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Desafios do Ensino da Avaliação Psicológica no Brasil: Adaptando Ações

Challenges in teaching Psychological Assessment in Brazil: adapting actions

Desafíos en la Enseñanza de la Evaluación Psicológica en Brasil: adaptación de acciones

Resumo

A pandemia da Covid-19 exigiu muitas mudanças em diversas áreas da Psicologia, como, por exemplo, a Avaliação Psicológica. Formas de ensino na modalidade presencial não se mostraram eficientes na modalidade remota e foi preciso uma adaptação cuidadosa que não fragilizasse o ensino e cuidasse das técnicas utilizadas, como os testes psicológicos. Assim, o objetivo do presente estudo é discutir a formação em Avaliação Psicológica, contudo, dessa vez, a luz do desafio decorrente da vivência da pandemia de Covid-19. Pretende-se, dessa maneira, oferecer subsídios para um ensino de qualidade para o momento vivido atualmente.

Palavras-chave:
avaliação psicológica; educação superior; Covid-19

Abstract

The Covid-19 pandemic required many changes in several areas of Psychology, such as Psychological Assessment. The face-to-face teaching methods did not prove efficient in the remote modality and thus there was a need for a careful adaptation that would address techniques, such as psychological assessments, without impairing learning. Therefore, this study aimed to discuss training in psychological assessment, in light of the challenge resulting from the experience of the Covid-19 pandemic. Hence, we intend to offer subsidies for quality training in psychological assessment for the moment currently experienced.

Keywords:
psychological assessment; university education; Covid-19

Resumen

La pandemia de Covid-19 requirió muchos cambios en varias áreas de la psicología, como la evaluación psicológica. Los métodos de enseñanza en la modalidad presencial no resultaron eficientes en la modalidad remota, y se requirió una cuidadosa adaptación que no debilitara la docencia y cuidara las técnicas utilizadas, como las pruebas psicológicas. Así, el objetivo del presente estudio es discutir la formación en Evaluación Psicológica, sin embargo, esta vez, a la luz del desafío que surge de la experiencia de la pandemia Covid-19. De esta forma, se pretende ofrecer subvenciones para la educación de calidad para el momento que estamos viviendo.

Palabras clave:
evaluación psicológica; educación universitaria; COVID-19

A Avaliação Psicológica (AP) é uma área de grande notoriedade na Psicologia brasileira, tanto em termos de pesquisa quanto de práticas profissionais (Bueno & Peixoto, 2018Bueno, J. M. H., & Peixoto, E. M. (2018). Avaliação Psicológica no Brasil e no Mundo Psicologia: Ciência e Profissão, 38(3), 108-121. doi: 10.1590/1982-3703000208878
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). Desde o reconhecimento da Psicologia como profissão no Brasil, a prática da Avaliação Psicológica com objetivos diagnósticos, de orientação (profissional e pedagógica), bem como solução de problemas de ajustamento, foi considerada como uma função privativa desse profissional (Brasil, 1962Brasil (1962). Lei N° 4.119, de 27 de agosto de 1962. Recuperado de https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/l4119.htm.
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). Nesse sentido, alguns cuidados com o ensino dessa prática tão significativa para a Psicologia são fundamentais.

Ao longo da história da Avaliação Psicológica no Brasil vários foram os desafios enfrentados: confusão de Avaliação Psicológica com testagem psicológica, escassez de instrumentos construídos ou adaptados para o contexto brasileiro, desvalorização da área por parte da sociedade e dos próprios psicólogos, entre outros. Para enfrentar todos esses momentos, pesquisadores da AP buscaram identificar determinantes de cada problema enfrentado para resolvê-los ou atenuá-los. É nesse contexto, de suplantar os desafios vivenciados assim como responder às demandas sociais, que, muitas vezes, a área se debruçou sobre sua formação, seja em nível de graduação, seja de forma continuada.

