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Escala de Crenças Sobre Violência Conjugal (ECV): Versão Brasileira

Beliefs Scale on Marital Violence (ECVC): Brazilian Version

Escala de Creencias Sobre Violencia Conyugal (ECVC): Versión Brasileña

Resumo

Este estudo visou traduzir, adaptar e verificar evidências de validade da Escala de Crenças sobre Violência Conjugal (ECVC), bem como investigou diferenças nos índices de concordância com crenças legitimadoras de violência conjugal, considerando as variáveis gênero, escolaridade e possuir filhos. Os participantes foram adultos brasileiros (N = 1.337), maiores de 18 anos, sendo 66,34% pertencentes ao gênero feminino e 33,65% masculino. Foram realizadas análises fatoriais confirmatórias e exploratórias, e análise de comparação das médias através de uma ANOVA. Os 25 itens da escala apresentaram cargas fatoriais superiores a 0,46. A versão brasileira da escala apresentou estrutura unidimensional. Foi observado que os três indicadores utilizados para avaliar a consistência interna apresentaram valores satisfatórios. Por fim, identificou-se que participantes do gênero masculino, com menor escolaridade e com filhos apresentaram maior concordância com crenças legitimadoras de violência conjugal. Os resultados encontrados reforçam as qualidades psicométricas da escala indicando sua aplicabilidade.

Palavras-chave:
violência contra mulher; relações conjugais; gênero; validade do teste

Abstract

This study aimed to translate, adapt, and verify the evidence of validity of the Belief Scale on Conjugal Violence (Escala de Crenças sobre Violência Conjugal - ECVC), as well as to investigate differences in the indices of agreement with legitimizing beliefs of conjugal violence, considering the variables gender, education, and having children. Participants were Brazilian adults (N = 1,337), over 18 years old, 66.34% of whom were women and 33.65% men. Confirmatory and exploratory factor analyses were conducted, as well as a comparison of means using ANOVA. The 25 items on the scale presented factorial loadings greater than 0.46. The Brazilian version of the scale had a unidimensional structure, and the three indicators used to assess internal consistency showed satisfactory values. Finally, results indicated that men with less education and with children showed greater agreement with beliefs legitimizing conjugal violence. The results reinforce the psychometric qualities of the scale, indicating its applicability.

Keywords:
violence against women; marital relations; gender; test validity

Resumen

Este estudio tuvo como objetivo traducir, adaptar y verificar evidencias de validez de la Escala de Creencias sobre Violencia Conyugal (ECVC), así como investigar diferencias en los índices de concordancia con las creencias legitimadoras de violencia conyugal, considerando las variables género, educación y tener hijos. Los participantes eran adultos brasileños (N = 1.337), mayores de 18 años, de los cuales el 66,34% eran mujeres y el 33,65% hombres. Se realizaron análisis factoriales confirmatorios y exploratorios, y análisis de comparación de medias a través de ANOVA. Los 25 ítems de la escala presentaron cargas factoriales superiores a 0,46. La versión brasileña de la escala tenía una estructura unidimensional. Se observó que los tres indicadores utilizados para evaluar la consistencia interna presentaron valores satisfactorios. Finalmente, se identificó que los varones, con menor nivel educativo y con hijos, mostraron mayor acuerdo con las creencias legitimadoras de la violencia conyugal. Los resultados encontrados denotan las cualidades psicométricas de la escala, reforzando su aplicabilidad.

Palabras clave:
violencia contra la mujer; relaciones conyugales; género; validación de test

Introdução

A violência conjugal é um fenômeno complexo e multicausal que pode implicar em dano físico, sexual, psicológico, patrimonial e moral, perpetrado pelo(a) parceiro(a). Além disso, a violência conjugal é considerada um problema de saúde pública (Carneiro et al., 2017Carneiro, J. B., Gomes, N. P., Estrela, F. M., Santana, J. D. M., Rosana S., & Erdmann, A. L. (2017). Violência conjugal: Repercussões para mulheres e filhas(os). Escola Anna Nery, 21(4), 1-7. doi: 10.1590/2177-9465-ean-2016-0346
https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-20...
; Organização Mundial de Saúde [OMS], 2012Organização Mundial de Saúde [OMS]. (2012). Natureza, magnitude e consequências da violência sexual e da violência por parceiro íntimo. In: Organização Mundial da Saúde (OMS). Prevenção da Violência Sexual e da Violência pelo Parceiro Íntimo Contra a Mulher: Ação e produção de evidência (p. 11-17). Geneva: OMS.; Paim & Falcke, 2018Paim, K. C., & Falcke, D. (2018). The experiences in the family of origin and the early maladaptive schemas as predictors of marital violence in men and women. Análise Psicológica, 36(3), 279-29. doi: 10.14417/ap.1242
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). Ainda que a violência na conjugalidade possa ser perpetrada tanto pelo homem quanto pela mulher, a literatura indica taxas de maior letalidade e mortalidade de mulheres (Barufaldi et al., 2017Barufaldi, L. A., Souto, R. M. C. V., Correia, R. S. B., Montenegro, I. V. P., Silva, M. M. A., & Lima, C. M. (2017). Violência de gênero: Comparação da mortalidade por agressão em mulheres com e sem notificação prévia de violência. Ciência & Saúde Coletiva, 22(9), 2929-2938. doi: 10.1590/1413-81232017229.12712017
https://doi.org/10.1590/1413-81232017229...
; Garcia & Silva, 2018Garcia, L. P., & Silva, G. D. M. (2018). Violência por parceiro íntimo: Perfil dos atendimentos em serviços de urgência e emergência nas capitais dos estados brasileiros. Cadernos de Saúde Pública, 34(4), 1-12. doi: 10.1590/0102-311x00062317
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; OMS, 2012Organização Mundial de Saúde [OMS]. (2012). Natureza, magnitude e consequências da violência sexual e da violência por parceiro íntimo. In: Organização Mundial da Saúde (OMS). Prevenção da Violência Sexual e da Violência pelo Parceiro Íntimo Contra a Mulher: Ação e produção de evidência (p. 11-17). Geneva: OMS.). Mesmo que existam mecanismos jurídicos para coibir e enfrentar a violência contra a mulher no Brasil, verifica-se números expressivos desse problema. Por meio do Disque 180, no primeiro semestre de 2016, foram notificados mais de 67 mil relatos de violência contra a mulher, sendo predominantes as notificações de violência física, seguidas de violências psicológica, moral, sexual, patrimonial e cárcere privado. Além disso, em 67,63% dos casos, as violências foram cometidas por homens com quem as mulheres mantinham algum relacionamento afetivo (Brasil, 2016Brasil. (2016). Ligue 180: Central de atendimento à mulher. Recuperado de http://www.spm.gov.br/balanco180_2016-3.pdf
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).

