Acessibilidade / Reportar erro

Manutenção dos serviços de média e alta complexidade em contexto de alta transição de usuários: um estudo ecológico de séries temporais no Estado do Rio de Janeiro, Brasil

Resumo

O estudo explora as históricas disparidades regionais na distribuição da rede de média e alta complexidade e os limites impostos para a o remanejamento dos tetos de financiamento entre o município do Rio de Janeiro e municípios limítrofes da Região Metropolitana 1. Foi realizado um estudo ecológico com dados referentes à cidade do Rio de Janeiro, escolhido por ter uma grande rede de assistência e limites com territórios vulneráveis e carentes de serviços de saúde, caracterizando um lócus representativo das situações enfrentadas em todo o país. Foi observado um decréscimo dos valores brutos das cotas programadas em todos os municípios do Rio de Janeiro a partir de 2016. A tendência temporal das cotas programadas se manteve estacionária para todos os municípios da Região Metropolitana 1, mesmo com aumentos significativos nas cotas para municípios limítrofes. A resultante sobrecarga no aporte local de recursos impede o aumento da capacidade para antecipar flutuações de demanda, tanto conhecidas quanto inesperadas, comprometendo a responsividade do sistema de saúde no que respeita seu funcionamento regular, bem como a capacidade de ajuste para lidar com eventos extraordinários, características essenciais da resiliência.

Palavras-chave:
Financiamento dos sistemas de saúde; Gestão em saúde; Política de saúde; Políticas; Planejamento e administração em saúde

Abstract

The study addresses the historical disparities in the distribution of the medium- and high-complexity health network and the limits to budget adjustments between the municipality of Rio de Janeiro and its neighboring municipalities of the Metropolitan region 1. An ecological study was conducted with data related to the municipality of Rio de Janeiro, chosen because it has a large assistance network, while located on the borders of vulnerable and underprivileged areas, characterizing a locus that is representative of the situations faced throughout the country. A decrease in the gross values of the programmed quotas in all municipalities of Rio de Janeiro was observed from 2016 onwards. The temporal trend of the programmed quotas remained stable for all municipalities in the Metropolitan Region 1, even with significant increases in the accomplished quotas for neighboring municipalities. The resulting overload in local expenditure prevents the increase of capacity to anticipate fluctuations in demand, both known and unexpected ones, compromising the responsiveness of the health system regarding its regular operation, as well as the ability to adjust to cope with extraordinary events, essential characteristics of resilience.

Key words:
Health system financing; Health management; Health policy; Planning and management

Introdução

A regionalização e a descentralização fiscal e administrativa do Sistema Único de Saúde (SUS) visa permitir que os governos locais tenham melhores condições de identificar necessidades específicas. Embora o financiamento do SUS seja tripartite, com atribuições das esferas federal, estadual e municipal de governo, cada ente federado tem autonomia decisória na aplicação dos recursos e na implementação de programas11 Silva SF, Souza NM, Barreto JOM. Fronteiras da autonomia da gestão local de saúde: inovação, criatividade e tomada de decisão informada por evidências. Cien Saude Colet 2014; 19(11):4427-4438.. Esa descentralização tornou a esfera municipal protagonista na gestão da rede assistencial, dando a seus gestores o papel de atender às peculiaridades de cada região. Dessa forma, para que haja garantia do acesso em todo o território, os recursos são destinados a fundos e transferidos aos estados e municípios. No âmbito municipal é o Fundo Municipal de Saúde que exerce o controle e a execução financeira, assim como repasses e transferências.

Quanto à participação da União, as transferências de recursos a estados e municípios são definidas pela Portaria Ministerial nº 204/2007, cujo texto foi transcrito para a Portaria de Consolidação nº 6 e modificado pela Portaria nº 3.992/2017, concentrando grupos de financiamento em um único bloco de custeio, inclusive o que se destina às ações e aos serviços ambulatoriais e hospitalares, definindo-os como limite ou teto financeiro da média e alta complexidade (MAC), sendo esses os mais expressivos entre os níveis de atenção22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria Ministerial nº 204, de 29 de janeiro de 2007. Diário Oficial da União 2007; 30 jan.,33 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria Ministerial nº 3.992, de 28 de dezembro de 2017. Diário Oficial da União 2017; 29 dez..

Esse cenário evidencia a complexidade do planejamento das ações, da organização de redes de atenção e do dimensionamento dos serviços de saúde, sobretudo no que diz respeito ao papel dos grandes centros urbanos brasileiros em regiões que têm fronteiras com territórios vulneráveis, diferentes portes populacionais e escasso acesso à saúde, como é o caso do município do Rio de Janeiro (MRJ), limítrofe a vários municípios com baixo índice de desenvolvimento humano (IDH).

O SUS é historicamente subfinanciado, já que os 30% do orçamento da seguridade social para o financiamento das ações e serviços públicos de saúde definidos pela Constituição Federal nunca foram efetivamente cumpridos. No entanto, após a crise de 2015, houve crescimento nos gastos municipais em saúde e aumento da dependência fiscal para custeio dos serviços, atingindo especialmente os municípios de pequeno porte e de menor renda per capita 44 Santos NR. SUS, política pública de Estado: seu desenvolvimento instituído e instituinte e a busca de saídas. Cien Saude Colet 2013; 18(1):273-280.,55 Cruz WGN, Barros RD, Souza LEPF. Financiamento da saúde e dependência fiscal dos municípios brasileiros entre 2004 e 2019. Cien Saude Colet 2022; 27(6):2459-2469..

Apesar de haver mecanismos legais que permitem que estados e municípios solicitem o aumento do valor do teto MAC ao Ministério da Saúde, a implementação da Emenda Constitucional (EC) nº 9566 Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Diá­rio Oficial da União 2016; 15 dez., conhecida como “teto de gastos”, em 2016, alterou o regime fiscal da saúde, estacionando gastos por 20 anos e congelando o aporte de recursos federais na área em patamares de 2015, sobrecarregando o aporte de financiamento local77 Menezes APR, Moretti B, Reis AAC. O futuro do SUS: impactos das reformas neoliberais na saúde pública-austeridade versus universalidade. Saude Debate 2020; 43(Esp. 5):58-70.,88 Souza DO. O subfinanciamento do Sistema Único de Saúde e seus rebatimentos no enfrentamento da COVID-19. Physis 2020; 30(3):e300313..

