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O significado de uma vida: a história e o presente na Psicologia de São Paulo

HISTÓRIA

O significado de uma vida: a história e o presente na Psicologia de São Paulo1 1 Discurso de posse da autora na Academia Paulista de Psicologia. PUC-Campinas. 27/06/97.

Raquel Souza Lobo Guzzo

Acadêmica 37/Pontifícia Universidade Católica de Campinas

Dom Gilberto Pereira Lopes, Grão Chanceler da PUC-Campinas e Arcebispo Arquediocesano de Campinas;

Prof. Padre José Benedito de Almeida David, Magnífico Reitor;

Prof. Carlos de Aquino Pereira, Vice Reitor para Assuntos Acadêmicos;

Prof. José Francisco Veiga, Vice Reitor para Assuntos Administrativos;

Prof Dr. Arrigo Angelini, Presidente da Academia Paulista de Psicologia;

Senhores Acadêmicos, Autoridades, Senhores e Senhoras presentes;

Caros alunos...

Em uma solenidade como esta, eterniza-se uma ocasião especial, em que estão presentes ao mesmo tempo, o reconhecimento social de um trabalho realizado, por isso, uma grande alegria e, com maior ênfase, a responsabilidade e o compromisso vitalício com a ética e com a formação de novos profissionais.

Preservar as contribuições daqueles que se foram e que, em sua trajetória de vida, mostraramse dedicados à Psicologia no Brasil, reveste-se de grande importância para a construção social desta área do conhecimento, porque ser psicólogo em nosso país, é muito mais do que aprender um conjunto de técnicas para compreender o ser humano e lidar com seus problemas. Ser Psicólogo no Brasil é envolver-se com a triste realidade das desigualdades sociais e do desrespeito aos direitos humanos que há séculos tem marcado a sociedade em que vivemos. A Psicologia como profissão é ampla o suficiente para estar onde o Homem possa estar, respondendo com estratégias de intervenção que visem minimizar seu sofrimento no contexto em que ele vive.

Por essa razão, faz-se necessário lembrar, sempre que for oportuno, principalmente aos novos profissionais, que o tempo passa muito depressa e que para interferir na história e construir uma sociedade melhor a cada ano, é preciso muita perseverança, paixão, humildade e ideal. É preciso, sobretudo, muita dedicação à formação profissional.

Neste momento, em que aparecem sob o mesmo espaço JAMES FERRAZ ALVIN, o patrono da cadeira 37, e STANISLAU KRYNSKI seu último ocupante, é preciso um aprofundado exercício de reflexão para perceber e explicitar o quanto, na leitura de quem os sucede, tiveram objetivos comuns e, de suas vidas e obras, construíram as bases para o futuro que hoje é a realidade em que vivemos profissionalmente.

A Psicologia, como uma área do conhecimento e de atuação tem características próprias ... é sedutora, na medida em que encanta e envolve aqueles que com ela tem contato; é exigente, pois impõe padrões elevados e continuados de formação, grande número de pesquisas e aplicações para tornar-se disponível e eficaz à comunidade; é plural e complexa, pois apresenta-se sob um grande conjunto de sistemas e matrizes teóricas que procuram estudar, compreender e explicar o Homem nas suas relações com o ambiente, além de possuir uma infinidade de técnicas e procedimentos de intervenção nos diferentes contextos onde o mesmo se desenvolve.

A cada passo que se dá no sentido do crescimento profissional e científico em Psicologia, tem-se sempre a sensação que se caminha para trás, tão grande é o cenário que vai se descortinando sobre os campos de estudo e trabalho, tantos são os recortes possíveis no conhecimento e as necessidades de desenvolvimento tecnológico para a área. Sendo a ciência cumulativa, é preciso um enorme esforço de integração do conhecimento para que o aprimoramento possa acontecer. É preciso ainda, clareza de princípios e valores sem os quais a Psicologia corre o risco de mais ferir do que curar, de mais prejudicar do que desenvolver, de mais escravizar do que libertar.

Nesse espírito, a Academia Paulista de Psicologia se estabeleceu. Fundada em dezembro de 1979, por ocasião da comemoração internacional dos 100 anos de instituição da Psicologia como ciência e profissão, a Academia tem procurado dentre vários objetivos, difundir a Psicologia, resguardar sua história, colaborar com a formação de novos profissionais e influenciar a determinação de políticas públicas relacionadas à empreendimentos de caracter psicológico ou psico-social.

