrutura da UBS” (R29) como problemas centrais no enfrentamento à crise sanitária: “O que mais me marcou foi a época que começaram a entregar os EPI, e pra nós foi dito que nós não precisava usar, e não foi fornecido naquele momento” (R1571).

Aliado ao contexto político, esses fatores agravam os sentimentos de incerteza: “O processo de trabalho, as atribuições. Há necessidade de adaptações diárias tanto ao processo, demandas, locais de trabalho que têm mudado com frequência devido à falta de RH em saúde e diante das mudanças constantes de ordem organizacional e política” (R1554).

A mudança organizacional foi bastante sentida pelos respondentes, a exemplo do Relato 76: “Mudou rotinas, normas e infelizmente muito mais sobrecarga”. Observa-se que as rotinas de trabalho alteradas, e protocolos de atendimento sem muita clareza permeiam a experiência dos atores. O relato 1014 aponta que “logo que teve início a pandemia de COVID-19 [...] a secretaria de saúde nos convocou e queria que fizéssemos visitas nos domicílios, sem nos ter dado nenhum material de proteção. E disse pra nós que nós éramos os soldados de frente. Me senti como se estivesse saindo pra guerra só pra morrer” (R1014). O sentimento de falta de estrutura e preparo pode ser sintetizado a partir da falta de “estrutura de trabalho que dê segurança” (R1431).

Essas alterações nas rotinas também se estendem ao esgotamento ligado às demandas dos usuários: “Não entramos mais nas residências, a demanda do uso do celular para resolver problemas dos pacientes aumentou. É cansativo sempre está repetindo o mesmo discurso de cuidado, porém a população zomba da sua cara. Sem falar das cobranças acerca das angústias pessoais dos pacientes” (R161).

As respostas sugerem, portanto, que há uma propensão a passar por cima das regras em condições adversas, isto é, quando o profissional se sente despreparado, quando não recebe treinamento ou quando não se sente apoiado por seus superiores.

Dimensão Emocional: o impacto do medo

A Questão Emocional busca identificar como a atuação descricionária poderia ser afetada pelo medo na hora de atuar na pandemia. O aumento do número de casos e mortes também é uma preocupação recorrente entre os respondentes dispostos a passar por cima das regras. Esses se sentem ainda mais impactados pela forma como percebiam o descaso popular com os impactos da COVID-19. Segundo o respondente 352, por exemplo, uma das coisas que mais contribui para sua sensação de medo é “o fato de estar lidando diretamente com pessoas que não se importam nem com eles mesmo, imagina com os outros” (R352). A impotência diante do desconhecido é também um fator relevante nesse cenário: “A sensação de se estar indefeso, por mais que se tome ações pessoais de prevenção” (R419). O relato 729 sintetiza esse quadro: “Por ser um vírus novo, seus efeitos sobre a saúde não estão completamente elucidados. Além disso, o despreparo do governo federal para lidar com a crise contribui para essa insegurança”. Entre os respondentes que apontam ser provável ou muito provável atuar de forma discricionárias, o medo parece estar relacionado às incertezas sobre as consequências da doença, sobre as formas de tratamento adequada e sobre os números da pandemia: “Pouco conhecimento de tudo que vem acontecendo, tudo muito novo não se sabe ao certo de nada” (R919).

A relação entre o aumento da insegurança e as ações pouco claras do governo federal é um fator comum nos relatos dos respondentes que estão dispostos a burlar as regras, como quando apontam “as inconsistências e desinformações do governo federal no enfrentamento da pandemia” (R90) e “a falta de organização dos governantes para lidar com a doença” (R712). Esses efeitos também parecem se desdobrar na percepção sobre a falta de recursos no sistema de saúde para abarcar toda a população, o que é sempre apontado como “falta de insumos, leitos e profissionais” (R695), ou ainda que “é uma doença ainda pouco conhecida, temos pouco recursos, equipes sobrecarregadas, governo que prejudica o combate à pandemia. E uma população que cada vez mais segue menos as orientações de cuidado” (R978).