O presente artigo pretende, uma vez mais, discutir a formação em Avaliação Psicológica (AP), contudo, dessa vez, a luz do desafio decorrente da vivência da pandemia de Covid-19. A vivência desta pandemia desafiou o ensino em Psicologia que se viu transportado para a modalidade remota emergencial. Essa medida temporária buscou auxiliar na contenção da contaminação pelo vírus SARS COV-21 que possíveis aglomerações em sala de aula poderiam causar. Contudo, como ensinar práticas psicológicas, como observação, aplicação de instrumentos psicológicos, interpretação de tabelas normativas etc. em um contexto remoto? Como garantir a qualidade desse ensino? E os aspectos éticos e de segurança dos testes psicológicos? Neste manuscrito serão realizadas reflexões e orientações em discussão na área, de modo que será apresentada brevemente a compreensão atual sobre Avaliação Psicológica e seu uso no contexto profissional e a preocupação com essa formação para, posteriormente, ser problematizada a transposição do ensino presencial para o remoto emergencial, suas possibilidades e limitações, no contexto da Avaliação Psicológica.

A Avaliação Psicológica e seu Uso no Contexto Profissional

Por possibilitar a compreensão de fenômenos psíquicos e comportamentais dos indivíduos em seus diversos contextos de atuação, a Avaliação Psicológica é vista como uma das áreas mais importantes da Psicologia. Trata-se de um processo sistemático e científico de coleta de informações dos indivíduos avaliados, cujo objetivo é inferir acerca das características psicológicas deles (American Educational Research Association [AERA] & National Council on Measurement in Education, 2014American Educational Research Association, American Psychological Association, & National Council on Measurement in Education (2014). Standards for Educational and Psychological Testing. American Psychological Association.). O Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2018Conselho Federal de Psicologia - CFP. (2018). Resolução nº 09, de 25 de abril de 2018. Recuperado de http://crp11.org.br/upload/Resolu%C3%A7%C3%A3o-CFP-n%C2%BA-09-2018-com-anexo.pdf.
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) a descreve como um procedimento estruturado de mensuração dos fenômenos psicológicos com a finalidade de prover informações pertinentes ao processo de tomada de decisão (de forma individual, grupal e/ou institucional).

A Avaliação Psicológica visa investigar de forma ampla e profunda os aspectos psicológicos, a partir de demandas específicas e exclusivas de cada indivíduo avaliado (Groth-Marnat & Wright, 2016Groth-Marnat, G., & Wright, A. J. (2016). Handbook of psychological assessment (6th ed). John Wiley & Sons.). Outrossim, além dos cuidados éticos inerentes a esse processo, também é fundamental que o psicólogo saiba identificar os objetivos de cada avaliação psicológica a ser conduzida (Bandeira, Trentini, & Krug, 2016Bandeira, D. R., Trentini, C. M., & Krug, J. S. (2016). Psicodiagnóstico: Formação, cuidados éticos, avaliação de demanda e estabelecimento de objetivos. Em C. S. Hutz, D. R. Bandeira, C. M. Trentini, & J. S. Krug (Eds.), Psicodiagnóstico (pp. 21-26). Artmed.), tenha conhecimento teórico acerca dos construtos a serem mensurados (Primi, 2018Primi, R. (2018). Avaliação Psicológica no Século XXI: de onde viemos e para onde vamos. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(esp), 87-97. doi: 10.1590/1982-3703000209814.
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), bem como o domínio na condução das técnicas de mensuração e elaboração de documentos provenientes de tal processo (CFP, 2018Conselho Federal de Psicologia - CFP. (2018). Resolução nº 09, de 25 de abril de 2018. Recuperado de http://crp11.org.br/upload/Resolu%C3%A7%C3%A3o-CFP-n%C2%BA-09-2018-com-anexo.pdf.
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; Schneider, Marasca, Dobrovolski, Müller, & Bandeira, 2020Schneider, A. M. A., Marasca, A. R., Dobrovolski, T. A. T., Müller, C. M., & Bandeira, D. R. (2020). Planejamento do Processo de Avaliação Psicológica: Implicações para a Prática e para a Formação. Psicologia: Ciência e Profissão, 40(e214089), 1-13. doi: 10.1590/1982-3703003214089.
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).

