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Entrevista com Albertina Mitjáns Martínez

Interview with Albertina Mitjáns Martínez

HISTÓRIA

Entrevista com Albertina Mitjáns Martínez

Entrevistadora: Mercedes Villa Cupolillo

Em 1994, acontecia em São Paulo o Congresso Internacional da ABRAPEE. Eu havia optado por fazer um curso na perspectiva histórico-cultural ministrado pela professora Albertina Martinez. No congresso havia muitas celebridades nacionais e internacionais na área de Psicologia Escolar, mas eu procurava um diálogo com a perspectiva. Ao alcançar a sala, mal consegui me acomodar: estava lotada. O tom forte e veemente da voz de Albertina somada ao conteúdo que transmitia provocou em mim uma dupla sensação: de que a Psicologia Escolar deveria estar presente no cotidiano de nosso sistema educacional e de que nós, psicólogos, éramos determinados o suficiente para construir esse percurso ainda incipiente. Do conteúdo do curso, uma frase ficou para sempre em minha memória: "eu estou trabalhando no momento com um número grande de pessoas e estou ensinando de forma contrária a que sugiro. Nós deveríamos trabalhar mais diretamente com os alunos para compreender o sentido da aprendizagem para cada um...".

A partir daí começo a ter acesso às suas publicações e à amável e devotada profissional que é Albertina.

Mercedes: Albertina, você se tornou uma grande referência na Psicologia Educacional aqui no Brasil. Há muitas histórias contadas sobre os grandes personagens. Conte-nos um pouco sobre sua história profissional.

Albertina: Mercedes, eu não sou uma grande personagem, e "minha história" considero que seja bastante comum, com elementos marcantes, como qualquer história tem. Com certeza, meus pais, ambos humildes professores de educação básica, influíram significativamente na constituição da minha história profissional. Da minha infância, uma das lembranças mais nítidas é a das leituras em voz alta de meu pai, aos domingos, com as quais nos deleitávamos, meu irmão e eu; também a exigência em relação aos estudos e as expectativas colocadas em nós. Quando tinha 10 anos de idade, triunfou a Revolução Cubana, processo que impactou de forma muito diversa e marcante toda a minha geração. O sentimento de independência, o esforço em construir uma sociedade nova e as profundas mudanças sociais dos primeiros anos do processo revolucionário influíram na minha concepção do mundo, na configuração do meu sistema de valores e na minha constituição como sujeito.