A violência conjugal está pautada na assimetria de poder entre os gêneros masculino e feminino, marcada por um ordenamento patriarcal. Tal assimetria se expressa por meio de crenças estereotipadas sobre gênero, construídas socialmente, que legitimam a violência contra a mulher (Barufaldi et al., 2017Barufaldi, L. A., Souto, R. M. C. V., Correia, R. S. B., Montenegro, I. V. P., Silva, M. M. A., & Lima, C. M. (2017). Violência de gênero: Comparação da mortalidade por agressão em mulheres com e sem notificação prévia de violência. Ciência & Saúde Coletiva, 22(9), 2929-2938. doi: 10.1590/1413-81232017229.12712017
https://doi.org/10.1590/1413-81232017229...
; Garcia & Silva, 2018Garcia, L. P., & Silva, G. D. M. (2018). Violência por parceiro íntimo: Perfil dos atendimentos em serviços de urgência e emergência nas capitais dos estados brasileiros. Cadernos de Saúde Pública, 34(4), 1-12. doi: 10.1590/0102-311x00062317
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; Waiselfisz, 2015Waiselfisz, J. J. (2015). Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil. ONU Mulheres, SPM, Flacso. Recuperado de http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf
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). Crenças são representações da realidade constituídas ao longo do desenvolvimento, por meio da interação entre ambiente, genética e experiências significativas. Essas crenças podem ser preditivas de comportamentos (Beck, 1997Beck, A. (1997). Terapia cognitiva da depressão. Rio de Janeiro: Artmed Zahar). Crenças legitimadoras de violência podem estar associadas a condutas abusivas em relacionamentos íntimos, causando prejuízos para o desenvolvimento e saúde das vítimas. Tais crenças, pautadas em uma naturalização da desigualdade entre homens e mulheres, justificam, normalizam e banalizam o ato violento (Neves, Cameira, Machado, Duarte, & Machado, 2019Neves, S., Machado, M., Machado, F., & Pinheiro, F. (2019). Attitudes toward iIntimate partner violence and intimate partner acceptance-rejection among Cape Verdean students living in Portugal. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 35(3549), 1-11. doi: 10.1590/0102.3772e3549
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). Assim, crenças sobre masculinidade que enfatizam a necessidade de poder e virilidade do homem, bem como crenças sobre feminilidade que compreendem a mulher como um ser inferior e vulnerável, contribuem para a legitimação de práticas e discursos que reforçam a violência (Paiva, Pimentel, & Moura, 2017Paiva, T. T., Pimentel, C. E., & Moura, G. B. (2017). Violência conjugal e suas relações com autoestima, personalidade e satisfação com a vida. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 10(2), 215-227. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-82202017000200007
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
; Sousa, 2017Sousa, R. F. (2017). Cultura do estupro: Prática e incitação à violência sexual contra mulheres. Revista Estudos Feministas, 25(1), 9-29. doi: 10.1590/1806-9584.2017v25n1p9
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).

Um estudo empírico apontou a presença de crenças estereotipadas de gênero e atitudes negativas dos homens autores de violência para com as mulheres. Ao analisar a percepção de homens autores de violência contra a mulher, Paixão et al. (2018Paixão, G. P. N., Pereira, A., Gomes, N. P., Souza, A. R., Estrela, F. M., Silva, F. U. R. P., et al. (2018). Naturalização, reciprocidade e marcas da violência conjugal: Percepções de homens processados criminalmente. Revista Brasileira de Enfermagem, 71(1), 178-84. doi: 10.1590/0034-7167-2016-0475
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) evidenciaram aspectos relacionados à naturalização da violência na conjugalidade, à compreensão da violência entre o casal como sendo algo privado e com condutas de não aceitação da sujeição do homem para com a mulher. Segundo os autores, o caráter privado atribuído aos episódios de violência vai ao encontro de crenças que perpassam a ideia de não criminalização do fenômeno, rejeitando a interferência de mecanismos judiciais e ações policiais. Dessa forma, os participantes apresentaram uma compreensão de que problemas conjugais são de interesse apenas do casal.

Ressalta-se que as crenças possuem funções adaptativas quando visam simplificar o conhecimento e esquematizar a realidade em que se vive. Contudo, quando elas passam a funcionar como estruturas rígidas, quando excluem e discriminam populações, elas passam a ter um caráter desadaptativo (Heredia, 2004Heredia, E. B. (2004). Perspectiva socio-cognitiva: estereótipos y esquemas de género. Em E. Barberá, & I. M. Benlloch, (Eds.), Psicologia y género (pp. 55-80). Pearson Educación, S.A., Madrid.). Evidencia-se a importância da identificação e avaliação das crenças estereotipadas de gênero que reforçam e legitimam a violência conjugal, visando a conscientização, a sensibilização e a flexibilização delas (Cabral & Rodríguez-Díaz, 2017Cabral, P. C., & Rodríguez-Díaz, F. J. (2017). Violência conjugal: Crenças de atuais e futuros profissionais implicados na sua resposta e prevenção - direitos, saúde e educação. Saber & Educar, 23(275), 152-167. doi: 10.17346/se.vol23.275
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).

Machado, Matos e Gonçalves (2008Machado, C., Matos, M., & Gonçalves, M. (2008). Manual de escala de crenças sobre a violência conjugal (E.C.V.C.) e do inventário de violência conjugal (I.V.C.): escalas de avaliação e manual. Braga: Editora Psiquilíbrios.) desenvolveram a Escala sobre Crenças de Violência Conjugal (ECVC) com objetivo de avaliar crenças sociais e culturais sobre violência conjugal. Tal instrumento investiga quatro fatores relacionados com o fenômeno: legitimação e banalização da pequena violência, legitimação da violência pela conduta da mulher, legitimação da violência pela atribuição a causas externas e legitimação da violência pela preservação da privacidade familiar.

O primeiro fator, Legitimação e banalização da pequena violência, diz respeito a crenças que endossam condutas categorizadas como pequenas violências, por exemplo, bofetadas e insultos perpetrados na relação conjugal. O segundo fator, Legitimação da violência pela conduta da mulher, está atrelado a um conjunto de crenças que legitima a violência culpabilizando a mulher pelas suas condutas fora do padrão esperado culturalmente e socialmente em uma relação, como ser uma esposa provocadora, infiel ou que não cumpra com suas obrigações domésticas e conjugais. O terceiro fator, Legitimação da violência pela atribuição a causas externas, está relacionado com crenças que tiram a responsabilidade da violência cometida pelo homem autor da violência, atribuindo-a a causas externas como o uso do álcool, desemprego e relações extraconjugais. Já o quarto fator, Legitimação da violência pela preservação da privacidade familiar, diz respeito a crenças que legitimam as violências em função da manutenção da unidade tradicional familiar, bem como da preservação da privacidade das famílias (Neves et al., 2019Neves, S., Machado, M., Machado, F., & Pinheiro, F. (2019). Attitudes toward iIntimate partner violence and intimate partner acceptance-rejection among Cape Verdean students living in Portugal. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 35(3549), 1-11. doi: 10.1590/0102.3772e3549
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).