Bandeira, Trentini e Krug (2016Bandeira, D. R., Trentini, C. M., & Krug, J. S. (2016). Psicodiagnóstico: Formação, cuidados éticos, avaliação de demanda e estabelecimento de objetivos. Em C. S. Hutz, D. R. Bandeira, C. M. Trentini, & J. S. Krug (Eds.), Psicodiagnóstico (pp. 21-26). Artmed.) destacaram que a primeira etapa em Avaliação Psicológica, independentemente do contexto de atuação do psicólogo, é ter de forma bem estabelecida quais serão os objetivos ou a finalidade dela. As autoras sugerem que o psicólogo, antes mesmo de aplicar qualquer técnica de mensuração, identifique quais os motivos que levaram o indivíduo a solicitar esse serviço. A prática de Avaliação Psicológica também requer que o profissional tenha o conhecimento especializado sobre as teorias psicológicas. Cumpre informar que a avaliação não ocorre no vácuo, mas sim necessita ser contextualizada, sendo esperado, por parte do psicólogo, o domínio acerca do referencial teórico dos construtos a serem mensurados, bem como das técnicas avaliativas que poderão ser empregadas no processo (Moura, 2017Moura, D. P. F. (2017). O ensino de avaliação psicológica e as tendências pedagógicas: Possibilidades para um planejamento crítico. Revista Brasileira de Ensino Superior, 3(3), 1-6. doi: 10.18256/2447-3944.2017.v3i3.2047
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; Primi, 2018Primi, R. (2018). Avaliação Psicológica no Século XXI: de onde viemos e para onde vamos. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(esp), 87-97. doi: 10.1590/1982-3703000209814.
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).

A respeito das técnicas de mensuração, há um amplo rol de procedimentos que visam a investigação dos mais diversos construtos, tais como os testes psicológicos, inventários, entrevistas, dentre outros (Urbina, 2014Urbina, S. (2014). Essentials of Psychological Testing. (2nd ed.). John Wiley & Sons, Inc.). O domínio, teórico e técnico, na condução de tais procedimentos é fundamental para tornar o processo investigativo mais eficaz (AERA & NCME, 2014).

Cabe destacar que no contexto profissional toda a Avaliação Psicológica deve ser amparada na Resolução CFP no 09/2018 (CFP, 2018Conselho Federal de Psicologia - CFP. (2018). Resolução nº 09, de 25 de abril de 2018. Recuperado de http://crp11.org.br/upload/Resolu%C3%A7%C3%A3o-CFP-n%C2%BA-09-2018-com-anexo.pdf.
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). De acordo com essa Resolução o psicólogo pode usar duas fontes de informação para coleta de dados. O primeiro conjunto de fontes de informação, denominado fontes fundamentais, diz respeito aos testes psicológicos aprovados pelo CFP, entrevistas psicológicas, anamneses e protocolos ou registros de observação de comportamentos obtidos individualmente ou em grupo. Já a segunda categoria, denominada de fontes complementares, engloba as técnicas e instrumentos não psicológicos que possuam respaldo da literatura científica da área e que respeitem o código de ética da Psicologia, e também os documentos técnicos (como protocolos ou relatórios de equipes multiprofissionais).

Segundo a Resolução, ainda, o profissional de Psicologia deve amparar sua AP em ao menos uma fonte fundamental e complementar, caso julgue necessário, com as fontes complementares. A escolha de qual fonte fundamental, assim como os métodos de investigação a serem utilizados em serviços de Avaliação Psicológica, é prerrogativa do profissional da Psicologia, desde que eles estejam devidamente fundamentados na literatura e nas normativas do CFP. Dessa forma, no contexto profissional, o psicólogo só pode realizar as atividades que estão regulamentadas pelo Conselho. Contudo, conforme dito anteriormente, no ano de 2020, o mundo se viu assolado por uma epidemia que cobrou o distanciamento social como forma de controle da contaminação pelo vírus Sars Cov-21. Os psicólogos tiveram que adaptar suas práticas também a um contexto remoto emergencial e o Conselho Federal teve que se debruçar sobre suas normativas a fim produzir normas possíveis para a garantia da realização dos serviços psicológicos no contexto de pandemia ao mesmo tempo zelando pela qualidade técnica do trabalho do psicólogo e o bem-estar da sociedade.