Por outra parte, a prioridade dada à educação, o processo de alfabetização da população, a massificação da educação em todos os níveis geraram importantes oportunidades para minha aproximação da atividade de ensino. Devido à falta de professores, quando cursava a terceira série do ensino médio, fui selecionada, junto com outros colegas, para trabalhar de forma voluntária, como professora de física de alunos da primeira série desse mesmo nível de ensino. Lembro dessa experiência como extremadamente formadora, pois me colocou na responsabilidade de ensinar a jovens com apenas dois anos de idade a menos do que eu. A preparação breve e emergente que nos foi dada - um período de apenas um mês - para assumir essa tarefa resultava insuficiente para enfrentar os desafios do ensino no ensino médio e nos obrigou a um crescimento pessoal significativo e a um aprendizado acelerado de indiscutível valor em termos de formação pessoal e profissional. Meu interesse pelas questões de educação, que tinha se configurado a partir do contexto familiar, foi se consolidando nessa rica etapa de estudo e trabalho. Ao finalizar a terceira série do ensino médio, eu me orientava claramente pela pedagogia, curso que, infelizmente, não existia nas universidades cubanas na época. Ante essa situação, me decidi, inicialmente, por estudar Física, já que continuava lecionando essa matéria, que eu gostava pelos desafios que para mim representava de tentar compreender o mundo físico onde estamos imersos. No entanto, amigos muito próximos me estimularam a escolher Psicologia e confesso que me matriculei no curso mais pelo vínculo afetivo com eles do que pelo vínculo que sabia existir entre a Psicologia com a Pedagogia, idealmente a minha primeira opção. Imediatamente me apaixonei pelo curso: incluía trabalho de campo desde os primeiros semestres, envolvimento em atividades socialmente significativas e dominava um clima de entusiasmo, exigência, independência e responsabilidade, extremadamente atraentes para mim. Tive muitos bons professores, e algo que considero essencial: um contato profundo com diferentes perspectivas teóricas a partir do estudo das obras originais dos clássicos da psicologia. Lembro dos anos do curso como uma época de estudo intenso, de reflexão crítica, de engajamento social e de intensa utilização, na prática social, dos conhecimentos adquiridos. O curso me deu também outra oportunidade ímpar. Aconteceu que, pela falta de professores universitários e pelas críticas que eu fazia a diferentes aspectos do trabalho docente desde meu ingresso no curso e desde minha participação ativa no movimento estudantil, fui convidada pelo diretor da Faculdade, quando terminei o segundo semestre do curso, a assumir uma turma do primeiro semestre para ministrar a disciplina Psicologia Geral. Deixei então de lecionar física no ensino médio, tarefa que realizava simultaneamente com os meus estudos de Psicologia, para assumir o desafio de começar a lecionar na Universidade da Havana em 1969, com 20 anos. Hoje, após 37 anos ininterruptos como professora do ensino superior, não posso deixar de avaliar de forma extremadamente positiva a configuração de fatores que me colocaram neste caminho. Na minha formação como psicóloga, uma influência marcante foi o contato com a Psicologia Soviética a partir da obra dos seus principais expoentes. Considero que o conhecimento das principais perspectivas teóricas da psicologia ocidental, a influência do marxismo como filosofia e as convergências ideológicas me permitiriam uma aproximação reflexiva com essa escola de pensamento. Tive oportunidade de trabalhar na Universidade Estatal de Moscou no Departamento de Psicologia Pedagógica e aprofundar a concepção lá dominante sobre os vínculos entre Psicologia e Pedagogia. Hoje assumo a perspectiva histórico-cultural de forma crítica e criativa, o que não significa desconsiderar aportes a partir de outros referentes. Durante a consolidação da minha vida profissional, tem sido significativa a convivência com o Fernando, meu esposo. A comunidade de idéias, as reflexões conjuntas, a parceria, seu exemplo pessoal, o estímulo constante e o apoio no cotidiano tem sido, no meu caso, uma clara expressão da participação de outrem na formação individual. Também estes já quase doze anos da minha vida no Brasil tem sido importantes na minha trajetória profissional. A possibilidade de acesso à produção científica atualizada, à convivência e à troca de idéias com muitos colegas produtivos e reflexivos, o contato com alunos inquietos e a imersão numa realidade social e educacional tão diferente da que existia no meu contexto de origem, têm se constituído, também, como fatores de crescimento e desenvolvimento profissional. Pela minha história, considero ser compreensível que, desde o início, minha orientação na Psicologia tenha sido na área de Educação.

Minha tese de doutorado teve como título Criatividade e Personalidade: implicações educativas, e minha produção científica principal se concentra na interface da Psicologia com a Educação. Estou convencida de que o conhecimento sobre o funcionamento psicológico humano resulta essencial para compreender o processo educativo como prática social. Considero que meu interesse pela compreensão dos processos educativos que acontecem na instituição escolar, visando seu aprimoramento e transformação, constitui um resultado de minha própria prática educativa, de minhas outras diversas inserções no contexto educativo (como aluna, como mãe, como consultora, como pesquisadora) e de minhas pesquisas e reflexões no campo da Psicologia Educativa. Sem dúvida, meu trabalho atual é uma expressão da história da minha própria constituição como pessoa e como profissional.

Mercedes: Sabemos que uma das questões para a qual você tem estado sempre atenta é a da formação do psicólogo educacional. O que você nos diria sobre os cursos de formação já existentes no Brasil?