Apesar desses fatores, a motivação para o trabalho é também identificada nos relatos. Muitos também mencionaram a importância da família e da equipe ao lidar com a crise. Para o respondente 1279, “minha fé e minha família” (R1279) são apontados como o motivo para se sentir preparado e motivado para atuar. O desejo de ajudar a população, fé em Deus, a vacinação e a apreensão dos protocolos fitossanitários e a experiência pregressa também são fatores citados pelos respondentes propensos a passar por cima das regras. Nesse sentido, o respondente 892 afirma: “sou um profissional de linha de frente, e além das pandemias podemos ter a qualquer momento uma epidemia de dengue em nossa região, então temos que lutar contra todo esse mal” (R892).

Questão Científica

A Questão científica busca identificar como a atuação descricionária poderia estar vinculada a percepções dos respondentes acerca de temas científicos, em especial o preparo técnico e conhecimento de que são dotados. Foi observada uma carência notada sobre informações e preparo, “a falta de informação real sobre a doença” (R1387). O “real” apontado parece emergir da falta de confiabilidade em informações divulgadas sobre a doença e falta de conhecimento sobre a temática: “Incertezas sobre o vírus e as formas de contaminação, tratamento, eficácia de vacina. Certezas que mudam todos os dias” (R429).

Os dados apresentados descrevem as percepções dos respondentes acerca de três temas específicos: tratamentos não convencionais, medicamentos utilizados para outros tratamentos e vacinação. Nos dois primeiros temas, tipo de tratamento dado ao paciente e no uso de medicamentos sem comprovação científica, mostra-se uma tendência de delegar a escolha para o paciente entre quem está mais propenso a passar por cima das regras.

Com relação à vacinação, os relatos apontam a vacina como uma esperança para o contexto complexo que viviam os BNRs. O relato 118 traz uma visão sobre o que espera do futuro: “Será cheio de esperança para as pessoas já vacinadas e angústia por àquelas que desejam ser logo vacinadas e não podem porque não tem vacina suficiente” (R118).

Sobre o uso de tratamentos, observa-se uma mudança no contato com os usuários: “Muitos chegam exigindo tratamento precoce” (R1724) e há um “aumento da irritabilidade com usuários defensores de tratamentos sabidamente ineficazes” (R101). A respondente 349 complementa sua percepção sobre o tema: “Muito estresse, falta de apoio, sem respaldo, indignação pela falta de atenção e esclarecimentos devidos sobre os métodos [de tratamento] e passos da vacinação da população” (R349). A defesa de tratamento precoce não se restringe aos usuários, de acordo com o relato 1421: “Há, dentro da classe médica, uma ala favorável ao tratamento precoce sabidamente ineficaz. Sofri agressão verbal por discordar disso, inclusive por parte de médico [...] Minha postura é pró-ciência e esses ataques não param” (R1421).

Discussão

Os BNRs atuam inseridos numa estrutura institucional e programática. Eles também têm a possibilidade de implementar as políticas públicas de forma própria, uma vez que há uma série de brechas nessas estruturas que possibilitam a atuação desses profissionais com substancial grau de discricionariedade1111 Fernandez M, Cordeiro Guimarães N. Caminhos teórico-metodológicos para a análise da burocracia de nível de rua. Rev Bras Cien Pol 2020; 32:283-322.. Nesse sentido, é durante a implementação de uma política que os BNRs tomam decisões que determinam a forma como, de fato, a política será entregue à população. É a este espaço de atuação que se denomina a discricionariedade - o exercício diário de tomada de decisão para viabilizar a entrega de políticas públicas. Maynard-Moody e Musheno2929 Maynard-Moody S, Musheno M. State agent or citizen agent: two narratives of discretion. J Public Administ Res Theory 2000; 10(2):329-358.

30 Maynard-Moody S, Musheno M. Social equities and inequities in practice: street-level workers as agents and pragmatists. Public Administ Rev 2012; 72(1):16-23.
-3131 Maynard-Moody S, Musheno M. Playing the rules: discretion in social and policy context. In: Hupe P, Hill M, Buffat A, organizadores. Understanding street-level bureaucracy. Chicago: Policy Press; 2015. propõem olhar para a discricionariedade como uma manifestação da autonomia dos burocratas, uma vez que suas decisões são baseadas em questões que vão além das regras e normas. Nesse sentido, a autonomia seria uma dimensão intrínseca à ação humana, que se manifesta nas estruturas sociais e possui caráter interacional. Ela seria, portanto, uma habilidade de fazer julgamentos e agir a partir deles diante das situações.

