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Infância roubada

RESENHA

Infância roubada

André Luiz Picolli da Silva1 1 André Luiz Picolli da Silva está vinculado à Universidade do Oeste de Santa Catarina - UNOESC - Câmpus de São Miguel do Oeste.

Universidade do Oeste de Santa Catarina - UNOESC

Endereço para correspondência Endereço para correspondência E-mail: picolli@unoescsmo.edu.br

Habigzang, Luíza F. & Caminha, Renato M. (2004). Abuso sexual contra crianças e adolescentes: conceituação e intervenção clínica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 171 p.

Existem agressões que perpassam o corpo e atingem o mais profundo do psiquismo humano. O abuso sexual é um exemplo dessas agressões e, no livro Abuso sexual contra crianças e adolescentes: conceituação e intervenção clínica, os autores Luiza Habigzang e Renato Caminha demonstram com grande propriedade como esse tipo de ocorrência pode deixar marcas profundas e negativas no desenvolvimento psíquico, afetivo e cognitivo de uma criança. Juntamente com essa demonstração, no livro, também é realizada uma sistematização de conceitos, dados epidemiológicos e principais conseqüências experimentadas pelas vítimas de abuso, além de formas de diagnóstico e tratamento, sendo, desse modo, uma literatura de grande utilidade para profissionais e estudantes de psicologia. A obra possui no total quatro capítulos, sendo nomeados respectivamente com os títulos, "conceituando o abuso sexual na infância e na adolescência"; "intervindo em abuso sexual na infância e na adolescência"; "analisando a intervenção em abuso sexual na infância e na adolescência" e "considerações finais", todos, escritos por ambos os autores.

No decorrer das explanações, são descritos trabalhos que apresentam possíveis causas, dão definições e caracterizam o sistema de violência contra crianças e adolescentes. Dessa forma, os termos abuso ou maus-tratos contra crianças e adolescentes, por exemplo, são usados para caracterizar negligência, violência física, psicológica ou sexual de maneira intencional realizada por alguém em estágio de desenvolvimento superior que usa o seu poder, confiança ou força, para colocar a criança em situações nas quais não possua condições maturacionais, biológicas e psicológicas de enfrentamento. A partir desse entendimento, são apresentados os principais fatores que fazem surgir, desenvolver e manter o fenômeno do abuso sexual: reprodução das experiências de violência familiar vivida na infância do agressor, desajustes familiares como problemas psíquicos e alcoolismo, e aspectos sociais e econômicos, como a desigualdade e dominação de gênero e de gerações.

Os períodos correspondentes à infância e à adolescência são de fundamental importância para a aprendizagem de habilidades sociais, razão pela qual é função da sociedade garantir um adequado desenvolvi-mento nesses períodos. Por sua vez, a família deveria ser a principal responsável por essa garantia, pois é o primeiro grupo social no qual a criança se insere. Entretanto, no que se refere a maus-tratos e abusos sexuais contra crianças, é referido, no livro, que o maior nível de incidência desses fenômenos ocorre no seio familiar. Tal situação gera, em longo prazo, um grande problema social, pois a criança que recebe agressões nesse primeiro grupo de convívio tenderá a reproduzir, no futuro, esse mesmo padrão de comportamento, estabelecendo com o mundo uma relação de medo, dor, isolamento, raiva e agressão.

A partir dos relatos realizados, fica evidente que os profissionais que trabalham nesse campo precisam ter claro que o abuso sexual é um fenômeno que possui uma vasta quantidade de variáveis e, por essa razão, é necessário que o profissional conheça toda a dinâmica da agressão, a fim de que suas intervenções se tornem eficazes. Também é demonstrado que o abuso sexual pressupõe uma disfunção que ocorre em três níveis específicos: o poder exercido do grande sobre o pequeno, a confiança do pequeno no grande e o uso delinqüente da sexualidade. Aliado a essa constatação, o levantamento epidemiológico realizado na obra também demonstra que a maior incidência de abusos em decorrência dessa disfunção é causada por pessoas que desempenham o papel de cuidador. Assim, os abusos são em geral incestuosos, sendo estes os que possuem um maior impacto cognitivo comportamental sobre a criança que, em casa, não tem como fugir do agressor, devendo aprender a conviver com este.

Em relação às conseqüências do abuso, percebe-se, por intermédio dos dados apresentados, que essas se alteram, principalmente de acordo com a idade da vítima. Dependendo da idade em que ocorre o abuso, surgem quadros patológicos mais proeminentes. Porém, é destacado que os sintomas mais comuns de abuso em qualquer faixa etária são: pesadelos, depressão, retraimento, distúrbios neuróticos, agressão e comportamento regressivo. Outro sintoma comum que crianças vítimas de abuso sexual apresentam é a dificuldade de discriminar estímulos, bem como adequar respostas a estímulos, assim como não conseguem distinguir entre afetos positivos e negativos ou condutas sexuais e não-sexuais, por vezes apresentando comportamento agressivo e hipersexualizado.

Nessas condições, o tratamento de crianças vítimas de abuso sexual possui características próprias, que não são comuns a qualquer processo terapêutico. Para aumentar a visibilidade em relação às possibilidades do trabalho terapêutico com crianças e adolescente vítimas de abuso sexual, os autores apresentam com grande propriedade alguns exemplos de intervenções e modalidades terapêuticas realizadas. É enfocado que o tratamento pode ser realizado por intermédio de diversas modalidades terapêuticas, independentemente do referencial teórico utilizado, pois, de acordo com as explanações feitas, nessa espécie de intervenção terapêutica, mais importante que a teoria utilizada é a existência de um clima de aceitação, para que a criança adquira confiança e comece a se comunicar.

Nos exemplos apresentados no livro, é enfatizada a experiência profissional dos autores, que privilegiam a intervenção com tratamento fundamentado na teoria cognitivo-comportamental. Esse referencial teórico na modalidade grupal foi utilizado com resultados muito positivos, pois na experiência cotidiana observou-se que o grupo dá a idéia para a criança de que ela não está só, fornecendo assim o apoio e alívio individual. Na prática profissional apresentada pelos autores, a terapia cognitivo-comportamental tem surtido um efeito melhor do que outras formas não focais de terapia, e dentre as técnicas utilizadas destacou-se a dessensibilização sistemática, o treino de relaxamento, a interrupção e substituição de pensamentos, o treino de habilidades, e a reestruturação de cognições distorcidas.

Em toda a obra existe uma boa comunicação e ligação entre os capítulos, que descrevem desde fundamentações conceituais, passando por dados epidemiológicos, chegando até modalidades terapêuticas e exemplos de experiências profissionais dos autores em grupos terapêuticos com crianças vítimas de abuso sexual. Durante todo o livro um aspecto é veladamente enfatizado: a necessidade da contínua formação e aprimoramento dos profissionais que trabalham nesse campo. Infelizmente, a questão da violência sexual contra crianças e adolescentes ainda não é suficientemente estudada nos Cursos de Graduação em Psicologia do Brasil, o que, conseqüentemente, faz com que os profissionais estejam pouco preparados para diagnosticar e intervir sobre esse fenômeno. Assim sendo, o livro, apresenta-se como uma boa alternativa a essa insuficiência, consistindo em uma obra ideal e, até mesmo, indispensável, para estudantes e profissionais que nunca estudaram o assunto e querem começar a fazê-lo, bem como para profissionais que já trabalham em locais onde esse fenômeno ocorre ou possa ocorrer.

Sobre o autor:

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    André Luiz Picolli da Silva está vinculado à Universidade do Oeste de Santa Catarina - UNOESC - Câmpus de São Miguel do Oeste.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2005
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