A ECVC foi inicialmente composta por 45 itens. Após os procedimentos de refinamento, foi observado que, dos 45 itens iniciais, 10 foram considerados pouco discriminativos, sendo assim eliminados. Outros 10 itens foram eliminados devido à apresentação correlacional inferior a 0,30 com o total do instrumento. Sua versão final, portanto, ficou constituída de 25 itens. O nível de consistência interna do instrumento, avaliado por meio do coeficiente alpha de Cronbach, foi de 0,93 (Machado et al., 2008Machado, C., Matos, M., & Gonçalves, M. (2008). Manual de escala de crenças sobre a violência conjugal (E.C.V.C.) e do inventário de violência conjugal (I.V.C.): escalas de avaliação e manual. Braga: Editora Psiquilíbrios.; Sani, Coelho, & Manita, 2018Sani, A. I., Coelho, A., & Manita, C. (2018). Intervenção em situações de violência doméstica: Atitudes e crenças de polícias. Psychology, Community & Health, 7(1), 72-86. doi: 10.5964/pch.v7i1.247
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).

No que se refere ao processo de validação da ECVC, os autores desenvolveram um primeiro estudo para análise fatorial dos itens (método de componentes principais com rotação Varimax). Desse modo, após a identificação dos quatro fatores, o primeiro estudo de validação explicou 48,1% da variância dos resultados (Machado et al., 2008Machado, C., Matos, M., & Gonçalves, M. (2008). Manual de escala de crenças sobre a violência conjugal (E.C.V.C.) e do inventário de violência conjugal (I.V.C.): escalas de avaliação e manual. Braga: Editora Psiquilíbrios.). Um segundo estudo, realizado com 2391 famílias, foi conduzido com a mesma escala, dessa vez os quatro fatores explicaram 56% da variância (Machado et al., 2008Machado, C., Matos, M., & Gonçalves, M. (2008). Manual de escala de crenças sobre a violência conjugal (E.C.V.C.) e do inventário de violência conjugal (I.V.C.): escalas de avaliação e manual. Braga: Editora Psiquilíbrios.; Sani et al., 2018Sani, A. I., Coelho, A., & Manita, C. (2018). Intervenção em situações de violência doméstica: Atitudes e crenças de polícias. Psychology, Community & Health, 7(1), 72-86. doi: 10.5964/pch.v7i1.247
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). Ainda que não tenham sido identificados estudos de validação da ECVC para outros países, a escala tem se mostrado um importante instrumento de medida para amostras portuguesas da população geral (Alves & Magalhães, 2012Alves, A., & Magalhães, J. (2012). Estudo e avaliação da percepção dos munícipes do Concelho de Ourém sobre a violência doméstica. Psique, 8, 139-162. Recuperado de http://journals.ual.pt/psique/wp-content/uploads/2017/04/Estudo-e-avalia%C3%A7%C3%A3o-da-perce%C3%A7%C3%A3o-dos-mun%C3%ADcipes-do-concelho-de-Our%C3%A9m-sobre-a-viol%C3%AAncia-dom%C3%A9stica.pdf
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; Mendes & Claudio, 2010Mendes, E. R. B., & Cláudio, V. (2010). Crenças e atitudes dos estudantes de enfermagem, engenharia e psicologia acerca da violência doméstica. Em C. Nogueira et al. (Eds.), Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia (pp. 3219-3230). Braga: Universidade do Minho. Recuperado de http://repositorio.ispa.pt/handle/10400.12/1539
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; Ventura, Frederico-Ferreira, & Magalhães, 2013Ventura, M. C. A. A., Frederico-Ferreira, M. M., & Magalhães, M. J. S. (2013). Violência nas relações de intimidade: crenças e atitudes de estudantes do ensino secundário. Revista de Enfermagem Referência, 3(8), 95-103. doi: 10.12707/RIII12120
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), de mulheres em situação de violência perpetrada pelo parceiro íntimo (Santos, Matos, & Machado, 2017Santos, A., Matos, M., & Machado, A. (2017). Effectiveness of a group intervention program for female victims of intimate partner violence. Small Group Research, 48(1), 34-61. doi: 10.1177/1046496416675226
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), de adolescentes de 14 a 19 anos (Neves, Cameira, Machado, Duarte, & Machado, 2016Neves, A. S., Cameira, M., Machado, M., Duarte, V., & Machado, F. (2016). Beliefs on marital violence and self-reported dating violence: A comparative study of Cape Verdean and Portuguese adolescent. Journal of Child & Adolescent Trauma, 11, 197-204. doi: 10.1007/s40653-016-0099-7
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) e também com profissionais que atuam no enfrentamento da violência conjugal (Sani et al., 2018Sani, A. I., Coelho, A., & Manita, C. (2018). Intervenção em situações de violência doméstica: Atitudes e crenças de polícias. Psychology, Community & Health, 7(1), 72-86. doi: 10.5964/pch.v7i1.247
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).

No Brasil, considerando os alarmantes índices de violência contra mulher perpetrada por cônjuges ou ex-cônjuges (Brasil, 2016Brasil. (2016). Ligue 180: Central de atendimento à mulher. Recuperado de http://www.spm.gov.br/balanco180_2016-3.pdf
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), verifica-se a necessidade de instrumentos adaptados e validados para compreensão de fatores de risco associados ao fenômeno. Instrumentos que permitam avaliar e dimensionar crenças que legitimam a violência conjugal podem contribuir para a orientação de ações e estratégias voltadas ao enfrentamento e prevenção da violência contra a mulher (Perrin et al., 2019Perrin, N., Marsh, M., Clough, A., Desgroppes, A., Yope Phanuel, C., Abdi, A., Kaburu, F., Heitmann, S., Yamashina, M., Ross, B., Read-Hamilton, S., Turner, R., Heise, L., & Glass, N. (2019). Social norms and beliefs about gender based violence scale: A measure for use with gender based violence prevention programs in low-resource and humanitarian settings. Conflict and health, 13(6), 2-12. doi: 10.1186/s13031-019-0189-x
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).

O objetivo deste estudo foi traduzir, adaptar e avaliar evidências de validade da ECVC para a realidade brasileira. Além disso, investigou-se possíveis diferenças nos índices de crenças sobre violência conjugal, considerando as variáveis Gênero, Escolaridade e Possuir filhos.

Método

Participantes

Participaram desta pesquisa 1.337 pessoas (66,34% gênero feminino). O perfil etário da amostra predominou entre 22 e 30 anos (47,86%). Em relação ao estado civil, 64,17% eram solteiros. Do total da amostra, 26,32% tinham ao menos um filho. A maior parte da amostra se identificou com a cor branca (81,60%). A amostra constituiu-se por participantes das cinco regiões brasileiras, com o predominio da região Sul (74,27%). Foi observado que a maioria dos participantes estava cursando o ensino superior (37%). As características sociodemográficas da amostra estão apresentadas na Tabela 1.

Tabela 1
Características Sociodemográficas da Amostra

Instrumentos

Questionário sociodemográfico. Elaborado para compilação dos principais dados dos participantes, visando identificar questões como gênero, idade, estado civil, parentalidade, cor, região do país e escolaridade.