Considerando que a resiliência em saúde reside na capacidade de manter as funções essenciais de saúde pública operando com qualidade e resolutividade, mesmo enquanto o sistema se ajusta para responder a crises inesperadas99 Jatobá A, Carvalho PVR. Resiliência em saúde pública: preceitos, conceitos, desafios e perspectivas. Saude Debate 2023; 46(Esp. 8):130-140.

10 Haldane V, De Foo C, Abdalla SM, Jung AS, Tan M, Wu S, Chua A, Verma M, Shrestha P, Singh S, Perez T, Tan SM, Bartos M, Mabuchi S, Bonk M, McNab C, Werner GK, Panjabi R, Nordström A, Legido-Quigley H. Health systems resilience in managing the COVID-19 pandemic: lessons from 28 countries. Nat Med 2021; 27(6):964-980.
-1111 Massuda A, Hone T, Leles FAG, Castro MC, Atun R. The Brazilian health system at crossroads: progress, crisis and resilience. BMJ Global Health 2018; 3(4):e000829., os impactos desse cenário se fizeram sentir, em especial no contexto da pandemia de COVID-19. No entanto, os serviços de saúde são diuturnamente afetados por eventos inesperados, de maneira mais ou menos intensa e de gravidade variável1212 Lobato LVC. Resiliência de sistemas de saúde. Cad Saude Publica 2022; 38(10):e00176622.,1313 Hollnagel E, Braithwaite J, Wears RL, editors. Resilient health care: the resilience of everyday clinical work. Burlington: Ashgate; 2015.. Logo, a resiliência deve ser um atributo desenvolvido de maneira contínua, de forma que os serviços do SUS consigam manter seu funcionamento regular, mesmo quando lidam com a intensa variabilidade provocada pelos contextos dinâmicos dos territórios.

O MRJ, dada sua maior disponibilidade de recursos e rede assistencial mais estabelecida, realiza procedimentos assistenciais no nível MAC para todos os demais municípios do estado do Rio de Janeiro. Entre janeiro e dezembro de 2021 - período bastante duro da pandemia de COVID-19 -, ao subtrair a cota financeira programada da cota financeira realizada, ou seja, o valor pactuado com os demais municípios do estado com todo o serviço que é efetuado, evidencia-se um déficit de R$ 886.258.093.

Nesse contexto, o teto MAC do MRJ é particularmente pressionado pela demanda da própria Região Metropolitana 1, da qual fazem parte municípios bastante populosos, como Duque de Caxias, Belford Roxo, Nova Iguaçu e a própria Capital. Sendo assim, o presente estudo aborda a transição de usuários entre o MRJ e os demais municípios limítrofes da Região Metropolitana 1, com o objetivo de explorar como as históricas disparidades regionais na distribuição dos serviços de saúde afetam a gestão municipal, destacando como a concentração da rede de assistência no nível MAC interfere na manutenção do funcionamento regular dos serviços do SUS, prejudicando seu estado de preparação, responsividade e resiliência.

Métodos

Desenho da pesquisa

Trata-se de um estudo transversal ecológico de séries temporais, de natureza quantitativa, realizado a partir de dados públicos disponíveis nos sistemas de informação do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS). Os dados do estudo são referentes ao MRJ, escolhido por ter uma grande rede de assistência, ao mesmo tempo em que tem limites com municípios pouco desenvolvidos e carentes de serviços de saúde, caracterizando um lócus que, embora específico, é representativo das situações enfrentadas no âmbito do SUS em todo o país.

O presente artigo foi elaborado de acordo com as recomendações das diretrizes da EQUATOR Network e o checklist Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology (STROBE)1414 Von Elm E, Altman DG, Egger M, Pocock SJ, Gøtzsche PC, Vandenbroucke JP; STROBE Initiative. The Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology (STROBE) Statement: guidelines for reporting observational studies. Int J Surg 2014; 12(12):1495-1499..

Ambiente de pesquisa

Segundo o Plano Municipal de Saúde do Rio de Janeiro para o triênio 2022-20251515 Soranz D, Leal LCA, Lopes C, Dias F. Plano Municipal de Saúde do Rio de Janeiro: 2022-2025. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro; 2022., a rede de assistência do MRJ é distribuída entre oito Coordenadorias de Áreas Programáticas (CAP), cobrindo todo o território do município (que atende aproximadamente 6.775.561 habitantes, segundo dados do IBGE), a saber: CAP 1.0 (região central); CAP 2.1 (zona sul); CAP 3.1, CAP 3.2, CAP 3.3 (zona norte); CAP 4.0, CAP 5.2 e 5.3 (zona oeste).

O Plano Municipal de Saúde do Rio de Janeiro descreve ainda que a rede de assistência de média e alta complexidade conta com oito hospitais de emergência e dois de pronto atendimento, seis hospitais especializados e de menor porte e quatro unidades psiquiátricas, além de dois hospitais pediátricos e um de geriatria, 11 maternidades e uma casa de parto própria. Essas unidades representam ao todo mais de 700 leitos de alojamento conjunto (mães e bebês) e 295 leitos de UI/UTI neonatal. O município ainda tem dois institutos: a Unidade de Medicina Veterinária Jorge Vaitsman e o Instituto de Nutrição Annes Dias (Inad).

Além disso, a rede do MRJ inclui 18 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), seis Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas (CAPSad) - dois deles com unidades de acolhimento adultos (UAA) - e oito Centros de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSi), totalizando 32 unidades especializadas próprias. Outras três unidades das redes estadual e federal completam a rede de 35 CAPS.