A pandemia da COVID-19 gerou um contexto marcado por falta das regras, incompatibilidade das regras existentes com a realidade e a diminuição do controle sobre a atuação dos profissionais da linha de frente2020 Dunlop C, Howe A, Li D, Allen LN. The coronavirus outbreak: the central role of primary care in emergency preparedness and response. BJGP Open 2020; 4(1):bjgpopen20X101041.,3232 Davidovitz M, Cohen N, Gofen A. Governmental Response to Crises and Its Implications for Street-Level Implementation: Policy Ambiguity, Risk, and Discretion during the COVID-19 Pandemic. J Compar Policy Analysis Res Pract 2021; 23(1):120-130.. Essas questões podem incidir sobre o aumento da discricionariedade dos BNRs, materializando-se na ampliação da margem de ação e de decisões durante a implementação e na maior flexibilização das políticas3232 Davidovitz M, Cohen N, Gofen A. Governmental Response to Crises and Its Implications for Street-Level Implementation: Policy Ambiguity, Risk, and Discretion during the COVID-19 Pandemic. J Compar Policy Analysis Res Pract 2021; 23(1):120-130.,3333 Collins ME, Augsberger A. Impacts of policy changes on Care-Leaving Workers in a time of coronavirus: Comparative analysis of discretion and constraints. J Compar Policy Analysis Res Pract 2020; 23(1):51-62.. No entanto, como alguns estudos mostraram, o aumento da possibilidade de discricionariedade não necessariamente se transforma em ações concretas por parte dos burocratas3434 Gofen A, Lotta G. Street-level bureaucrats at the forefront of pandemic response: a comparative perspective. J Compar Policy Analysis Res Pract 2021; 23(1):3-15.,3535 Alcadipani R, Cabral S, Fernandes A, Lotta G. Street-level bureaucrats under COVID-19: Police officers' responses in constrained settings. Admin Theory Praxis 2020; 42(3):394-403.. Isso ocorre porque a ausência de formação, informação e suporte, pode levar à inação3636 Møller MØ. The dilemma between self-protection and service provision under Danish COVID-19 guidelines: a comparison of public servants' experiences in the pandemic frontline. J Compar Policy Analysis Res Pract 2021; 23(1):95-108..

No âmbito da pandemia da COVID-19, o estudo sobre discricionariedade ganhou novos contornos, especialmente com relação aos profissionais de saúde - atores fundamentais no enfrentamento à pandemia, mas que se colocam em posição de risco pela necessidade de interações presenciais. Pesquisas apontaram não haver uma tendência dominante de aumento ou diminuição do espaço de discricionariedade entre os profissionais de saúde que atuam na APS durante a crise. Enquanto enfermeiras puderam adaptar o trabalho e agir com maior autonomia3737 Lotta G, Coelho VSRP, Brage E. How COVID-19 has affected frontline workers in Brazil: a comparative analysis of nurses and community health workers. J Compar Policy Analysis Res Pract 2020; 23(1):63-73.,3838 Lotta G, Nunes J, Fernandez M, Correa M. The impact of the COVID-19 pandemic in the frontline health workforce: Perceptions of vulnerability of Brazil's community health workers. Health Policy Open 2022; 3:100065., agentes comunitários de saúde (ACS), por sua vez, tiveram a percepção de que perderam seu papel enquanto profissionais da saúde3939 Lotta G, Fernandez M, Corrêa M. The vulnerabilities of the Brazilian health workforce during health emergencies: Analysing personal feelings, access to resources and work dynamics during the COVID-19 pandemic. Int J Health Plann Manage 2021; 36(S1):42-57.,4040 Fernandez M, Lotta G, Corrêa M. Desafios para a Atenção Primária à Saúde no Brasil: uma análise do trabalho das agentes comunitárias de saúde durante a pandemia de COVID-19. Trab Educ Saude 2021; 19:e00321153.. O presente estudo confirmou a ausência de uma tendência a atuar de forma discricionária no contexto da emergência sanitária da COVID-19.