Escala de Crenças sobre Violência Conjugal (ECVC, Machado et al., 2008Machado, C., Matos, M., & Gonçalves, M. (2008). Manual de escala de crenças sobre a violência conjugal (E.C.V.C.) e do inventário de violência conjugal (I.V.C.): escalas de avaliação e manual. Braga: Editora Psiquilíbrios.). Escala desenvolvida e validada para a população adulta portuguesa. O instrumento permite avaliar as crenças legitimadoras em relação à violência física e psicológica exercida nas relações conjugais, sendo constituída por 25 itens, por meio de uma escala Likert de 5 pontos (Discordo Totalmente a Concordo Totalmente). O escore total da ECVC pode ser obtido por meio da soma de todos os itens, sendo que a soma pode ser dividida por 25 para que o escore varie de 1 a 5. O escore 5 indica maiores níveis de crenças que legitimam a violência conjugal e o escore 1 indica níveis mais baixos.

A escala, em seu estudo original, é composta por quatro fatores. O fator 1 é caracterizado por Legitimação e banalização da pequena violência (itens: 2, 9, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24 e 25), exemplificado pelo item: “É mais aceitável um homem bater na mulher do que o contrário”. O fator 2 é caracterizado por Legitimação da violência pela conduta da mulher (itens: 5, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, e 23), exemplificado pelo item: “Um(a) parceiro(a) infiel merece ser maltratado(a)”. O fator 3 é caracterizado por Legitimação da violência pela atribuição a causas externas (itens: 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 10), exemplificado pelo item: “A causa da violência é o abuso do álcool”. Por fim, o fator 4 é caracterizado por Legitimação da violência pela preservação da privacidade familiar (itens: 1, 7, 8, 9, 15 e 17), exemplificado pelo item: “Se as mulheres se portarem como boas esposas não serão maltratadas”. A escala original apresentou elevado índice de consistência interna, sendo o alfa de Cronbach no valor de 0,92.

Procedimentos de Adaptação da ECVC

O processo de adaptação da versão brasileira da ECVC está baseado nos procedimentos recomendados por Borsa, Damásio e Bandeira (2012Borsa, J. C., Damásio, B. F., & Bandeira, D. R. (2012). Adaptação e validação de instrumentos psicológicos entre culturas: Algumas considerações. Paidéia, 22(53), 423-432. doi: 10.1590/1982-43272253201314
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) e seguiu as seguintes etapas: a) tradução do instrumento para o idioma-alvo, ou seja, o português brasileiro por dois tradutores; b) síntese das versões traduzidas; c) apreciação da versão sintetizada por especialistas na área; d) tradução-reversa da versão que será enviada aos autores da escala original; e) concordância dos autores da escala sobre a versão final da escala e realiza-se um estudo piloto com população-alvo para investigar a adequação da escala.

Com base nas recomendações de Borsa et al. (2012Borsa, J. C., Damásio, B. F., & Bandeira, D. R. (2012). Adaptação e validação de instrumentos psicológicos entre culturas: Algumas considerações. Paidéia, 22(53), 423-432. doi: 10.1590/1982-43272253201314
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), a escala foi traduzida do português de Portugal para o português do Brasil por dois pesquisadores independentes residentes no Brasil, cuja língua nativa é o português brasileiro. Uma síntese das duas versões foi encaminhada para três especialistas na área da violência conjugal para investigar a clareza, relevância e representatividade dos itens do instrumento.

Após essa etapa, ajustes semânticos foram realizados e, em seguida, foi conduzida a tradução reversa da versão do português do Brasil para o português de Portugal, por um tradutor independente, fluente em português e com amplo domínio da língua portuguesa de Portugal. A tradução reversa foi encaminhada para os autores originais, para assegurar a equivalência do conteúdo. Por fim, foi realizado um estudo piloto com 10 participantes da população geral para verificar a compreensão da escala. Não foi necessário nenhum ajuste nessa etapa final. Para determinados fins, foi obtida a autorização dos autores da escala original, bem como a autorização para o processo de tradução, adaptação e de evidências de validade da escala por parte da editora Psiquilíbrios, detentora dos direitos autorais do instrumento.

Procedimentos Éticos e de Coleta de Dados para Evidências de Validade da ECVC

Para a realização da coleta de dados, foi construído um formulário autoaplicável na ferramenta Qualtrics, a qual possibilita a organização de pesquisas via web. A amostra foi recrutada por meio de divulgação do link da pesquisa na rede social Facebook com a descrição dos critérios de participação: ser brasileiro e maior de 18 anos. O convite foi publicado em perfis da rede de pesquisadores do estudo, bem como foi publicado em grupos abertos e de temáticas distintas, dos diversos estados do país. Assim que as pessoas acessavam o link, era gerada uma página com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Os participantes iniciaram a participação no estudo após confirmarem a leitura e o aceite do TCLE. Caso não aceitassem participar, uma nova mensagem contendo um agradecimento era apresentada e a coleta encerrada. Uma cópia do TCLE foi enviada por e-mail para os respondentes que assinalaram a opção de envio da cópia. O estudo obteve aprovação do Comitê de Ética da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) sob o parecer de número 2.656.371.

Análise de Dados

A fim de investigar a estrutura da Escala de Crenças sobre Violência Conjugal (ECVC) foi realizada uma análise fatorial exploratória (AFE), utilizando o método de estimação Weighted Least Squares Mean and Variance-Adjusted (WLSMV), método de estimação robusto para dados ordinais (Muthén & Muthén, 2010Muthén, L. K., & Muthén, B. O (2010). Mplus user’s guide. Los Angeles.), com rotação oblíqua (Geomin). O número de dimensões da escala foi definido com base nos pressupostos teóricos dos valores dos fatores de eigenvalues (e.g., fatores com valores superiores a 1) e da Análise Paralela (Hayton, Allen, & Scarpello, 2004Hayton, J. C., Allen, D. G., & Scarpello, V. (2004). Factor retention decisions in exploratory factor analysis: A tutorial on parallel analysis. Organizational Research Methods, 7(2), 191-205. doi: 10.1177/1094428104263675
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), de forma que mais de um modelo pudesse ser testado.

Os índices de ajuste da ECVC foram avaliados por três indicadores, o Comparative Fit Index (CFI), o Tucker-Lewis Index (TLI) e o Root Mean Square Error of Approximation (RMSEA). Os critérios para os índices de ajuste, para que o modelo seja considerado adequado, sugere que o CFI e TLI devem estar acima de 0,90, e o RMSEA deve apresentar valores menores que 0,08, sendo que o intervalo de confiança de 90% do RMSEA deve ser inferior a 0,10 (Brown, 2015Brown, T. A. (2015). Confirmatory Factor Analysis for Applied Research (2nd ed.). New York, NY: Guilford Publications.).

Ao realizar a AFE, foi selecionada uma parte independente (n = 517) da amostra total (N =1.337). A fim de diminuir possíveis vieses, essa amostra independente utilizada na AFE foi composta por um equivalente a 40% da amostra total, sendo que esses participantes foram selecionados de forma aleatória do banco de dados da amostra total.

Foram realizadas duas análises fatoriais confirmatórias (AFC) com o objetivo de investigar qual estrutura seria a mais adequada à ECVC. As análises foram desenvolvidas com uma segunda amostra independente (n = 821), selecionada de forma aleatória da amostra total (N = 1.337). Foi utilizado o método de estimação WLSMV para o desenvolvimento das duas AFC.