Entretanto, essa não é a mesma realidade encontrada nos demais municípios do estado do Rio de Janeiro, principalmente naqueles limítrofes à capital, que apresentam atenção fragmentada, capacidade reduzida de recursos humanos em saúde, rede hospitalar insuficiente e alta prevalência de territórios vulneráveis, já que incluem aqueles com os menores IDH do estado1616 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE]. Panorama das cidades brasileiras [Internet]. 2023. [acessado fev 14 2023]. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/panorama./panorama
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/pa...
.

Procedimentos de coleta

Todos os dados utilizados neste estudo são de acesso livre e coletados no barramento de dados do DATASUS. Foram incluídas as informações relativas aos processos de avaliação, controle, regulação do planejamento e gestão financeira da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS-Rio), disponíveis no Sistema de Controle do Limite Financeiro da Média e Alta Complexidade (SISMAC), do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS) do Ministério da Saúde, do Sistema Informatizado para a Programação Pactuada e Integrada (SISPPI), da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro (SES-RJ), além do Sistema de Informação Hospitalar Descentralizado (SIHD).

Procedimentos de análise

Foi feita uma análise de tendência temporal por mio do modelo de regressão por pontos de inflexão (joinpoint regression)1717 Division of Cancer Control & Population Sciences. Joinpoint help manual 4.3.1.0. [Internet]. [cited 2023 fev 14]. Available from: https://surveillance.cancer.gov/joinpoint/Joinpoint_Help_4.3.1.0.pdf
https://surveillance.cancer.gov/joinpoin...
dos dados referentes às cotas financeiras programadas e realizadas, e dos tipos de internações com maiores demandas, realizadas por unidades hospitalares do município do Rio de Janeiro, para cada um dos 12 municípios da Região Metropolitana I do Estado do Rio de Janeiro no período de 2013 a 2021. Para essas análises foi utilizado o Joinpoint Regression Program, versão 4.9.1.0.

O joinpoint é um método de análise de séries temporais que identifica pontos de mudança ou inflexão na tendência de uma série de dados. As análises de regressão com pontos de junção indicam se um ou mais segmentos devem ser incluídos em uma regressão linear para sinalizar qualquer mudança na tendência temporal, rejeitando a hipótese nula de que nenhum ponto deve ser adicionado. Os resultados dessas análises permitem a estimativa da variação percentual anual (APC) da tendência investigada, bem como a determinação do seu intervalo de confiança de 95% (IC95%) e significância estatística. O modelo foi ajustado assumindo a possibilidade de um a um ponto de inflexão, o que implica uma linha reta ou uma linha com dois segmentos1818 Kim HJ, Fay MP, Feuer EJ, Midthune DN. Permutation tests for joinpoint regression with applications to cancer rates. Stat Med 2000; 19(3):335-351..

A principal diferença do joinpoint em relação a outros métodos estatísticos de análise temporal é que ele é especificamente projetado para lidar com séries de dados com mudanças na tendência, enquanto outros métodos, como a análise de tendência linear ou a análise de tendência por mínimos quadrados, presumem que a tendência é constante ao longo do tempo. Além disso, o joinpoint permite a identificação de múltiplos pontos de mudança na tendência, enquanto outros métodos geralmente permitem apenas a identificação de uma única tendência. O joinpoint pode também ser usado para estimar a magnitude da mudança na tendência, o que é importante em muitos tipos de análises, como a análise de tendências em dados epidemiológicos ou em dados econômicos. Na análise de tendência temporal foi estabelecido um nível de significância de 5%. Foram utilizadas também tabelas de frequência absoluta e relativa para descrever a distribuição das cotas financeiras MAC para cada município da Região Metropolitana I e o quantitativo de leitos de internação no município do Rio de Janeiro demandados por outros municípios.

Limitações

O presente estudo se limita aos dados abertos e disponíveis dos sistemas de informação do DATASUS. Além disso, não foi estabelecida uma análise de impacto, já que seriam dados adicionais que não foram encontrados nem disponibilizados.

Resultados

Cotas financeiras MAC

Foram avaliadas as cotas MAC programadas e realizadas nos municípios da Região Metropolitana 1 do estado do Rio de Janeiro no período de 2013 a 2021. Com relação às cotas programadas, foi observado um decréscimo dos valores brutos em todos os municípios para o ano de 2016, e as informações referentes aos anos de 2017 e de 2018 estavam indisponíveis. O Rio de Janeiro foi o município que apresentou a maior cota programada durante todo o período analisado, seguido pelos municípios de Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Belford Roxo e São João de Meriti (Tabela 1). No período de 2019 a 2021, a cota realizada superou a cota programada nos municípios de Belford Roxo, São João de Meriti, Duque de Caxias, Magé, Mesquita e Queimados. No Rio de Janeiro e em Nova Iguaçu, observando o mesmo período, a cota realizada foi inferior à cota programada apenas em 2020.

Tabela 1
Cotas financeiras programadas e realizadas (MAC) por ano de referência e município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, 2013-2021. Valores Brutos por milhões de reais (R$).

A tendência temporal das cotas programadas (MAC) se manteve estacionária para todos os municípios da Região Metropolitana do RJ durante o período analisado (2013-2021). Belford Roxo, Duque de Caxias, Magé, Mesquita, Nova Iguaçu, Queimados, Rio de Janeiro e São João de Meriti apresentaram aumentos significativos nas cotas realizadas (MAC) em um dos períodos de observação (Tabela 2).

Tabela 2
Estimativas das variações percentuais das cotas MAC programadas e realizadas por milhão de reais (R$) nos municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, Brasil, 2013-2021.

Japeri foi o único município que apresentou queda expressiva da cota realizada no período 2013-2016, com variação percentual anual (APC) de -20%. Em Itaguaí, Nilópolis e Seropédica, a cota realizada (MAC) se manteve estacionária em todo o período (Tabela 2).

Internações

As maiores demandas de internações em unidades de saúde do município do Rio de Janeiro por residentes da Região Metropolitana 1 no período de 2013 a 2021 foram nos leitos cirúrgicos, clínicos, obstétricos e pediátricos (Tabela 3). Foi observado que todos os municípios da Região Metropolitana 1 demandaram internações nas unidades de saúde do município do Rio de Janeiro, destacando-se Belford Roxo, Duque de Caxias, Nova Iguaçu e São João de Meriti (Tabela 4).