Embora no ano de 2019 o CFP tivesse publicado a Nota técnica CFP nº 07/2019, que “Orienta psicólogas(os) sobre a utilização de testes psicológicos em serviços realizados por meio de tecnologias de informação e da comunicação” (CFP, 2019Conselho Federal de Psicologia - CFP. (2019). Resolução Nº 18/2019. Reconhece a Avaliação Psicológica como especialidade da Psicologia e altera a Resolução CFP Nº 13, de 14 de setembro de 2007, que institui a Consolidação das Resoluções relativas ao Título Profissional de Especialista em Psicologia. Recuperado de https://atosoficiais.com.br/cfp/resolucao-do-exercicio-profissional-n-18-2019-reconhece-a-avaliacao-psicologica-como-especialidade-da-psicologia-e-altera-a-resolucao-cfp-no-13-de-14-de-setembro-de-2007-que-institui-a-consolidacao-das-resolucoes-relativas-ao-titulo-profissional-de-especialista-em-psicologia
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) não havia se avançado muito, tanto em termos de discussão na área de AP em relação a realização da AP remota no contexto profissional quanto no desenvolvimento de testes psicológicos nessa modalidade. Essa nota técnica distinguia os testes informatizados (aqueles cuja aplicação ocorre por mediação de um computador), dos testes desenvolvidos e validados para o contexto online (aqueles em que o psicólogo não está presente no mesmo espaço físico que o examinando) e orientava os psicólogos na utilização e distinção de cada uma das modalidades.

Contudo, quando foi decretado a pandemia no Brasil e instituído o isolamento social, apenas quatro instrumentos estavam disponíveis no Satepsi na modalidade de aplicação remota. Foi necessário, então, pensar em um fazer da AP que contemplasse as fontes fundamentais e garantisse a qualidade do serviço psicológico, ainda que remotamente. O CFP por meio da Comissão Consultiva de Avaliação Psicológica produziu, então, a Cartilha de Boas Práticas para Avaliação Psicológica no contexto de pandemia que orientava psicólogos na realização do processo de AP nesse período, considerando alguns aspectos importantes para a produção de um resultado fidedigno.

Esse impacto no fazer do psicólogo que já estava na prática profissional também provocou um efeito rebote. A necessidade de se ensinar novas competências para os estudantes de Psicologia. Esse aspecto, acrescido dos esforços para manutenção da qualidade do ensino presencial na modalidade remota emergencial demandada pela pandemia, constituíram-se em grandes desafios para os professores da área. Esse aspecto será melhor discutido no tópico adiante.

O Ensino de Avaliação Psicológica

Conforme apontado anteriormente, a Avaliação Psicológica perpassa diversos contextos de atuação do psicólogo, assim como demanda o conhecimento aprofundado das teorias psicológicas e dos métodos, técnicas e procedimentos de avaliação dos construtos ou fenômenos psicológicos. Desenvolver, nos estudantes, as competências necessárias para isso não é tarefa fácil. Nesse sentido, uma discussão que acompanha a área em diversos espaços, sejam eles em congressos ou publicações científicas, é a formação do profissional que trabalhará com Avaliação Psicológica. Em geral, os trabalhos reconhecem o caráter transversal da Avaliação Psicológica para a Psicologia (ou seja, sua atuação em diversos contextos), assim como sua íntima relação com o próprio desenvolvimento da ciência psicológica (Primi, 2018Primi, R. (2018). Avaliação Psicológica no Século XXI: de onde viemos e para onde vamos. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(esp), 87-97. doi: 10.1590/1982-3703000209814.
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; Reppold, Zanini, & Noronha, 2019Reppold, C. T., Zanini, D.S., & Noronha, A. P. P., (2019). O que é avaliação psicológica. Em M. N. Baptista; M. Muniz; C. T. Reppold; C. H. S. S. Nunes; L. F. Carvalho; R. Primi; Ana P. P. Noronha; A. G. Seabra; S. M. Wechsler; C. S. Hutz; & L. Pasquali (Orgs.), Compêndio de Avaliação Psicológica (pp. 15-28). Petrópolis: Vozes.). Dessa forma, qualificar o psicólogo que trabalhará com avaliação psicológica é qualificar a própria Psicologia e potencializar seu desenvolvimento como ciência.

De fato, Noronha, Carvalho, Miguel, Souza e Santos (2010Noronha, A. P. P., Carvalho, L. F., Miguel, F. K., Souza, M. S., & Santos, M. A. (2010). Sobre o ensino de Avaliação Psicológica. Avaliação Psicológica, 9(1), 139-146. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-04712010000100015&lng=pt&tlng=pt
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) apontam para a necessidade de que a formação do profissional psicólogo possibilite não apenas o desenvolvimento de competências generalistas, ou seja, para sua atuação em qualquer contexto da Psicologia, mas também um enfoque mais cuidadoso na formação do profissional para realização da Avaliação Psicológica. Os autores ainda apontam que os currículos de Psicologia deveriam cobrir conteúdos como teoria de medida e psicometria, avaliação da personalidade e inteligência e elaboração de documentos psicológicos.