A primeira AFC avaliou a estrutura original da escala, composta por quatro fatores (legitimação e banalização da pequena violência, legitimação da violência pela conduta da mulher, legitimação da violência pela atribuição a causas externas e legitimação da violência pela preservação da privacidade familiar). A segunda AFC foi realizada para investigar a adequação do modelo unidimensional, no qual os 25 itens carregam em um fator geral de crenças sobre violência conjugal. Os índices de ajuste utilizados foram: CFI (> 0,90), TLI (> 0,90), e RMSEA (< 0,08, com intervalo de confiança de 90% inferior a 0,10). Com o objetivo de identificar possíveis fontes de problemas na especificação do modelo, foram avaliados os índices de modificação (IM) com valores acima de 50,00 (Brown, 2015Brown, T. A. (2015). Confirmatory Factor Analysis for Applied Research (2nd ed.). New York, NY: Guilford Publications.).

Após a definição da estrutura da escala, foram investigados os índices de consistência interna. Foram ainda utilizados três indicadores para avaliar confiabilidade da ECVC: alfa de Cronbach ordinal (a), ômega (v) e confiabilidade composta (CC).

Com objetivo de investigar possíveis diferenças nos índices de crenças sobre violência conjugal de acordo com as características sociodemográficas, foram realizadas análises de comparação de média dos grupos. As diferenças nos níveis de concordância com crenças legitimadoras de violência conjugal de acordo com gênero (homens e mulheres), parentalidade (ausência e presença de filhos) e escolaridade (ensino médio, ensino superior e pós-graduação) foram realizadas por meio de uma ANOVA fatorial envolvendo três variáveis independentes. Optou-se por realizá-la para que fosse possível investigar as interações entre as diferentes categorias propostas como variáveis independentes (Field et al., 2012Field, A., Miles, J. and Field, Z. (2012). Discovering Statistics Using R. Los Angeles: SAGE Publications LTD.).

A fim de comparar a escolaridade dos participantes, a amostra foi dividida em três grupos. Estes foram criados para integrar participantes com níveis de escolaridade similar. O primeiro grupo reuniu participantes que concluíram o ensino médio. Os participantes que estavam cursando o ensino superior ou possuíam graduação formaram o grupo ensino superior. O terceiro grupo incluiu participantes que estavam cursando algum curso de pós-graduação ou já haviam concluído. As comparações entre os diferentes níveis de escolaridade foram realizadas por meio do teste post-hoc Bonferroni.

Foram utilizados dois softwares complementares para o desenvolvimento das análises do presente estudo. A AFE e a AFC foram realizadas por meio do software Mplus.7. A análise paralela, a análise dos indicadores de consistência interna (alfa de Cronbach ordinal, ômega e confiabilidade composta) e as análises de comparação das médias dos grupos (ANOVA fatorial) foram realizadas por meio do software R Studio 4.0.

Resultados

Adaptação da Escala

O procedimento de tradução de português de Portugal para o português do Brasil foi realizado por duas pesquisadoras independentes residentes no Brasil (P1) e (P2), cuja língua nativa é o português brasileiro. Após a versão da tradução independente de (P1) e (P2), foram encontradas algumas divergências de terminologias. Uma síntese das traduções independentes foi realizada, em conjunto com (P1) e (P2), embasada nos ajustes da equivalência semântica, ajustes linguísticos e adaptações terminológicas, com consequente elaboração da síntese I da tradução da escala. A síntese I traduzida e adaptada para o português do Brasil foi enviada para três especialistas na área da violência conjugal (E1), (E2) e (E3).

Por meio da análise da (E1) foram sugeridas modificações em quatro palavras da escala, por exemplo, em relação à frase original “O mais importante para as crianças é que a família permaneça unida, mesmo quando há violência entre o casal”, foi sugerida a mudança “O melhor para as crianças é que a família permaneça unida, mesmo quando há violência entre o casal”. A análise da (E2) não indicou modificações em nenhum dos itens. Já a análise de (E3) sugeriu modificações em 10 palavras da escala, por exemplo, em relação à frase original “A causa da violência é o abuso de álcool”, foi sugerida a mudança para “O abuso de álcool é a causa da violência”. Após uma nova síntese e discussão entre as pesquisadoras (P1) e (P2), a versão final intitulada síntese II foi enviada para tradução reversa da versão do português do Brasil para o português de Portugal, por uma tradutora independente, fluente em português e com amplo domínio do português de Portugal. A tradução reversa indicou adequação da versão de tradução e adaptação cultural. Por fim, a tradução reversa foi encaminhada para os autores originais que asseguraram a equivalência do conteúdo. Após as modificações finais e aprovação dos autores originais da escala, um estudo piloto foi realizado com 10 pessoas da população geral assegurando sua adequação para aplicação final do estudo de verificação de evidências de validade da ECVC na população brasileira. Na etapa do estudo piloto, com a população geral, não foi sugerida nenhuma modificação nos 25 itens da escala, evidenciando uma compreensão adequada por parte dos participantes. Nenhum item da escala foi excluído no processo de verificação de evidências de validade da ECVC para a população brasileira.

Análise Fatorial Exploratória

Os resultados da análise paralela demonstraram que a estrutura unidimensional seria a mais adequada para a ECVC (Hayton et al., 2004Hayton, J. C., Allen, D. G., & Scarpello, V. (2004). Factor retention decisions in exploratory factor analysis: A tutorial on parallel analysis. Organizational Research Methods, 7(2), 191-205. doi: 10.1177/1094428104263675
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). Por outro lado, o critério de Kaiser-Guttman (eigenvalue > 1) sugeriu a retenção de quatro fatores. Os eigenvalues foram: 12,44 para o Fator 1; 1,81 para o Fator 2; 1,11 para o Fator 3; e 1,06 para o Fator 4. A fim de identificar o modelo mais parcimonioso, a EFA investigou a estrutura unidimensional e de quatro fatores de primeira ordem da ECVC.

Os resultados do modelo unidimensional demonstraram que todos os itens carregaram significativamente nessa dimensão geral. Foi observado que os índices de ajuste para o modelo unidimensional foram excelentes (Tabela 2). No modelo de quatro fatores de primeira ordem, foi observado que dos 25 itens, 13 itens carregaram no primeiro fator, 16 itens carregaram no segundo fator, oito itens carregaram no terceiro fator e nove itens no quarto fator. No total dos 25 itens, 18 itens apresentaram cross-loadings, sendo que todos os itens do terceiro e do quarto fator eram compostos por itens com cross-loadings. Apesar dos índices de ajuste do modelo terem sido satisfatórios, compreende-se que esse modelo de quatro fatores de primeira ordem se constitui como uma solução inadequada para a ECVC, porque mais da metade dos itens apresentam cross-loadings (Tabela 2), dificultando a interpretabilidade teórica do modelo.