Tabela 3
Internações em estabelecimentos do município do Rio de janeiro realizado por pacientes residentes da Região Metropolitana I do Estado do Rio de Janeiro, Brasil, 2013-2021.

A análise temporal indicou aumento de 16,7% ao ano (IC95%: 3,9 a 31,1) nas internações obstétricas no período de 2013 a 2018 de residentes de Belford Roxo. As internações clínicas de pacientes residentes de Duque de Caxias apresentaram incremento de 3,6% ao ano (IC95%: 1,5 a 5,8) de 2013 a 2021.

Internações clínicas e pediátricas de residentes de Nova Iguaçu apresentaram aumento, respectivamente, de 3,1% (IC95%: 1,1 a 5,1) e 3,2% (IC95%: 1,3 a 5,8) ao ano de 2013 a 2021. Internações obstétricas de residentes de São João de Meriti apresentaram aumento de 22,1% (IC95%: 12,5 a 32,6) ao ano de 2013 a 2018 e diminuição significativa de 22,8% (IC95%: -34,2 a -9,4) ao ano para o período de 2018 a 2021. Internações de residentes de Itaguaí em leitos de cirurgia e de clínica aumentaram, de 2013 a 2018, respectivamente, 9,1% (IC95%: 1,4 a 18,4) e 10,5% (IC95%: 3,9 a 17,4) ao ano, enquanto os leitos de obstetrícia apresentaram redução significativa de 24,3% ao ano (IC95%: -41,9 a -1,4) de 2018 a 2021.

Ocupações de leitos obstétricos por residentes de Magé apresentaram aumento percentual de 15% ao ano (IC95%: 2,8 a 28,7) de 2013 a 2017 e redução de 12,7% ao ano (IC95%: -22,7 a -1,3) de 2017 a 2021, enquanto os leitos pediátricos sofreram decréscimo significativo de 3,5% ao ano (IC95%: -6,9 a 0,1) de 2013 a 2021. Internações obstétricas de residentes de Mesquita demandaram aumento significativo de 53,1% ao ano (IC95%: 17,2 a 100,1) dos leitos nas unidades de saúde no município do Rio de Janeiro de 2013 a 2017. Um aumento significativo, porém mais discreto, também foi observado para os leitos clínicos: 6,6% ao ano (IC95%: 3,7 a 9,7) de 2013 a 2021.

Foi observado aumento percentual anual significativo do número de leitos ocupados por residentes de Nilópolis para o período de 2013 a 2021. Internações de origem clínica, obstétrica e pediátrica apresentaram, respectivamente, incremento anual de 8,3%, 24,3% e 20,7% para esse período (Tabela 4).

Tabela 4
Estimativas das variações percentuais de internações realizadas no município do Rio de Janeiro por pacientes da Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro, Brasil, 2013-2021.

O município de Japeri, mesmo com a cota realizada abaixo da cota programada em praticamente todos os anos do período analisado (2013 a 2021) (Tabela 1), demandou internações para as unidades hospitalares do município do Rio de Janeiro (Tabela 4). Leitos ocupados por residentes do município de Japeri tiveram variação percentual anual positiva para internações clínicas e pediátricas de 2013 a 2021 e para internações obstétricas de 2013 a 2018, porém não foram estatisticamente significativas (Tabela 4).

Discussão

Segundo Hollnagel1919 Hollnagel E. The four cornerstones of resilience engineering. In: Hollnagel E, Nemeth CP. Resilience engineering perspectives, volume 2. Abingdon: CRC Press; 2016. p. 139-156., a resiliência de sistemas organizacionais imersos em ambiente instável se desenvolve a partir do fortalecimento de capacidades permanentes e evolutivas, em especial as capacidades de antecipar demandas potenciais que ameacem o funcionamento regular; do monitoramento do ambiente de forma a identificar ameaças críticas de curto prazo; do aprendizado com as experiências passadas e a ampla disseminação de conhecimento; e, assim, da pronta resposta às demandas. No caso dos sistemas públicos de saúde, essas habilidades devem ser consolidadas em benefício da manutenção da estabilidade das funções essenciais de saúde pública tanto em situações de crise quanto durante o funcionamento normal dos serviços2020 Bascolo E, Houghton N, del Riego A, Fitzgerald J. A renewed framework for the essential public health functions in the Americas. Rev Panam Salud Publica 2020; 44:e119.,2121 World Health Organization (WHO). Health systems resilience toolkit: a WHO global public health good to support building and strengthening of sustainable health systems resilience in countries with various contexts. Geneva: WHO; 2022..

Na média entre os anos de 2013 e 2021, nas internações hospitalares efetuadas pelo MRJ para os demais municípios do estado há prevalência dos atendimentos de média complexidade. Ao mesmo tempo, avaliando-se o caráter de atendimento das internações hospitalares, nota-se que há uma maior prestação de serviços para o município de Duque de Caxias, consumindo majoritariamente serviços eletivos, apesar de possuir valores semelhantes relativos à demanda pelos serviços de urgência. Na sequência aparecem Nova Iguaçu, em segundo lugar, depois São João de Meriti, em terceiro, e Magé e Nilópolis ocupando a quarta e a quinta colocações, sendo os municípios que causam maior impacto sobre a rede de assistência MAC do MRJ.

Dessa forma, mesmo que o MRJ oferte serviços de saúde para todo o estado do RJ e, fundamentalmente, para a Região Metropolitana 1, não consegue, através dos mecanismos oficiais, o remanejamento dos tetos financeiros dos municípios limítrofes pelos serviços prestados. Além disso, fica evidente nos dados apresentados que há uma elevação nas custas dos procedimentos MAC e seus preocupantes efeitos a longo prazo (tendo em vista o perfil epidemiológico populacional), enquanto o financiamento permanece limitado ao teto.