Tentando agrupar as discussões da área a esse respeito, em um esforço conjunto, pesquisadores/professores da área ligados ao Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica publicaram um artigo intitulado “Diretrizes para o ensino de Avaliação Psicológica” (Nunes et al., 2012Nunes, M. F. O., Muniz, M., Reppold, C. T., Faiad, C., Bueno, J. M. H., & Noronha, A. P. P. (2012). Diretrizes para o ensino de avaliação psicológica. Avaliação Psicológica, 11(2), 309-316. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-04712012000200016&lng=pt&tlng=pt
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). Nesse artigo, os autores refletem, em consonância com as normativas do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e Código de Ética Profissional do Psicólogo (CEPP), algumas diretrizes para uma formação profissional em Avaliação Psicológica, ética e competente. De forma didática Nunes et al. (2012Nunes, M. F. O., Muniz, M., Reppold, C. T., Faiad, C., Bueno, J. M. H., & Noronha, A. P. P. (2012). Diretrizes para o ensino de avaliação psicológica. Avaliação Psicológica, 11(2), 309-316. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-04712012000200016&lng=pt&tlng=pt
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) listam 27 competências básicas que devem ser desenvolvidas nos estudantes, assim como propõem disciplinas e conteúdos programáticos relacionados a cada uma das competências listadas, estrutura de ensino e referências possíveis. Dentre as 27 competências básicas, é possível citar como exemplos a capacidade para refletir sobre as consequências sociais da avaliação; saber analisar fenômenos de natureza cognitiva, afetiva e comportamental em variados contextos; ser capaz de planejar uma Avaliação Psicológica de acordo com o objetivo, o público-alvo e o contexto, e identificar as possibilidades de uso e limitações das técnicas de avaliação.

Apesar das profícuas discussões e tentativas de sistematização e produção de orientações, as críticas à formação em Avaliação Psicológica ainda persistem na atualidade. Em geral, essas críticas apontam para o inegável papel que a formação do profissional nos cursos de graduação em Psicologia, acrescido de uma carga horária insuficiente, além de recursos materiais e humanos deficitários têm no desenvolvimento deficitário das competências necessárias para a Avaliação Psicológica. Em geral, a formação continuada tem sido apontada como uma possível solução a esse problema (Borsa, 2016Borsa, J. C. (2016). Considerações sobre a formação e a prática em avaliação psicológica no Brasil. Temas em Psicologia, 24(1), 131-143. doi: 10.9788/TP2016.1-09
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). Em certa medida, a discussão da necessidade de especialização em Avaliação Psicológica era uma demanda antiga da área que reconhecia a dificuldade de que a cobertura das 27 competências básicas apontadas por Nunes et al. (2012Nunes, M. F. O., Muniz, M., Reppold, C. T., Faiad, C., Bueno, J. M. H., & Noronha, A. P. P. (2012). Diretrizes para o ensino de avaliação psicológica. Avaliação Psicológica, 11(2), 309-316. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-04712012000200016&lng=pt&tlng=pt
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), assim como de todos os elementos necessários para uma atuação ética e comprometida conforme apontada por Noronha et al. (2010Noronha, A. P. P., Carvalho, L. F., Miguel, F. K., Souza, M. S., & Santos, M. A. (2010). Sobre o ensino de Avaliação Psicológica. Avaliação Psicológica, 9(1), 139-146. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-04712010000100015&lng=pt&tlng=pt
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) pudessem ser contemplados em um curso de graduação em Psicologia generalista e com carga horária cada vez mais reduzida.

Apesar desses desafios, é inegável o avanço experimentado pela área de Avaliação Psicológica (e sobretudo a brasileira) nos últimos anos. Observa-se um aumento significativo de publicações, entidades científicas, grupos de trabalho na Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação (ANPEPP) (Reppold & Noronha, 2018Reppold, C. T., & Noronha, A. P. P. (2018). Impacto dos 15 Anos do Satepsi na Avaliação Psicológica Brasileira. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(esp.), 6-15. doi: 10.1590/1982-3703000208638
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) e, no campo da prática profissional, a Avaliação Psicológica ganha cada vez mais espaço e adentra, ainda mais, diferentes contextos (jurídico, organizacional, clínica, saúde, escolar etc.) apresentando contribuições significativas.