Nesse ponto, parece relevante trazer a baila, pela leitura que faço, a importância da cadeira 37 desta Academia, a qual tenho a honra de ocupar a partir de hoje, procurando manter seu perfil e cumprindo com suas finalidades.

Tendo como patrono DR JAMES FERRAZ AL VIN, médico psiquiatra, no auge de sua produtividade no início do século, 1921-1937, a cadeira 37 é marcada pela pesquisa e inúmeros questionamentos sobre diferentes aspectos patogênicos, etiológicos, clínicos, terapêuticos e experimentais relacionados com a resolução de problemas neuro-psiquiátricos (Alvin, 1931). Naquela época, o modelo médico era o que melhor se desenvolvia nas buscas de soluções aos problemas humanos e sociais.

Interessante descobrir o vigoroso interesse pela investigação científica, desde os primórdios da ciência psicológica em nosso país.

Como médico, naquela época, membro da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, desde 1927, Dr. Alvin procurava fazer presente a relação da atuação prática com a pesquisa e a descoberta científica. Mesmo vivendo em uma época em que grandes dificuldades se impunham àqueles que dedicavam suas vidas ao progresso da ciência, expressas pela carência e primitivismo dos recursos científicos e tecnológicos, Dr. Alvin procurava publicar seus estudos e discutí-los em reuniões científicas nacionais e internacionais. Fazia com isso o conhecimento avançar, mesmo que a passos lentos para a duração de sua vida. Três de seus estudos merecem destaques.

O primeiro e o segundo, intitulados, respectivamente, "Profilaxia do Suicídio" e "Contribuições ao Estudo do Suicídio em São Paulo", datados de 1927, descrevem a incidência do fenômeno na população de São Paulo com estatísticas da época, e expressam a preocupação com o seu aumento; analisam a influência de fatores no aparecimento do problema, tais como estações do ano, clima, raça, idade, estado civil, sexo, profissões, psicopatias e hereditariedade e propõem saídas para o seu controle, através do que ele denominou "profilaxia social e individual".

Chamo a atenção pela importância, apontada por ele, das ações preventivas já nessa época; da necessidade de estudos epidemiológicos em que os fenômenos fossem caracterizados na população, e da denúncia sobre a influência da publicidade nesse assunto. Aponta também as razões associadas ao problema, incluindo aí, o alcoolismo, abalos morais, alienação e a miséria.

Impressiona como o passado pode ser tão presente!!! Como as propostas tem sido tão parecidas desde o início do século até a sua virada... como, apesar de tanto progresso, caminhamos tão pouco!!! O alcoolismo, os problemas morais, a alienação e a miséria continuam em nosso meio, e assustadoramente em grupos etários mais jovens do que naquela época.

Mesmo com o avanço da tecnologia, em que, na era da informática e das telecomunicações, não sofremos mais da ausência, dificuldade ou demora na obtenção de informações, não conseguimos mudar a situação. Problemas de saúde pública continuam mais crescentes do que o próprio avanço dos anos, deixando transparecer a nossa impotência diante dos fatos, fazendo-nos pensar que não temos outra saída, senão a convivência com os mesmos.

Nossas atuais estatísticas sobre os problemas psicológicos de crianças, jovens e adultos não aparecem, seja porque efetivamente não a temos, seja por que são tão alarmantes que preferimos ocultá-las como se pudéssemos esconder a nossa miséria vivendo como se ela não existisse.

No terceiro estudo, intitulado "Classificações das enfermidades mentais no Brasil", publicado em 1928, Dr. Alvin retoma a história de diversas classificações das doenças mentais, chamando a atenção para a importância e os limites desse referencial, no trabalho com as pessoas com necessidades especiais em diferentes contextos.

Novamente aqui, a passagem de quase um século parece importar pouco. Continuamos no Brasil, trabalhando com referenciais classificatórios estrangeiros e ainda oferecemos resistência à realização de estudos dessa natureza, sem a devida reflexão, assumindo muitas das vezes, posturas contrárias às propostas classificatórias com a única preocupação de que servem apenas para rotular a criança.

Sabemos, no entanto, que para atender às necessidades especiais de crianças e adolescentes em seu processo de desenvolvimento, precisamos tomar como referência fundamentos teóricos e resultados de investigações nacionais. E para o desenvolvimento de referenciais nacionais, precisaremos formar novos profissionais com crítica aguçada, com curiosidade e motivação pelo seu objeto de estudo e com um verdadeiro engajamento social.