Albertina: O Brasil é um país muito extenso, com inúmeros cursos de formação de psicólogos. Em seu conjunto, eles representam um mosaico com muitos pontos em comum; porém, no qual existem interessantes diferenciais. Tenho acompanhado as discussões sobre as Diretrizes curriculares e algumas das reformas curriculares em andamento a partir delas. Também tenho estudado a produção científica sobre a formação de psicólogos no país, não apenas a produzida pelos integrantes do Grupo de Trabalho de Psicologia escolar/educacional da ANPEPP, ao qual pertenço, e que tem se destacado nesse tema, mas também a de outros muitos especialistas preocupados com estas questões. Considero que no país existe um bom nível de debate sobre a formação do psicólogo em geral e existe plena consciência da necessidade de melhorar a formação; porém, do meu ponto de vista, o principal está por fazer, isto é, uma mudança "paradigmática" que coloque realmente esse futuro psicólogo como sujeito de sua própria formação. A formação ainda é excessivamente instrumental, centrada em saberes - em geral, fragmentados e pouco aprofundados - e em competências ou habilidades para fazeres específicos. A capacidade de reflexão, a criatividade, a iniciativa, a sensibilidade em relação aos outros, características, a meu ver, essenciais num profissional da psicologia, não constituem de fato um eixo central da formação dos psicólogos hoje. Não se compreende com suficiente clareza que a aprendizagem efetiva é um processo de produção de sentidos e que os conhecimentos e habilidades apenas "funcionam" quando articulados em configurações subjetivas que se atualizam nos momentos da ação do sujeito. Mesmo que alguns professores considerem a contribuição ao desenvolvimento de recursos pessoais como um importante aspecto de seu trabalho docente, os resultados têm pouca visibilidade. Esses esforços isolados se perdem num currículo que não leva, de fato, em conta esse importante aspecto. Também existe uma crescente produção científica sobre inovação educativa e sobre pedagogia do ensino superior, para a qual a psicologia como ciência tem contribuído de algum modo, que resulta pouco conhecida e às vezes subestimada pelos que têm a responsabilidade de formar os psicólogos. É paradoxal que a produção científica da psicologia no campo da educação seja tão pouco utilizada para transformar significativamente a forma com que os cursos de psicologia são delineados e com que os psicólogos são formados. A aprendizagem eminentemente reprodutiva, que infelizmente caracteriza nosso sistema educativo, está também presente, muito mais do que o desejável nos cursos de psicologia. Considero que a formação dos psicólogos para trabalhar no contexto educativo compartilha desta situação geral. Salvo exceções, como estágios bem estruturados, com um caráter formativo e problematizador, a formação do psicólogo para trabalhar na interface com a educação está ainda aquém das necessidades e dos desafios que a situação da educação no país coloca para a psicologia. Inclusive a idéia de que para trabalhar no contexto educativo é necessário aprender e saber não apenas de psicologia, mas também de educação, não é, na maioria das vezes, convenientemente trabalhada na formação do psicólogo. Isso dificulta o necessário autodidatismo dos que se inserem nesse complexo campo e, muitas vezes, constitui um dos fatores pelos quais o psicólogo não é reconhecido no contexto educativo nas suas amplas possibilidades de atuação. Devemos estar muito atentos para não reproduzir nos emergentes cursos de Especialização em Psicologia Educacional ou Psicologia Escolar a situação que domina na graduação, sobretudo se levamos em conta que o nível de pós-graduação lato sensu no país reproduz os pontos fracos dos cursos de graduação e pouco se diferencia, em essência, deles.

Mercedes: Outro tema de seu interesse que tem sido muito polemizado é o da inclusão. No seu entendimento, como o tema da inclusão deve ser abordado no cotidiano da educação e na prática do psicólogo educacional/escolar?