Esse movimento crescente da área impulsionou seu reconhecimento como especialidade e, na Assembleia de Políticas, da Administração e das Finanças (Apaf) de dezembro de 2018, o Sistema Conselhos reconhece a Avaliação Psicológica como uma especialidade da Psicologia. A publicação de normativa com seu reconhecimento se dá meses depois por meio da Resolução CFP no 18/2019. Esse reconhecimento não só atende uma demanda antiga da área, mas também sinaliza a discussão tão presente entre os professores e pesquisadores da necessidade de formação continuada e especialização em Avaliação Psicológica que ultrapasse ou avance nos conhecimentos básicos (e, algumas vezes, insuficientes) da formação generalista do curso de psicologia para a atuação na área.

Embora o reconhecimento da especialidade de avaliação psicológica tenha apontado para um futuro promissor da área com a sinalização da necessidade de aprofundamento dos estudos, no ano de 2020 a área se viu impactada com outra demanda social. Com a vivência da pandemia de Covid-19 decretada pela Organização Mundial de Saúde em março de 2020 alguns desafios e demandas que se vislumbravam na área se tornaram mais prementes. Entre eles, o uso de recursos tecnológicos ou tecnologias da informação e comunicação (TICs) como método de ensino de Avaliação Psicológica.

Estratégias para o Ensino de Avaliação Psicológica nos Novos Tempos

O preparo de disciplinas sobre a Avaliação Psicológica envolve uma constante necessidade de atualização no que tange aos modelos teóricos, técnicas de avaliação e apropriação do trabalho desenvolvido pelo Conselho Federal de Psicologia por meio do Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos (SATEPSI). O distanciamento social provocado pela pandemia tem transformado as aulas de Avaliação Psicológica, tão marcadas pelo manuseio de manuais e materiais de testes, aplicações em turmas de alunos, visando o conhecimento de instruções e itens, simulações da apresentação das técnicas em pequenos grupos, entre outras práticas em grande parte impossibilitadas pelo ensino a distância (EAD) ou remoto. Nesse sentido, tem demandado dos professores uma adaptação substancial, assim como uma reflexão de quais são as competências básicas necessárias de serem trabalhadas no ensino de Avaliação Psicológica. Embora essa discussão seja antiga, conforme apontado no tópico anterior, os novos tempos e novas demandas reavivou reflexões importantes na área. Atualmente, ademais da necessidade de se trabalhar competências já reconhecidas previamente (ver, por exemplo, Nunes et al., 2012Nunes, M. F. O., Muniz, M., Reppold, C. T., Faiad, C., Bueno, J. M. H., & Noronha, A. P. P. (2012). Diretrizes para o ensino de avaliação psicológica. Avaliação Psicológica, 11(2), 309-316. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-04712012000200016&lng=pt&tlng=pt
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), observa-se a urgência do desenvolvimento de competências outrora identificadas como emergentes e, pelo contexto atual passam a ser reconhecidas como novas competências (Zanini, Reppold, & Faiad, 2021Zanini, D. S., Reppold, C. T., & Faiad, C. (2021). Do lápis e papel à modalidade remota: considerações sobre a avaliação psicológica em tempos de pandemia. Em K. L. Oliveira, M. Muniz, T. H. Lima, D. S. Zanini & A. A. A. Santos (Orgs.), Formação e estratégias de ensino em Avaliação Psicológica. Vetor.).

Assim, desaconselha-se que o professor encaminhe slides contendo os estímulos/itens de um teste, cópias de manuais ou aulas gravadas que apresentem testes psicológicos. Isso porque a divulgação dos estímulos de um teste psicológico de forma ampla e com difícil controle pode levar à banalização do material, ao conhecimento público e, consequentemente, ao treino das respostas. Caso isso ocorra, dois problemas se vislumbram: 1) o possível efeito de aprendizagem do teste e falseamento dos dados, e 2) o desrespeito ao Código de Ética Profissional do Psicólogo que, em seu Art.18, determina que “o psicólogo não divulgará, ensinará, cederá, emprestará ou venderá a leigos instrumentos e técnicas psicológicas que permitam ou facilitem o exercício ilegal da profissão” (CFP, 2005Conselho Federal de Psicologia. (2005). Código de Ética Profissional do Psicólogo. Brasília. Recuperado de https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/07/codigo-de-etica-psicologia.pdf
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).