Tabela 2
Análise Fatorial Exploratória da Estrutura de Quatro Fatores de Primeira Ordem e da Estrutura Unidimensional da ECVC

Análise Fatorial Confirmatória

Foram testados dois modelos para investigar a estrutura da ECVC. O primeiro modelo avaliou os índices de ajuste da escala no modelo de quatro fatores de primeira ordem proposto pelos autores (Machado et al., 2008Machado, C., Matos, M., & Gonçalves, M. (2008). Manual de escala de crenças sobre a violência conjugal (E.C.V.C.) e do inventário de violência conjugal (I.V.C.): escalas de avaliação e manual. Braga: Editora Psiquilíbrios.). O segundo modelo investigou a adequação da estrutura unidimensional da ECVC. Os dois modelos foram testados com uma amostra independente (n = 821).

A primeira AFC avaliada testou o modelo proposto por Machado et al. (2008Machado, C., Matos, M., & Gonçalves, M. (2008). Manual de escala de crenças sobre a violência conjugal (E.C.V.C.) e do inventário de violência conjugal (I.V.C.): escalas de avaliação e manual. Braga: Editora Psiquilíbrios.) de quatro fatores de primeira ordem originais da escala, apresentou índices de ajuste medíocres [χ2 (gl) = 5.761,0* (260), p < 0,05; CFI = 0,59; TLI = 0,53; e RMSEA = 0,16 (0,16-0,17)]. Foi avaliado também o modelo de quatro fatores com a inclusão de índices de modificação (IM), a fim de investigar se os índices de ajuste do modelo poderiam ser melhorados. Foram testados seis modelos, de modo que cada IM foi incluído de forma aditiva ao modelo testado anteriormente. Foram incluídos seis IM, todos referentes a correlações bivariadas entre os itens (Item 11 X Item 20, r = 1,84; Item 7 X Item 8, r = -1,20; Item 7 X Item 24, r = 0,60; Item 8 X Item 24, r = 0,62; Item 4 X Item 14, r = 0,87; Item 6 X Item 9, r = 0,91). Os índices de ajuste do modelo de quatro fatores com os IM permanecerem insatisfatórios [χ2 (gl) = 5.020,9* (254), p < 0,05; CFI = 0,65; TLI = 0,58; e RMSEA = 0,15 (0,14-0,16)]. Apesar da recomendação de Brown (2015Brown, T. A. (2015). Confirmatory Factor Analysis for Applied Research (2nd ed.). New York, NY: Guilford Publications.) de testar todos os IM acima de 50, após a inclusão de seis IM com valores acima de 100,00 e a baixa melhora dos índices de ajuste do modelo, decidiu-se por não incluir os IM com valores abaixo de 100,00.

Os resultados da segunda AFC demonstraram índices de ajuste excelentes para o modelo unidimensional [χ2 (gl) = 1.330,1* (275), p < 0,05; CFI = 0,92; TLI = 0,91; e RMSEA = 0,07 (0,06-0,07)]. Esses resultados demonstram que o modelo unidimensional se constitui como a estrutura mais adequada para a ECVC. Além disso, foi observado que, na estrutura unidimensional, todos os itens apresentaram carga superior a 0,46 (Tabela 2). Os achados da AFC estão em concordância com o observado na AFE, de modo que os resultados das duas análises somam evidências que o modelo unidimensional se constitui como a estrutura mais adequada a ECVC.

Confiabilidade

Os índices de confiabilidade do modelo unifatorial da ECVC foram investigados por meio do alfa de Cronbach ordinal (α), do ômega (ω) e da confiabilidade composta (CC). Os três indicadores de consistência interna da versão brasileira da ECVC apresentaram valores satisfatórios (α (95% IC) = 0,90 (0,88-0,92); ω (95% I. C.) = 0,89 (0,87-0,91); CC = 0,96).

Tabela 3
Modelo Unidimensional da Versão Brasileira da ECVC

Comparação entre os Grupos em Relação a Crenças Legitimadoras de Violência Conjugal

Os resultados da ANOVA fatorial demonstraram que há diferenças nos níveis de concordância com crenças legitimadoras de violência conjugal, considerando as variáveis Gênero, Escolaridade e Possuir filhos. Em relação ao gênero, foi observado que homens apresentaram níveis mais altos de crenças legitimadoras de violência conjugal em comparação as mulheres. Os participantes que possuíam filhos apresentaram médias mais altas nos índices de crenças legitimadoras de violência conjugal, quando comparados àqueles que não possuíam filhos (Tabela 4).

Tabela 4
Comparação dos Índices de Crenças sobre Violência Conjugal segundo o Gênero, a Escolaridade, a Presença e Ausência de Filhos

Foi observado que os participantes apresentavam diferenças nas médias de acordo com sua escolaridade (Tabela 4). O teste de post-hoc Bonferroni demonstrou que os participantes do grupo ensino médio apresentaram médias mais altas sobre as crenças legitimadoras de violência conjugal do que os indivíduos dos grupos ensino superior e pós-graduação. Além disso, os participantes do grupo ensino superior obtiveram médias mais altas de crenças legitimadoras de violência conjugal quando comparados aos indivíduos do grupo de pós-graduação.

Ao analisar a interação entre escolaridade e parentalidade na ANOVA fatorial, foi observada que essa interação foi estatisticamente significativa. Esses resultados sugerem que a presença de filhos e menor escolaridade estava associada à presença de maiores níveis de concordância com crenças legitimadoras de violência conjugal, sendo observada uma diminuição gradativa nos níveis de crenças com o aumento da escolaridade (Tabela 4).

Discussão

Esta pesquisa teve como principal objetivo a adaptação transcultural da Escala de Crenças sobre Violência Conjugal - ECVC para o português brasileiro, bem como verificar diferentes evidências de validade do instrumento, para tanto, empregou-se diferentes procedimentos. Ademais, investigou-se possíveis diferenças nos índices de crenças sobre violência conjugal, considerando as variáveis gênero, escolaridade e possuir filhos.

Os resultados demonstraram que a estrutura fatorial da versão brasileira da ECVC (unifatorial) diferenciou-se do modelo proposto no estudo original (quatro fatores de primeira ordem), tendo em vista que o modelo unifatorial foi o que apresentou melhores índices de ajustes. Tal resultado indica que o instrumento não diferenciou as especificidades das dimensões do construto das crenças sobre violência conjugal no contexto brasileiro. Além disso, foi observado que os índices de confiabilidade do escore geral da versão brasileira foram adequados, tal como nos estudos com a escala original (Machado et al., 2008Machado, C., Matos, M., & Gonçalves, M. (2008). Manual de escala de crenças sobre a violência conjugal (E.C.V.C.) e do inventário de violência conjugal (I.V.C.): escalas de avaliação e manual. Braga: Editora Psiquilíbrios.; Sani et al., 2018Sani, A. I., Coelho, A., & Manita, C. (2018). Intervenção em situações de violência doméstica: Atitudes e crenças de polícias. Psychology, Community & Health, 7(1), 72-86. doi: 10.5964/pch.v7i1.247
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).