Da mesma maneira que esse cenário evidencia fragilidades na capacidade institucional do SUS no MRJ para monitorar pressões sobre a demanda advindas dos municípios próximos, a impossibilidade de remanejamento de tetos MAC ocasiona prejuízos na capacidade de responder prontamente tanto demandas emergentes quanto rotineiras. Nesse sentido, a dificuldade de desenvolver um comportamento resiliente no curto prazo é mais evidente, tendo em vista a dificuldade de mobilizar recursos imediatos para atender à demanda dos municípios vizinhos.

No entanto, a capacidade institucional para antecipar pressões sobre a demanda no longo prazo também é fragilizada, uma vez que a impossibilidade de remanejamento dos tetos MAC dificulta o planejamento e a mobilização de recursos de contingência para aumentos repentinos de demanda, aspecto essencial para a resiliência. Literatura recente descreve esse cenário, destacando suas relações com o agravamento do subfinanciamento da saúde e as consequências para a manutenção de funções essenciais do SUS em diferentes níveis de atenção em diferentes pontos do país2222 Padilha A, Oliveira DC, Alves TA, Campos GWS. Crise no Brasil e impactos na frágil governança regional e federativa da política de saúde. Cien Saude Colet 2019; 24(12):4509-4518.

23 Soares A. Paradigma de financiamento do SUS no estado de São Paulo: uma análise regional. Rev Saude Publica 2019; 53:39.
-2424 Méllo LMBD, Albuquerque PC, Santos RC. Conjuntura política brasileira e saúde: do golpe de 2016 à pandemia de COVID-19. Saude Debate 2022; 46(134):842-856..

Nota-se que a proximidade regional e a migração pendular (o deslocamento diário de pessoas que saem das cidades onde residem e se dirigem a outra cidade) em direção ao MRJ impactam a capacidade de organização e o tempo de realização de exames e procedimentos de média e alta complexidade, sobrecarregando o sistema de saúde do MRJ.

Além disso, a mudança do perfil epidemiológico, o envelhecimento populacional, os avanços tecnológicos em saúde e os altos custos para o tratamento de doenças crônico-degenerativas têm desafiado a capacidade institucional do SUS de forma crescente e contínua. Porém, a consolidação da agenda de austeridade fiscal após o impeachment da presidente Dilma Roussef em meados de 2016 e a promulgação da EC 95 logo em seguida levam o subfinanciamento do SUS a um patamar de desfinanciamento88 Souza DO. O subfinanciamento do Sistema Único de Saúde e seus rebatimentos no enfrentamento da COVID-19. Physis 2020; 30(3):e300313. ainda mais grave, comprometendo programas e impedindo o desenvolvimento adequado de capacidades resilientes a flutuações inesperadas de demanda - tanto as típicas, como as causadas pela transição de usuários no Rio de Janeiro exploradas neste estudo, quanto as mais disruptivas, como a pandemia da COVID-19.

A partir de 2019, a agenda ultraliberal do governo Bolsonaro acentua esse cenário, e os resultados da COVID-19 no Brasil, o segundo epicentro da doença em todo o mundo2525 Our World in Data. Total confirmed COVID-19 deaths per million people [Internet]. 2020. [cited 2020 jun 9]. Available from: https://ourworldindata.org/grapher/total-covid-deaths-per-million
https://ourworldindata.org/grapher/total...
, ilustram em certa medida como as capacidades resilientes do SUS foram afetadas pela política econômica conduzida nos últimos seis anos, por mais que o SUS tenha mostrado potencial para o desempenho resiliente ao conseguir mobilizar recursos de forma rápida para responder à pandemia mesmo em um contexto de instabilidade política, estratégias conflitantes entre governos e autoridades sanitárias e negacionismo2626 Jatobá A, Bellas H, Viana J, Castro Nunes P, Leal R, Bulhões B, Arcuri R, Carvalho PVR. Unveiling conflicting strategies in the Brazilian response to COVID-19: a cross-sectional study using the Functional Resonance Analysis Method. Dialogues Health 2022; 1:100056..

Quanto ao padrão das séries temporais das cotas realizadas, observou-se que houve um aumento mais expressivo na tendência a partir de 2020 na maioria dos municípios da Região Metropolitana 1. Nota-se que houve déficit em todo o período analisado na série histórica (entre 2013 e 2021). Entretanto, o período de maior produção de média e alta complexidade de todos os municípios da Região Metropolitana 1 ocorreu durante os primeiros dois anos da pandemia de COVID-19 (2020 e 2021), em que as internações tiveram maior demanda e, por conseguinte, maior volume de gastos e pressão sobre a capacidade institucional do SUS, como corroboram Noronha e Ferreira2727 Noronha KVMS, Guedes GR, Turra CM, Andrade MV, Botega L, Nogueira D, et al. Pandemia por COVID-19 no Brasil: análise da demanda e da oferta de leitos hospitalares e equipamentos de ventilação assistida segundo diferentes cenários. Cad Saude Publica 2020; 36(6):e00115320..

A ausência de compensação financeira e o consequente aumento do déficit do teto MAC demonstrados nos dados do presente estudo também impedem que o MRJ reestruture sua carteira de serviços a partir do aprendizado com as experiências ocorridas, comprometendo a capacidade de resposta do MRJ tanto no que diz respeito à manutenção das funções essenciais quanto no que se refere à atenção a demandas emergentes.

Estudos têm mostrado a dificuldade crescente do MRJ na regulação dos procedimentos MAC nesse cenário crônico de escassez de recursos, que é agravado pela transição desordenada de usuários - inclusive durante a pandemia de COVID-19, quando diversos procedimentos eletivos foram paralisados2828 Cavalcanti RP, Cruz DF, Padilha WWN. Desafios da regulação assistencial na organização do Sistema Único de Saúde. Rev Bras Cienc Saude 2018; 22(2):181-188.