Crises são eventos capazes de alterar a forma de atuação (discricionariedade) dos burocratas. Nesses contextos, revelam-se alguns condicionantes que podem incentivar ou frear essa tendência à alteração do comportamento dos BNRs. Como demonstrou a Tabela 1 deste estudo, não há uma tendência muito marcada dos BNRs de se passar por cima das regras durante a atuação na crise. Isto é, a crise, por si só, não determina mais ou menos espaço de discricionariedade, o que vai, portanto, depender de cada situação ou de cada contexto. Por isso, procuramos entender mais do que se há ou não impacto da crise no trabalho dos BNRs, mas quais fatores concorrem para isso. Assim, investigamos o quanto as condições organizacionais, o medo e a bagagem de conhecimento científico dos BNRs influenciavam no seu exercício diário de discricionariedade na pandemia.

De uma maneira geral, os relatos apontam que a segurança para atuar em crise está relacionada com respaldo recebido pelos BNRs, seja organizacional, seja por sentir menos medo, o que gera menos incerteza, ou ainda por gozar de mais conhecimento profissional e científico. Essa segurança para atuar pode restringir, de maneira positiva, o espaço de discricionariedade dos BNRs. Isso demonstra que espaço de discricionariedade não é uma coisa boa ou ruim a priori e está diretamente relacionado ao contexto. Em um momento de crise seria preferível contar com menos espaço de discricionariedade se o que precisava ser feito estivesse expresso de forma clara e incontroversa.

O resultado apresentado mostra que mais importante do que passar ou não passar por cima das regras, por meio de uma atuação discricionária, é a estabilidade do trabalho e o respaldo para a atuação desses profissionais, seja por meio de estrutura organizacional disponível, seja pelo acesso à informação. Assim, a partir dos dados qualitativos apresentados, infere-se que a demanda dos usuários conseguiu ser respondida em virtude da atuação criativa4141 Abers RN, Keck ME. Autoridade prática: ação criativa e mudança institucional na política das águas do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2017. dos BNRs diante das adversidades apresentadas. Dita criatividade foi fundamental tendo em vista a ausência de atuação de diferentes níveis de governo no sentido de determinar diretrizes claras para a entrega adequada de recursos para o correto desenvolvimento das políticas de saúde implementadas11 Ferigato S, Fernandez M, Amorim M, Ambrogi I, Fernandes LMM, Pacheco R. The Brazilian Government's mistakes in responding to the COVID-19 pandemic. Lancet 2020; 396(10263):1636.,44 Abrucio FL, Grin EJ, Franzese C, Segatto CI, Couto CG. Combate à COVID-19 sob o federalismo bolsonarista: um caso de descoordenação intergovernamental. Rev Adm Publica 2020; 54(4):663-677.. Assim, podemos afirmar que a ambiguidade das regulamentações e a falta de apoio dos entes federais reforçou o espaço para a discricionariedade dos BNRs4242 Lotta G, Wenham C, Nunes J, Pimenta DN. Community health workers reveal COVID-19 disaster in Brazil. Lancet 2020; 396(10248):365-366..

A discricionariedade em tempos de crise está intimamente vinculada com a criatividade política. Embora as regras, os papéis institucionais, a trajetória e a cultura situem os atores nos contextos políticos, é a partir da ação humana que se realiza a improvisação e a transformação política4343 Berk G, Galvan DC, Hattam V, editors. Political creativity: reconfiguring institutional order and change. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press; 2013.. As análises sugerem que, em condições adversas, apenas uma proporção pequena dos BNRs aponta que enfrentar ou passar por cima das regras é uma saída para o contexto de crise. Assim, os dados mostram que a criatividade política exacerbada pela crise não gerou, necessariamente, uma contestação das regras e do espaço de ação por parte dos BNRs.