Na verdade, o psicólogo brasileiro não dispõe ainda de instrumentos para o conhecimento da realidade em que vai atuar. Muitas vezes tem estudado em literatura já antiga e, mais do que isso, vem refletindo uma realidade que não é a nossa. É preciso que extremados cuidados sejam tomados para que a pesquisa psicológica possa desenvolver-se em nosso âmbito como verdadeira ferramenta do conhecimento' e desenvolvimento social.

O sentido da Cadeira 37, parece-me um chamamento ao modelo preventivo de atuação do Psicólogo. Ocupada por STANISLAU KRYNSKI, de 1982 a 1996, chamo a atenção para o interesse e a dedicação, também deste ilustre professor da PUC de São Paulo e da UNICAMP, em favor do desenvolvimento das crianças. Psiquiatra de formação, o Prof. Krynski percorreu o mundo acadêmico ensinando a prevenção de problemas mentais e psico-sociais, sendo por muitos conhecido como o introdutor da Psiquiatria Infantil no Brasil. Pelo seu trabalho e estudos foi o fundador e primeiro presidente da Associação Brasileira para Estudos da Deficiência Mental e também da Associação Iberoamericana na mesma área, tendo sempre a preocupação com setores de Higiene Mental dos aparelhos sociais a serviço da comunidade.

Na leitura de sua diversificada obra, observa-se a ênfase a na posição contrária ao assistencialismo prestado ao deficiente, e a denúncia constante de que toda a criança tem o direito ao desenvolvimento pleno, de acordo com suas capacidades. Defendeu a criança e a sua proteção pelo estado e sociedade. Chama a atenção do leitor aos maltratos sociais e familiares cometidos às crianças, fala da violência física, da criança escrava, do abandono emocional, abuso sexual e privação educacional a que estão sujeitas em nossa sociedade. (Krynski, 1969 e 1985)

Denunciar a ausência de direitos às crianças no Brasil na década de 60, demonstra a grandeza do pensamento de Dr. Krysnki. Voltamos no tempo com uma realidade que não se moveu um centímetro sequer do lugar onde estava, embora passados trinta anos...

Desde 1989, com a promulgação da Declaração Universal sobre os Direitos de Crianças e Adolescentes pelas Nações Unidas, os países vem sendo chamados a mudar a tnica de seu crescimento dando mais importância aos índices de desenvolvimento humano, priorizando o que há de mais valioso - a vida.

Dois aspectos gostaria de ressaltar aqui para finalizar: o primeiro refere-se à semelhança dos dois protagonistas da Psicologia paulista, que mesmo vivendo em tempos diferentes, trabalhando em contextos diferentes buscavam os mesmos ideais: garantir formação técnica e crítica de profissionais de saúde mental e desenvolver a consciência da população sobre a necessidade da prevenção. O segundo aspecto, decorrente do primeiro, refere-se ao fato de que os problemas mentais e psico sociais da população são de responsabilidade social mais do que técnica. Ambos chamam a atenção para a criação de Políticas Públicas que possam orientar as ações comunitárias nesse âmbito.

Parece evidente que trabalhar com a saúde exige muito mais do que um perfil puramente acadêmico e enganosamente científico. Enganosamente, porque ciência nesse caso, não pode ser neutra se tem na sua essência o compromisso com descoberta do novo, a crítica do usual e do conhecido e a perspectiva do crescimento e do avanço. Descobrir formas de solucionar os problemas sociais ou de melhor explicá-los é um dever de todos os cientistas. Mas isso não basta! É preciso avançar diante do que está estabelecido, com propostas e questionamentos. A realidade atual deve incomodar e inquietar aqueles que tem em mãos as responsabilidades de desenvolver e utilizar as principais ferramentas de transformações sociais.

Nesse contexto, os direitos assegurados a todas as pessoas de poderem se desenvolver em plenitude pelas instituições responsáveis, não podem apenas ficar no papel. Trabalhar para melhorar as condições de vida do cidadão brasileiro começa pela melhoria na sua capacidade de pensar. Com a capacidade plena de pensar, será difícil se deixar iludir e enganar...