Ainda, com relação ao item 1 acima, cabe destacar que os efeitos nocivos da divulgação irrestrita ou descontrolada dos testes psicológicos, seus estímulos e forma de correção. Essa exposição põe em risco não só o processo de Avaliação Psicológica em geral, por meio do comprometimento de uma técnica psicológica preciosa como é o teste psicológico, como também expõe o indivíduo e a sociedade às consequências de resultados possivelmente falseados pelo efeito de aprendizagem ou treino prévio que o indivíduo pode realizar. Com certeza esse é um aspecto importante a ser trabalhado no ensino de Avaliação Psicológica e relaciona-se à tecnologia profissional que os testes psicológicos representam e o cuidado ético do profissional com eles. Esse importante aspecto da formação do psicólogo concernente à responsabilidade profissional com os instrumentos psicológicos continua merecendo atenção no ensino remoto.

Durante a pandemia, os professores podem fazer uso de instrumentos para uso em contexto de pesquisa e cujos itens estão disponíveis em artigos em suas aulas. Além disso, é possível incorporar aos planos de ensino instrumentos psicológicos de uso irrestrito para treino de habilidades de leitura e interpretação de manual, correção, interpretação de dados e consulta a tabelas normativas, sendo salientados os cuidados éticos devidos. Considera-se útil enfatizar as habilidades necessárias ao profissional responsável pela realização da testagem, bem como os aspectos relativos à interpretação de escores (CFP, 2020aConselho Federal de Psicologia. (2020a). Nota Orientativa sobre ensino da Avaliação Psicológica em modalidade remota no contexto da pandemia de Covid-19. Brasília. Recuperado de https://site.cfp.org.br/nota-orientativa-sobre-ensino-da-avaliacao-psicologica-em-modalidade-remota-no-contexto-da-pandemia-de-covid-19/
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; CFP, 2020bConselho Federal de Psicologia (2020b). Cartilha de boas práticas em avaliação psicológica em contexto de Pandemia. Brasília: CFP. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2020/08/clique-aqui.pdf
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).

Apesar dos testes psicológicos serem muito relevantes às disciplinas de Avaliação Psicológica, os alunos necessariamente precisam ter desenvolvidas suas habilidades de uso de outras técnicas, como observação e entrevistas; integração de informações referentes às várias fontes de informação; compreensão de discrepâncias entre os dados; e utilização das informações para a tomada de decisão (Schneider, Marasca, Dobrovolski, Müller, & Bandeira, 2020Schneider, A. M. A., Marasca, A. R., Dobrovolski, T. A. T., Müller, C. M., & Bandeira, D. R. (2020). Planejamento do Processo de Avaliação Psicológica: Implicações para a Prática e para a Formação. Psicologia: Ciência e Profissão, 40(e214089), 1-13. doi: 10.1590/1982-3703003214089.
https://doi.org/10.1590/1982-37030032140...
). Essas habilidades tendem a ter seu desenvolvimento menos afetado pelas aulas à distância porque o professor pode se valer de bons exemplos de roteiros de entrevistas, relatos de observações e, de forma mais geral, estudos de caso. Apesar disso, cabe ressaltar a importância de se trabalhar alguns cuidados éticos e técnicos necessários na condução de uma entrevista ou observação na modalidade remota. Assim, o professor pode estimular o aluno a refletir se a demanda, as características do avaliando e o contexto podem vir a interferir nos resultados de um processo avaliativo conduzido na modalidade remota (CFP, 2020aConselho Federal de Psicologia. (2020a). Nota Orientativa sobre ensino da Avaliação Psicológica em modalidade remota no contexto da pandemia de Covid-19. Brasília. Recuperado de https://site.cfp.org.br/nota-orientativa-sobre-ensino-da-avaliacao-psicologica-em-modalidade-remota-no-contexto-da-pandemia-de-covid-19/
https://site.cfp.org.br/nota-orientativa...
). Nesse sentido, a pandemia pode se constituir em uma grande oportunidade para se repensar o processo de AP e potencializar nos alunos a capacidade de análise analítica e crítica tão importante para a condução de um bom processo avaliativo.