Para o contexto da pesquisa, o significado de crenças legitimadoras sobre violência conjugal foi global, compreendendo tanto a conceituação da pequena violência, violência pela conduta da mulher, atribuição a causas externas e preservação da privacidade familiar. Pontua-se que os pesquisadores ou profissionais que forem utilizar a medida devem considerar crenças legitimadoras de violência conjugal como um construto geral, ou seja, não devem avaliar de forma específica os fatores Legitimação e banalização da pequena violência, Legitimação da violência pela conduta da mulher, Legitimação da violência pela atribuição a causas externas e Legitimação da violência pela preservação da privacidade familiar identificados no estudo de Machado et al. (2008Machado, C., Matos, M., & Gonçalves, M. (2008). Manual de escala de crenças sobre a violência conjugal (E.C.V.C.) e do inventário de violência conjugal (I.V.C.): escalas de avaliação e manual. Braga: Editora Psiquilíbrios.).

Compreende-se que as diferenças entre a estrutura observada na versão original da ECVC e na versão brasileira da ECVC podem estar associadas aos procedimentos de análise de dados. No estudo original da escala, as dimensões foram investigadas por meio da análise de componentes principais (ACP) com rotação ortogonal Varimax (Machado et al., 2008Machado, C., Matos, M., & Gonçalves, M. (2008). Manual de escala de crenças sobre a violência conjugal (E.C.V.C.) e do inventário de violência conjugal (I.V.C.): escalas de avaliação e manual. Braga: Editora Psiquilíbrios.). Apesar da análise de ACP ter sido uma estratégia muito utilizada para investigar a estrutura de instrumentos psicológicos, essa apresenta limitações que podem ser superadas pela AFE. Entre as principais limitações da ACP, observa-se que esta divide os itens do instrumento psicológico por meio de seus componentes, de modo que não diferencia a variância comum da variância específica entre os itens. Ao não diferenciar a variância comum e a específica de cada item, a construção dos componentes pode se tornar imprecisa. Somado a isso, o uso da rotação ortogonal Varimax, a qual prevê que os componentes observados na escala serão independentes, pode ter prejudicado a identificação da estrutura da escala (Damásio, 2012Damásio, B. F. (2012). Uso da análise fatorial exploratória em psicologia. Avaliação Psicológica, 11(2), 213-228. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-04712012000200007&lng=pt&tlng=pt
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).

No presente estudo, optou-se por utilizar estratégias de análise de dados robustas, como a realização da AFE e AFC utilizando o método de estimação WLSMV e a rotação oblíqua Geomin na AFE. Pontua-se que o método de estimação WLSMV aplicado na AFE e na AFC considera que os itens analisados apresentam características de dados ordinais. O uso da rotação Geomin na AFE considera que os fatores observados podem estar relacionados (Damásio, 2012Damásio, B. F. (2012). Uso da análise fatorial exploratória em psicologia. Avaliação Psicológica, 11(2), 213-228. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-04712012000200007&lng=pt&tlng=pt
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). Com base nos resultados do presente estudo, opta-se por apresentar a versão brasileira da ECVC com uma estrutura unifatorial.

O presente estudo investigou as diferenças nos índices de crenças que legitimam a violência conjugal, evidenciando que homens apresentaram níveis mais altos de concordância com crenças legitimadoras de violência conjugal em comparação as mulheres. Os resultados encontrados no Brasil corroboram resultados de estudos em Portugal. Para Mendes e Cláudio (2010Mendes, E. R. B., & Cláudio, V. (2010). Crenças e atitudes dos estudantes de enfermagem, engenharia e psicologia acerca da violência doméstica. Em C. Nogueira et al. (Eds.), Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia (pp. 3219-3230). Braga: Universidade do Minho. Recuperado de http://repositorio.ispa.pt/handle/10400.12/1539
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), homens na faixa etária dos 18 aos 20 anos e estudantes de ensino superior, por meio do uso da medida da escala ECVC, possuem uma maior tendência de banalizar condutas violentas. Outro estudo realizado entre 180 municípios do Conselho de Ourém constatou que 89% dos participantes responderam de forma positiva à questão da ECVC “É mais aceitável um homem bater na mulher do que o contrário”. Dessa parcela, 58% eram do sexo masculino (Ventura et al., 2013Ventura, M. C. A. A., Frederico-Ferreira, M. M., & Magalhães, M. J. S. (2013). Violência nas relações de intimidade: crenças e atitudes de estudantes do ensino secundário. Revista de Enfermagem Referência, 3(8), 95-103. doi: 10.12707/RIII12120
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).

O estudo de Santos et al. (2017Santos, A., Matos, M., & Machado, A. (2017). Effectiveness of a group intervention program for female victims of intimate partner violence. Small Group Research, 48(1), 34-61. doi: 10.1177/1046496416675226
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) realizado em Portugal, utilizou a ECVC para avaliar o impacto de uma intervenção com mulheres em situação de violência conjugal. Foi observado que as participantes tiveram uma tendência a discordar das crenças legitimadoras de violência no pré-teste. Porém, após a intervenção, foi identificado que os escores das participantes diminuíram. As mulheres tornaram-se ainda menos concordantes com crenças que justificam ou legitimam comportamentos violentos no contexto conjugal.

Os estudos sobre violência conjugal apontam que os homens (parceiros ou ex-parceiro) são os principais autores da violência entre o casal (Barufaldi et al., 2017Barufaldi, L. A., Souto, R. M. C. V., Correia, R. S. B., Montenegro, I. V. P., Silva, M. M. A., & Lima, C. M. (2017). Violência de gênero: Comparação da mortalidade por agressão em mulheres com e sem notificação prévia de violência. Ciência & Saúde Coletiva, 22(9), 2929-2938. doi: 10.1590/1413-81232017229.12712017
https://doi.org/10.1590/1413-81232017229...
; Garcia & Silva, 2018Garcia, L. P., & Silva, G. D. M. (2018). Violência por parceiro íntimo: Perfil dos atendimentos em serviços de urgência e emergência nas capitais dos estados brasileiros. Cadernos de Saúde Pública, 34(4), 1-12. doi: 10.1590/0102-311x00062317
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; Waiselfisz, 2015Waiselfisz, J. J. (2015). Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil. ONU Mulheres, SPM, Flacso. Recuperado de http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf
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). Tal cenário, compreendido por meio dos estudos de gênero, evidencia a influência da cultura patriarcal e machista na produção de violências e na construção de desigualdades entre homens e mulheres (Sousa, 2017Sousa, R. F. (2017). Cultura do estupro: Prática e incitação à violência sexual contra mulheres. Revista Estudos Feministas, 25(1), 9-29. doi: 10.1590/1806-9584.2017v25n1p9
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). Segundo Neves, Cameira, Machado, Duarte e Machado (2016Neves, A. S., Cameira, M., Machado, M., Duarte, V., & Machado, F. (2016). Beliefs on marital violence and self-reported dating violence: A comparative study of Cape Verdean and Portuguese adolescent. Journal of Child & Adolescent Trauma, 11, 197-204. doi: 10.1007/s40653-016-0099-7
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), crenças legitimadoras de violência conjugal estão arraigadas na sociedade e há uma relação entre crenças e comportamento, ou seja, a pessoa que possui a tendência de legitimar a crença violenta, poderá agir de acordo. Desse modo, intervir e buscar flexibilizar essas crenças, poderá contribuir para a diminuição de comportamentos violentos nas relações.