Isso ressalta que é menos importante o espaço de discricionariedade em si, o que aqui analisamos a partir da disposição de se passar por cima das regras, e mais as condições em que esse espaço maior ou menor está inserido. Identificamos com isso que caos organizacional, incerteza e desrespeito a evidências podem causar impacto para atuação dos BNRs que ora vão decidir passar por cima das regras, ora respeitá-las, mas sempre no sentido de garantir segurança a seu trabalho, sem perder de vista o que entendem ser melhor para os usuários.

Assim, procuramos identificar fatores relacionados à atuação discricionária durante a pandemia de COVID-19 entre os profissionais da APS no Brasil. O argumento central do estudo buscou demonstrar que a crise incide na forma de atuação da burocracia, como demonstrado na Figura 1.

Figura 1
A atuação discricionária em tempos de crise.

Conclusão

Como esperado, a pandemia da COVID-19 rompeu o status quo e criou um ambiente que exacerba os elementos críticos dos tempos de normalidade. Ou seja, de fato há aumento de demanda, maior escassez de recursos e necessidade de respostas rápidas que impactam a forma como os burocratas de nível de rua atuam1616 Brodkin EZ. Street-level organizations at the front lines of crises. J Compar Policy Analysis 2021; 23(1):16-29.,2020 Dunlop C, Howe A, Li D, Allen LN. The coronavirus outbreak: the central role of primary care in emergency preparedness and response. BJGP Open 2020; 4(1):bjgpopen20X101041.,3434 Gofen A, Lotta G. Street-level bureaucrats at the forefront of pandemic response: a comparative perspective. J Compar Policy Analysis Res Pract 2021; 23(1):3-15.

35 Alcadipani R, Cabral S, Fernandes A, Lotta G. Street-level bureaucrats under COVID-19: Police officers' responses in constrained settings. Admin Theory Praxis 2020; 42(3):394-403.
-3636 Møller MØ. The dilemma between self-protection and service provision under Danish COVID-19 guidelines: a comparison of public servants' experiences in the pandemic frontline. J Compar Policy Analysis Res Pract 2021; 23(1):95-108.. A crise afetou as práticas de trabalho, as condições laborais e a interação com usuários, com repercussão na entrega dos serviços e na qualidade dessa entrega1616 Brodkin EZ. Street-level organizations at the front lines of crises. J Compar Policy Analysis 2021; 23(1):16-29.,3535 Alcadipani R, Cabral S, Fernandes A, Lotta G. Street-level bureaucrats under COVID-19: Police officers' responses in constrained settings. Admin Theory Praxis 2020; 42(3):394-403..

Nesse sentido, o artigo discutiu sobre a adaptação dos BNRs ao contexto de crise e os fatores que afetam a decisão desses profissionais no contexto da pandemia. Os resultados mostram que, diferente do esperado, a discricionariedade dos BNRs não se transforma em uma panaceia pela crise, voltada a uma atuação criativa e incontrolável. Uma grande parcela dos profissionais da linha de frente segue operando dentro das regras e essas parecem ser ainda uma importante fonte de constrangimento à ação dos profissionais. Isso porque esses profissionais sempre buscam respaldo para atuar, o que ora é dado pelo respeito estrito às regras ou procedimentos, ora às suas revelias. No entanto, o artigo aponta que mais importante que passar ou não passar por cima das regras é a estabilidade do trabalho e o respaldo para a atuação desses profissionais em momentos de crise.

É ainda escassa a literatura que discute como BNRs operam em contextos caracterizados por aumento exponencial de tensão, pela falta de recursos e por outras questões geradas pelos cenários fora da normalidade, como acontece nas emergências sanitárias3535 Alcadipani R, Cabral S, Fernandes A, Lotta G. Street-level bureaucrats under COVID-19: Police officers' responses in constrained settings. Admin Theory Praxis 2020; 42(3):394-403.. Nesse sentido, futuras pesquisas devem explorar melhor os achados deste estudo buscando compreender que fatores explicam a manutenção do exercício da discricionariedade dentro das regras mesmo em contextos de crise.

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Editores-chefes:

Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2023

Histórico

  • Recebido
    14 Jun 2023
  • Aceito
    14 Ago 2023
  • Publicado
    16 Ago 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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