Passado tanto tempo, não conseguimos ainda melhorar o quadro brasileiro na perspectiva da melhoria de vida de sua população. Mesmo que psicólogos, educadores, psiquiatras e outros tantos profissionais dedicassem todas as horas de seu trabalho ao desenvolvimento e proteção do Homem, de nada adiantaria se, ainda assim, não pudessem pensar por si só e criticar o que há ao seu redor... E esse trabalho começa bem cedo, desde o nascimento, por meio dos pais e professores, em um a estratégia proativa, de formação básica e preventiva.

Nessa postura de olhar a realidade de forma proativa, o momento de hoje parece especial para recordar e agradecer a todos os que tem colaborado comigo no âmbito de minhas responsabilidades:

• à PUC-Campinas instituição de ensino que me acolheu como aluna e professora, permitindo que eu pudesse entrar na rede pública para desenvolver meu oficio de Psicóloga Escolar, ensinando-me os desafios do crescimento em equipe, e o impacto da formação de qualidade sobre jovens em suas diferentes áreas de estudo;

• ao Prof. Saulo Monte Serrat, que bem no início da minha vida profissional, enquanto diretor do Instituto de Psicologia da PUC-Campinas, convenceu-me e que, para ser Psicólogo seria preciso estudar sempre, e que na universidade do futuro só haveria lugar para aqueles que estivessem em constante aprimoramento;

• às minhas companheiras de turma enquanto aluna da graduação de Psicologia, representadas aqui pelas Profªs. Fernanda Barreto e Magda Vulcano, hoje na direção do Instituto de Psicologia, Carmem Ventura e Glória Elisa Von Buettner, na coordenação dos cursos de graduação e especialização, por que desde a década de 70, sempre acreditamos que o Instituto de Psicologia poderia ser cada dia melhor e ter um perfil comprometido com a transformação da sociedade, formando psicólogos envolvidos e sensibilizados pela com a problemática social. Mesmo com dificuldades, nunca desistimos e desanimamos, resistimos, mantemos forte a esperança diante do muito que ainda temos por fazer...

• ao corpo funcional da PUC-Campinas, aqui representado por todos os que sempre dedicados se entusiasmaram comigo na construção da estrada, na derrubada da floresta, acreditando que valia a pena. Nossa vibração deixou marcas na administração por onde passamos, Cris, Andreia, Alice, Vera, Dareide;

• aos meus colegas do departamento de pós-graduação, por buscarem incansavelmente a excelência, sem deixar de lado o essencial para a convivência solidária e o respeito às diferenças individuais, criando oportunidades de grande aprendizado aos alunos pelo modelo de conduta em um espaço, onde a competitividade e o individualismo podem se instalar com muita facilidade;

• aos meus alunos, da graduação ao doutorado, por que sabemos que a história de aprender e a história de ensinar é algo mágico, que alimenta ambos os lados da relação. Sem vocês, não teria conseguido perceber como é importante, desafiador e gratificante ser professor;

• à minha família, em especial Thomaz, Camila, Marina, Arthur e Mateus, que sempre foram e serão a razão da minha felicidade e a fonte da incomensurável energia que me move todos os dias. Apesar de muitas vezes não entenderem minha relação com o trabalho, aprendem que tudo que se faz por amor e com amor dá frutos e traz alegrias. · aos meus colegas acadêmicos, alguns meus ex-professores, pela confiança e voto solidário que me fizeram chegar até aqui. Com muita honra, agradeço publicamente a todos vocês, principalmente por devotarem suas vidas à Psicologia e aos seus diferentes campos de aplicação, por não desistirem de continuar a sua construção, fornecendo, a todos os que começam nessa área, o infalível exemplo do quanto é preciso de esforço para consolidação de uma carreira e perseguição de um ideal;

Que nós, juntos consigamos construir uma sociedade melhor, onde a solidariedade, a caridade e a empatia possam tomar os seres humanos, cidadãos com oportunidades e direitos iguais, sem distinções e privilégios. A imortalidade é nossa. Obrigada!

Referências

Alvin, J.F. (1931) Estudos Neuro-psiquiátricos. SP: A. Impressora Ltda.

Krynski, S.( 1969) ED. Deficiência Mental. SP: Livraria Ateneu S.A.

Krynski, S. (1985) ED. A criança maltratada. SP: Almed

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    Discurso de posse da autora na Academia Paulista de Psicologia. PUC-Campinas. 27/06/97.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      1997
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