As comparações de grupo considerando as variáveis parentalidade e escolaridade também indicaram diferenças nos índices de concordância com crenças legitimadoras de violência conjugal. Participantes que possuem filhos apresentaram médias mais altas nos índices de crenças sobre violência conjugal, quando comparados àqueles que não possuem filhos. No estudo de Alves e Magalhães (2012Alves, A., & Magalhães, J. (2012). Estudo e avaliação da percepção dos munícipes do Concelho de Ourém sobre a violência doméstica. Psique, 8, 139-162. Recuperado de http://journals.ual.pt/psique/wp-content/uploads/2017/04/Estudo-e-avalia%C3%A7%C3%A3o-da-perce%C3%A7%C3%A3o-dos-mun%C3%ADcipes-do-concelho-de-Our%C3%A9m-sobre-a-viol%C3%AAncia-dom%C3%A9stica.pdf
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), com a população portuguesa, foi identificado que as pessoas com filhos também possuíam níveis mais elevados nos índices de crenças sobre violência conjugal. Quando questionados se concordavam com o fato de que o mais importante era ter a família unida, mesmo quando existem episódios de violência entre o casal, 56% dos participantes responderam de forma positiva, e destes, 38% possuíam ao menos um filho. Os autores portugueses problematizaram essa concepção atrelada ao conceito de família tradicional patriarcal dos participantes.

Ainda que existam diversas configurações familiares na atualidade, a ideia da necessidade da permanência da figura paterna na criação dos filhos prevalece, mesmo que exista violência entre o casal, evidenciando influências dos valores patriarcais que atribuem ao homem/pai o papel de provedor e a mulher/mãe o papel daquela que cuida do lar e se sujeita à manutenção do modelo hegemônico de família e do casamento (Cabral & Rodríguez-Díaz, 2017Cabral, P. C., & Rodríguez-Díaz, F. J. (2017). Violência conjugal: Crenças de atuais e futuros profissionais implicados na sua resposta e prevenção - direitos, saúde e educação. Saber & Educar, 23(275), 152-167. doi: 10.17346/se.vol23.275
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; Carneiro et al., 2017Carneiro, J. B., Gomes, N. P., Estrela, F. M., Santana, J. D. M., Rosana S., & Erdmann, A. L. (2017). Violência conjugal: Repercussões para mulheres e filhas(os). Escola Anna Nery, 21(4), 1-7. doi: 10.1590/2177-9465-ean-2016-0346
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; Sousa, 2017Sousa, R. F. (2017). Cultura do estupro: Prática e incitação à violência sexual contra mulheres. Revista Estudos Feministas, 25(1), 9-29. doi: 10.1590/1806-9584.2017v25n1p9
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). Portanto, a preocupação com a criação dos filhos e a manutenção da família tradicional é um fator importante para a compreensão da manutenção da violência nessas relações, bem como da permanência das mulheres em situações de violência conjugal (Pereira, Camargo & Aoyama, 2018Pereira, D. C. S., Camargo, V. S., & Aoyama, P. C. N. (2018). Análise funcional da permanência das mulheres nos relacionamentos abusivos: Um estudo prático. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 10(2), 6-22. doi: 10.31505/rbtcc.v20i2.1026
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).

Por fim, participantes apresentaram diferenças nas médias de acordo com sua escolaridade. Em relação ao nível de concordância das crenças com o grau educacional, Mendes e Cláudio (2010Mendes, E. R. B., & Cláudio, V. (2010). Crenças e atitudes dos estudantes de enfermagem, engenharia e psicologia acerca da violência doméstica. Em C. Nogueira et al. (Eds.), Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia (pp. 3219-3230). Braga: Universidade do Minho. Recuperado de http://repositorio.ispa.pt/handle/10400.12/1539
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), também constataram que a maioria de sua amostra (84%) de estudantes do nível superior dos cursos de engenharia, enfermagem e psicologia manifestou de forma geral menor grau de concordância com crenças legitimadoras da violência conjugal. Ressalta-se que os estudantes do curso de enfermagem e psicologia apresentaram níveis mais baixos de concordância com as crenças legitimadoras de violência conjugal, quando comparado com os estudantes de engenharia. Segundo os autores, estudantes dos cursos de enfermagem e psicologia tiveram conteúdos em sua grade curricular relacionados à violência, o que pode ter contribuído para baixos níveis de aceitação do fenômeno. Desse modo, informações referentes à violência conjugal influencia o tipo de crenças e atitudes frente à mesma. Questões do ponto de vista macroestruturais, como as desigualdades e exclusões sociais, dificuldades de acesso ao ensino e desemprego, representam fatores de risco para a naturalização das crenças acerca da violência e perpetuação dela (Grossi & Coutinho, 2017Grossi, P. K., & Coutinho, A. R. C. (2017). Violência contra a mulher do campo: Desafios às políticas públicas. Serviço Social em Revista, 20(1), 25-40. doi: 10.5433/1679-4842.2017v20n1p25
https://doi.org/10.5433/1679-4842.2017v2...
).

Considerações Finais

Este estudo apresenta evidências de validade da ECVC. Os resultados indicaram que esse instrumento pode se constituir como uma ferramenta útil na avaliação de crenças legitimadoras de violência conjugal. Foi observado que todos os itens da ECVC apresentaram carga fatorial adequada, além disso, a escala apresentou elevado grau de consistência interna e uma adequada aplicabilidade para a população adulta em geral. O instrumento se mostrou sensível para diferenciar grupos de acordo com variáveis sociodemográficas, sendo que indivíduos do gênero masculino, com menor escolaridade e que possuíam filhos apresentaram maior concordância com crenças legitimadoras de violência conjugal.

O estudo apresenta limitações. Apesar de a amostra ter sido composta por participantes de todas as regiões brasileiras, apresentou grande representatividade da região Sul e se caracterizou como uma amostra de conveniência, razão pela qual a generalização dos resultados obtidos deve ser feita com cautela. Estudos futuros podem ser realizados visando obter uma participação mais representativa de outras regiões do Brasil, como as regiões Norte, Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste. Em pesquisas futuras, esforços devem ser realizados no sentido de envolver amostras mais heterogêneas, como pessoas com ensino fundamental incompleto e completo. Outra possível limitação é que a escala, por ser uma medida de autorrelato, pode ter induzido efeitos de desejabilidade social. Nesse sentido, estudos futuros podem ser delineados para testar o controle desses efeitos.

Apesar das limitações, a ECVC pode ser um instrumento útil para mensurar crenças que naturalizam e legitimam relações violentas na conjugalidade para população geral. Grande parte das intervenções para o enfrentamento da violência conjugal se baseia na construção da equidade de gênero, flexibilização de estereótipos de gênero e mudanças em crenças que legitimam a violência. Nesse sentido, a ECVC pode contribuir para avaliar resultados de intervenções psicossociais com enfoque preventivo, bem como intervenções clínicas para tratamento de vítimas e autores de violência conjugal.

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Nota das autoras:

  • Agradecimentos: à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2019
  • Revisado
    21 Jul 2020
  • Aceito
    30 Set 2020
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