29 Pinto LF, Soranz D, Scardua MT, Silva IM. A regulação municipal ambulatorial de serviços do Sistema Único de Saúde no Rio de Janeiro: avanços, limites e desafios. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1257-1267.
-3030 Silva Junior CL, Guabiraba KPL, Gomes GG, Andrade CLT, Melo EA. A regulação ambulatorial na Atenção Primária do Município do Rio de Janeiro, Brasil, a partir dos médicos reguladores locais. Cien Saude Colet 2022; 27(6):2481-2493.. A regulação é um processo central para a resiliência do SUS, na medida em que é responsável pela ordenação do acesso dos usuários de acordo com seus riscos e com os recursos disponíveis3131 Arcuri R, Bulhões B, Jatobá A, Bellas HC, Koster I, d'Avila AL, Vidal MCR, Burns CM, Carvalho PVR. Gatekeeper family doctors operating a decentralized referral prioritization system: uncovering improvements in system resilience through a grounded-based approach. Safety Sci 2020; 121:177-190.,3232 An C, O'Malley AJ, Rockmore DN, Stock CD. Analysis of the U.S. patient referral network. Stat Med 2018; 37(5):847-866..

Desde a criação do SUS, houve um processo de incremento dos gastos municipais em saúde e de redução do percentual no financiamento federal, e consequentemente a necessidade de aumento de recursos para a saúde neste nível55 Cruz WGN, Barros RD, Souza LEPF. Financiamento da saúde e dependência fiscal dos municípios brasileiros entre 2004 e 2019. Cien Saude Colet 2022; 27(6):2459-2469.,3333 Simão JB, Orellano VIF. Um estudo sobre a distribuição das transferências para o setor de saúde no Brasil. Estud Econ 2015; 45(1):33-63.

34 Mendes A. A longa batalha pelo financiamento do SUS. Saude Soc 2013; 22(4):987-993.

35 Oliveira VHFP, Oliveira MB, Blumenberg C, Herval AM, Paranhos LR. Analysis of financial resources for public health in Brazilian capitals: a time trend ecological study. Cad Saude Publica 2022; 38(1):e00311620.
-3636 Mendes A, Leite MG, Marques RM. Discutindo uma metodologia para a alocação equitativa de recursos federais para o Sistema Único de Saúde. Saude Soc 2011; 20(3):673-90.. Nesse sentido, Teles et al.3737 Teles AS, Coelho TCB, Ferreira MPS. Sob o prisma da equidade: financiamento federal do Sistema Único de Saúde no estado da Bahia. Saude Soc 2016; 25(3):786-799., ao analisarem a alocação de recursos federais no estado da Bahia, verificaram grande concentração de recursos destinada a poucos municípios de grande porte populacional e com os mais altos IDH, e baixo aporte para regiões com maiores necessidades de saúde, ou seja, com maior vulnerabilidade, o que aumenta a iniquidade regional, que pode ser oriunda da qualidade da rede de serviços encontrada nos municípios menores, semelhante ao caso do Rio de Janeiro.

Costa3838 Costa NR. A resiliência das grandes cidades brasileiras e a pandemia da Covid-19. Saude Debate 2022; 45(Esp. 2):10-20. expõe que o governo federal retirou o apoio à expansão das despesas com ações e serviços públicos de saúde (ASPS), estabilizando a alocação de seus recursos por meio do veto à vinculação orçamentária. Essa mudança de orientação federal transferiu o ônus da expansão do financiamento para os governos municipais e estaduais nas últimas décadas. Dessa forma, a estabilização das despesas federais foi compensada pelo incremento da vinculação do orçamento municipal às ASPS. Durante o primeiro ciclo da pandemia de COVID-19, a vinculação orçamentária foi crucial para a expansão do financiamento das ASPS na maior parte dos municípios estudados, possibilitando a condição resiliente.

Espírito Santo e Tanaka3939 Santo ACGE, Tanaka OY. Financiamento, gasto e oferta de serviços de saúde em grandes centros urbanos do estado de São Paulo (Brasil). Cien Saude Colet 2011; 16(3):1875-1885. identificaram que a despesa municipal com saúde experimentou um incremento diretamente proporcional ao porte populacional, chegando a uma taxa de 90% nos municípios que têm entre 500.000 e um milhão de habitantes. Avaliaram também que há um gasto municipal crescente com saúde superior ao crescimento da receita e da despesa global. Concluem ponderando que o crescimento da produção de procedimentos MAC sugere o direcionamento de recursos para reprodução do modelo médico-assistencial (hospitalocêntrico).

Destaca-se que a Portaria nº 3.992, de 28 de dezembro de 201733 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria Ministerial nº 3.992, de 28 de dezembro de 2017. Diário Oficial da União 2017; 29 dez., altera a Portaria de Consolidação nº 6/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, para dispor sobre o financiamento e a transferência dos recursos federais para as ações e os serviços públicos de saúde do SUS, extinguindo os blocos de financiamento e substituindo-os por uma única rubrica de investimento e custeio, mantendo as transferências fundo a fundo. Porém, para fins de prestação de contas, os municípios continuam a seguir a lógica dos blocos.

Face a uma solicitação de incremento do teto MAC, a Comissão Intergestores Bipartite (CIB) é a instância em que se aprova a programação assistencial e o remanejamento de recursos MAC no estado, e que acompanha os pedidos de aumento de aporte federal, só emitindo resoluções a respeito após esgotadas todas as possibilidades de realocação dos recursos disponíveis. No nível federal, o Ministério da Saúde compara o montante recebido com o montante da produção apresentada, e caso seja demonstrada produção elevada em todo o estado, o atendimento da solicitação fica condicionado à disponibilidade orçamentário-financeira da pasta.

No contexto mencionado, pode-se inferir que o déficit financeiro oriundo de atendimentos não programados que ocorrem no MRJ acaba por comprometer o comportamento resiliente do município porque dificultam o planejamento das ações de saúde, em um círculo vicioso que compromete continuamente a qualidade e a oferta dos serviços MAC e aumenta tempos de espera, no sentido contrário do que recomenda a Organização Mundial da Saúde (OMS)1010 Haldane V, De Foo C, Abdalla SM, Jung AS, Tan M, Wu S, Chua A, Verma M, Shrestha P, Singh S, Perez T, Tan SM, Bartos M, Mabuchi S, Bonk M, McNab C, Werner GK, Panjabi R, Nordström A, Legido-Quigley H. Health systems resilience in managing the COVID-19 pandemic: lessons from 28 countries. Nat Med 2021; 27(6):964-980..