As aulas expositivas podem permanecer como recursos úteis à apresentação de conceitos, mas é importante que o professor crie exercícios que permitam a caracterização, descrição e identificação de processos e técnicas. No ensino a distância podem ser criadas tarefas em formulários online, como o Google Formulários ou a ferramenta de questionários do Moodle, pois ambos permitem a exibição de feedbacks para as respostas fornecidas pelos alunos. Uma ideia de atividade é utilizar o Google Formulários para que o aluno se depare com questões em que precise identificar se um instrumento avalia o funcionamento executivo de idosos ou a capacidade atencional de crianças, por exemplo. Para tanto, o formulário pode remeter à lista de testes do SATEPSI com parecer favorável ao uso por psicólogos. O professor pode vincular aos formulários videoaulas que possibilitem a revisão de informações para respostas fundamentadas em uma prévia arguição.

As leituras ainda ocupam um lugar importante, possibilitando uma compreensão aprofundada de conceitos e processos, além de subsidiarem a redação de documentos com melhor fundamentação. Ressalta-se que muitos alunos apresentam queixas de cansaço em relação às videoaulas, de modo que o professor precisa gerenciar a quantidade de leitura ao tempo dos vídeos. Textos mais objetivos e com exemplos que ilustram conceitos e procedimentos são especialmente interessantes.

De fato, o ensino remoto evidencia a importância de se trabalhar os fundamentos da Avaliação Psicológica e sua diferença da testagem psicológica. O processo de Avaliação Psicológica demanda uma compreensão maior do fenômeno que se quer avaliar, do contexto em que a avaliação ocorrerá e das condições do indivíduo que será avaliado. Todas essas reflexões se fazem extremamente pertinentes em tempos de pandemia, em que há um evento externo que pode influenciar o processo de coleta de informações do indivíduo. Ensinar a refletir sobre isso, quando, como e quem avaliar em que contexto faz parte do desenvolvimento das competências básicas que devem ser desenvolvidas nos alunos e nunca foi tão necessária e desafiadora como nos tempos atuais.

Considerações Finais

A Avaliação Psicológica é uma área de grande notoriedade na Psicologia brasileira, tanto em termos de pesquisa quanto de práticas profissionais. Ao longo dos tempos, grandes foram os desafios vivenciados pela área. Este artigo aponta, historicamente, alguns dos desafios vivenciados pela Avaliação Psicológica no Brasil e seu desenvolvimento. Posteriormente, problematiza-se a dificuldade e complexidade do ensino de Avaliação Psicológica em um contexto de “enxugamento” de currículos e redução de carga horária no ensino superior e as formas que a área tem encontrado para lidar com essa realidade. Entre elas destaca-se o reconhecimento de área de conhecimento e especialização profissional no Brasil, ocorrido recentemente. Apesar disso, os novos tempos trazidos pela pandemia da Covid-19 trouxe demandas ainda mais desafiadoras. Algumas competências vislumbradas para um futuro foram antecipadas e de maneira célere fez com que a área refletisse sobre seus modos e métodos de prática e ensino.

No presente artigo algumas possibilidades adaptativas foram apontadas a essa nova realidade. Embora aparentemente possa se hipotetizar que se trata apenas da transposição do ensino presencial para o remoto, de fato, no contexto da Avaliação Psicológica há outros aspectos envolvidos. Ao se tratar de testes psicológicos com possibilidade de aprendizagem e consequente comprometimento dos resultados obtidos, o cuidado com a tecnologia profissional que representam se faz muito importante. Apesar disso, este artigo apresenta possíveis estratégias para o ensino de Avaliação Psicológica no ensino remoto com o objetivo de auxiliar o docente a ministrar o conteúdo das aulas sem que haja prejuízos para a formação do aluno no curso, mas, ainda assim, assegurando uma prática ética e comprometida com a profissão e sociedade.

Importante salientar que não estão sanadas aqui as possíveis estratégias de ensino utilizadas no ensino emergencial. Seria necessária uma busca com os docentes da área a fim de buscar novas possibilidades de ensino, sendo esta uma possível sugestão de pesquisa. Ainda, a consulta de materiais publicados internacionalmente, bem como mais materiais nacionais, poderia fornecer mais aspectos, também com qualidade, para o ensino.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Dez 2021

Histórico

  • Recebido
    20 Abr 2021
  • Revisado
    10 Ago 2021
  • Aceito
    11 Ago 2021
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