Por fim, o aumento no número de atendimentos fora do planejamento programado impacta a capacidade de resposta cotidiana do município, que não consegue se antecipar ao volume de atendimento, influenciando a capacidade de monitorar o que é crítico e de implementar experiências baseadas em lições aprendidas, uma vez que os repasses financeiros referentes aos atendimentos de pessoas de outros município não são feitos. Consequentemente, o déficit do teto MAC tem um efeito negativo sobre a rede de atendimento do município, que acaba comprometida e desorganizada, impactando diretamente a oferta, a qualidade e os tempos de espera dos serviços MAC ofertados.

Conclusão

O presente estudo destaca que o subfinanciamento crônico do SUS provoca consequências ainda mais acentuadas nos municípios que fazem fronteira com regiões desprivilegiadas, como é o caso do MRJ, que mesmo com uma rede desenvolvida e estruturada - em boa parte resultante do tempo em que foi capital do país - apresenta dificuldades para sustentar funções essenciais, capacidade institucional e resiliência frente à intensa transição de usuários a que é submetido, sem que consiga fazer remanejamentos adequados dos tetos MAC.

Nesse sentido, a gestão do município deveria promover ações políticas e técnicas junto à CIB e ao Ministério da Saúde com o objetivo de abrir negociação para o remanejamento gradual do teto financeiro programado MAC, principalmente junto aos demais municípios da Região Metropolitana 1 (da baixada fluminense), para que se possa recompor a capacidade institucional e, consequentemente, melhorar a oferta de serviços, a qualidade da assistência e promover um desempenho resiliente às flutuações típicas ou extraordinárias da demanda.

Diante do volume de atendimentos a moradores de municípios limítrofes realizados na rede do MRJ e diante do déficit financeiro gerado, a manutenção de funções essenciais de saúde pública no município fica comprometida, tendo em vista o grau de vulnerabilidade dos municípios vizinhos, a baixa capacidade de monitoramento da criticidade ao redor e a dificuldade de antecipação da flutuação de demanda resultante da transição de usuários.

Outra questão que se destaca é o estabelecimento e a evolução de uma relação de dependência entre os demais municípios da Região Metropolitana 1 e a rede de saúde do MRJ por conta da escassez de serviços e de investimento consistente na rede de atenção dos municípios menos desenvolvidos da região.

Por fim, cabe ressaltar que não será uma tarefa fácil reverter tal situação, tendo em vista o agravamento da crise de financiamento que vem atingindo o setor de saúde nos últimos anos, principalmente por conta das limitações impostas por políticas de austeridade fiscal, entre as quais se destaca a EC 95 e seu “teto de gastos”, bem como as crises econômica, social e pandêmica dos últimos anos, que afetaram gravemente o setor de saúde.

Referências

  • 1
    Silva SF, Souza NM, Barreto JOM. Fronteiras da autonomia da gestão local de saúde: inovação, criatividade e tomada de decisão informada por evidências. Cien Saude Colet 2014; 19(11):4427-4438.
  • 2
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria Ministerial nº 204, de 29 de janeiro de 2007. Diário Oficial da União 2007; 30 jan.
  • 3
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria Ministerial nº 3.992, de 28 de dezembro de 2017. Diário Oficial da União 2017; 29 dez.
  • 4
    Santos NR. SUS, política pública de Estado: seu desenvolvimento instituído e instituinte e a busca de saídas. Cien Saude Colet 2013; 18(1):273-280.
  • 5
    Cruz WGN, Barros RD, Souza LEPF. Financiamento da saúde e dependência fiscal dos municípios brasileiros entre 2004 e 2019. Cien Saude Colet 2022; 27(6):2459-2469.
  • 6
    Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Diá­rio Oficial da União 2016; 15 dez.
  • 7
    Menezes APR, Moretti B, Reis AAC. O futuro do SUS: impactos das reformas neoliberais na saúde pública-austeridade versus universalidade. Saude Debate 2020; 43(Esp. 5):58-70.
  • 8
    Souza DO. O subfinanciamento do Sistema Único de Saúde e seus rebatimentos no enfrentamento da COVID-19. Physis 2020; 30(3):e300313.
  • 9
    Jatobá A, Carvalho PVR. Resiliência em saúde pública: preceitos, conceitos, desafios e perspectivas. Saude Debate 2023; 46(Esp. 8):130-140.
  • 10
    Haldane V, De Foo C, Abdalla SM, Jung AS, Tan M, Wu S, Chua A, Verma M, Shrestha P, Singh S, Perez T, Tan SM, Bartos M, Mabuchi S, Bonk M, McNab C, Werner GK, Panjabi R, Nordström A, Legido-Quigley H. Health systems resilience in managing the COVID-19 pandemic: lessons from 28 countries. Nat Med 2021; 27(6):964-980.
  • 11
    Massuda A, Hone T, Leles FAG, Castro MC, Atun R. The Brazilian health system at crossroads: progress, crisis and resilience. BMJ Global Health 2018; 3(4):e000829.
  • 12
    Lobato LVC. Resiliência de sistemas de saúde. Cad Saude Publica 2022; 38(10):e00176622.
  • 13
    Hollnagel E, Braithwaite J, Wears RL, editors. Resilient health care: the resilience of everyday clinical work. Burlington: Ashgate; 2015.
  • 14
    Von Elm E, Altman DG, Egger M, Pocock SJ, Gøtzsche PC, Vandenbroucke JP; STROBE Initiative. The Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology (STROBE) Statement: guidelines for reporting observational studies. Int J Surg 2014; 12(12):1495-1499.
  • 15
    Soranz D, Leal LCA, Lopes C, Dias F. Plano Municipal de Saúde do Rio de Janeiro: 2022-2025. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro; 2022.
  • 16
    Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE]. Panorama das cidades brasileiras [Internet]. 2023. [acessado fev 14 2023]. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/panorama./panorama
    » https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/panorama./panorama
  • 17
    Division of Cancer Control & Population Sciences. Joinpoint help manual 4.3.1.0. [Internet]. [cited 2023 fev 14]. Available from: https://surveillance.cancer.gov/joinpoint/Joinpoint_Help_4.3.1.0.pdf
    » https://surveillance.cancer.gov/joinpoint/Joinpoint_Help_4.3.1.0.pdf
  • 18
    Kim HJ, Fay MP, Feuer EJ, Midthune DN. Permutation tests for joinpoint regression with applications to cancer rates. Stat Med 2000; 19(3):335-351.
  • 19
    Hollnagel E. The four cornerstones of resilience engineering. In: Hollnagel E, Nemeth CP. Resilience engineering perspectives, volume 2. Abingdon: CRC Press; 2016. p. 139-156.
  • 20
    Bascolo E, Houghton N, del Riego A, Fitzgerald J. A renewed framework for the essential public health functions in the Americas. Rev Panam Salud Publica 2020; 44:e119.
  • 21
    World Health Organization (WHO). Health systems resilience toolkit: a WHO global public health good to support building and strengthening of sustainable health systems resilience in countries with various contexts. Geneva: WHO; 2022.
  • 22
    Padilha A, Oliveira DC, Alves TA, Campos GWS. Crise no Brasil e impactos na frágil governança regional e federativa da política de saúde. Cien Saude Colet 2019; 24(12):4509-4518.
  • 23
    Soares A. Paradigma de financiamento do SUS no estado de São Paulo: uma análise regional. Rev Saude Publica 2019; 53:39.
  • 24
    Méllo LMBD, Albuquerque PC, Santos RC. Conjuntura política brasileira e saúde: do golpe de 2016 à pandemia de COVID-19. Saude Debate 2022; 46(134):842-856.
  • 25
    Our World in Data. Total confirmed COVID-19 deaths per million people [Internet]. 2020. [cited 2020 jun 9]. Available from: https://ourworldindata.org/grapher/total-covid-deaths-per-million
    » https://ourworldindata.org/grapher/total-covid-deaths-per-million
  • 26
    Jatobá A, Bellas H, Viana J, Castro Nunes P, Leal R, Bulhões B, Arcuri R, Carvalho PVR. Unveiling conflicting strategies in the Brazilian response to COVID-19: a cross-sectional study using the Functional Resonance Analysis Method. Dialogues Health 2022; 1:100056.
  • 27
    Noronha KVMS, Guedes GR, Turra CM, Andrade MV, Botega L, Nogueira D, et al. Pandemia por COVID-19 no Brasil: análise da demanda e da oferta de leitos hospitalares e equipamentos de ventilação assistida segundo diferentes cenários. Cad Saude Publica 2020; 36(6):e00115320.
  • 28
    Cavalcanti RP, Cruz DF, Padilha WWN. Desafios da regulação assistencial na organização do Sistema Único de Saúde. Rev Bras Cienc Saude 2018; 22(2):181-188.
  • 29
    Pinto LF, Soranz D, Scardua MT, Silva IM. A regulação municipal ambulatorial de serviços do Sistema Único de Saúde no Rio de Janeiro: avanços, limites e desafios. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1257-1267.
  • 30
    Silva Junior CL, Guabiraba KPL, Gomes GG, Andrade CLT, Melo EA. A regulação ambulatorial na Atenção Primária do Município do Rio de Janeiro, Brasil, a partir dos médicos reguladores locais. Cien Saude Colet 2022; 27(6):2481-2493.
  • 31
    Arcuri R, Bulhões B, Jatobá A, Bellas HC, Koster I, d'Avila AL, Vidal MCR, Burns CM, Carvalho PVR. Gatekeeper family doctors operating a decentralized referral prioritization system: uncovering improvements in system resilience through a grounded-based approach. Safety Sci 2020; 121:177-190.
  • 32
    An C, O'Malley AJ, Rockmore DN, Stock CD. Analysis of the U.S. patient referral network. Stat Med 2018; 37(5):847-866.
  • 33
    Simão JB, Orellano VIF. Um estudo sobre a distribuição das transferências para o setor de saúde no Brasil. Estud Econ 2015; 45(1):33-63.
  • 34
    Mendes A. A longa batalha pelo financiamento do SUS. Saude Soc 2013; 22(4):987-993.
  • 35
    Oliveira VHFP, Oliveira MB, Blumenberg C, Herval AM, Paranhos LR. Analysis of financial resources for public health in Brazilian capitals: a time trend ecological study. Cad Saude Publica 2022; 38(1):e00311620.
  • 36
    Mendes A, Leite MG, Marques RM. Discutindo uma metodologia para a alocação equitativa de recursos federais para o Sistema Único de Saúde. Saude Soc 2011; 20(3):673-90.
  • 37
    Teles AS, Coelho TCB, Ferreira MPS. Sob o prisma da equidade: financiamento federal do Sistema Único de Saúde no estado da Bahia. Saude Soc 2016; 25(3):786-799.
  • 38
    Costa NR. A resiliência das grandes cidades brasileiras e a pandemia da Covid-19. Saude Debate 2022; 45(Esp. 2):10-20.
  • 39
    Santo ACGE, Tanaka OY. Financiamento, gasto e oferta de serviços de saúde em grandes centros urbanos do estado de São Paulo (Brasil). Cien Saude Colet 2011; 16(3):1875-1885.
  • 40
    World Health Organization (WHO). Monitoring the building blocks of health systems: a handbook of indicators and their measurement strategies. Geneva: WHO; 2010.

Editores-chefes:

Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Jan 2024

Histórico

  • Recebido
    17 Out 2022
  • Aceito
    03 Abr 2023
  • Publicado
    05 Abr 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br