Albertina: Como você sabe, o tema da inclusão escolar é hoje bastante polêmico por razões de diferentes naturezas. O problema da educação inclusiva implica mudanças na subjetividade dos que participam dos processos educativos - por isso, é tão difícil; implica ver as coisas realmente de outra forma. Para mim o problema da falta de preparação técnica, muitas vezes colocado como problema principal, constitui efetivamente um problema; porém, na minha perspectiva, o problema principal é o da necessidade de mudar a forma pela qual concebemos a escola e, especialmente, a necessidade de lutar com preconceitos e posturas historicamente arraigadas na maioria de nós. Avançar na perspectiva da educação inclusiva não é meramente uma questão administrativa, nem técnica: é uma questão de mudar profundamente o que temos pensado e sentido durante muito tempo. Não é algo que se impõe por decreto; é um processo de mudanças profundas que pode ser promovido e acompanhado a partir de uma postura profundamente humana e solidária, e também pela utilização criativa e comprometida do que existe de melhor no conhecimento científico da Psicologia. Opino que uma das principais funções do psicólogo em relação a isto é a facilitar de forma crítica, reflexiva e criativa a implantação das políticas públicas relacionadas à educação inclusiva. Particularmente, opino, como outros colegas, que é contraditório pensar numa educação verdadeiramente inclusiva numa sociedade profundamente excludente, e com um tipo de instituição - a escola - cujo delineamento implica exclusão. Apesar disso, considero importante trabalhar para que cada vez um maior número de pessoas atinja maiores níveis de aprendizagem e de desenvolvimento. Assim entendo a chamada educação inclusiva. No mínimo é nesta direção que o psicólogo tem o dever de contribuir; contribuir para as transformações necessárias no contexto educativo para que possam ser ampliadas as possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento da população escolar. É um trabalho complexo, que demanda deles, acima de tudo, capacidade de reflexão e sentido crítico, sensibilidade humana e criatividade. As ações a serem desenvolvidas são diversas: desde a desconstrução de como o diagnóstico psicológico tem sido utilizado para explicar as dificuldades de aprendizagem, até o favorecimento de formas abertas de comunicação e participação, direcionadas a promover mudanças necessárias na subjetividade social da escola e o envolvimento do coletivo escolar na transformação de suas práticas pedagógicas. Fora do sistema escolar, também são inúmeras as possibilidades do psicólogo para promover uma educação para todos.

Mercedes: Uma das coisas que me chamam atenção em você é a capacidade de organização. Tantas responsabilidades e tamanha produtividade requerem alto grau de organização. Como é o seu cotidiano de trabalho?

Albertina: É certo que trabalho muito; porém, não tenho uma rotina especial. O essencial para mim é aproveitar ao máximo o tempo. A cultura do aproveitamento do tempo acho que tem me ajudado a desempenhar, simultaneamente, diferentes funções. Planejo a utilização do tempo do dia da melhor forma possível. Agrupo as atividades que dependem de mim de forma que o tempo "me renda". Sou lenta na escrita; por isso, talvez tenha prestado muita atenção à otimização do uso do tempo. Acordo cedo e tento cumprir com disciplina tudo o que me proponho a fazer no dia. Gosto de meu trabalho e isso me permite trabalhar com produtividade também aos sábados e domingos. Tenho me proposto com força a organizar-me de tal modo que possa deixar o domingo como um dia "livre" para ser preenchido com outras atividades, já que com a idade vou sentindo a necessidade disso. Porém, ainda não tenho conseguido esse propósito. Continuo tentando.

Mercedes: Em suas palestras estão sempre presentes conteúdos e posturas éticas. Como você analisaria a crise de valores que estamos vivenciando no cotidiano dos espaços educacionais?

Albertina: A crise de valores generalizada que estamos vivendo me preocupa extraordinariamente. Vivencio essa crise com uma mistura de sentimentos de perplexidade, de impotência e de dúvida , dúvida sobre o que fazer e como fazer. Essa crise de valores a que você se refere e que se expressa de múltiplas formas nos espaços escolares é a crise da sociedade em que estamos vivendo. A falta de honestidade, de compromisso social, de sensibilidade humana estão presentes nas principais instituições que regem o destino do país. Junto com a falta de controle e de exigência, a impunidade, o individualismo e a violência se expressam de diversas formas no cotidiano de todas as instituições sociais. Lamento não ter o tempo de que gostaria para estudar a fundo a história e a sociologia do Brasil para tentar compreender a gênese e a evolução destas tendências, que mesmo não sendo específicas do país, tomam nele formas específicas e, em alguns casos, marcantes. Como meu filho caçula estuda sociologia, em casa, com muita freqüência conversamos e refletimos sobre estas questões; também em outros espaços, com colegas igualmente perplexos e impotentes ante a situação vivida. Conheço muitas pessoas - psicólogos, professores, gente do povo - que tentam, a partir do lugar que ocupam na sociedade, fazer "alguma coisa", ações que se configuram como "focos de resistência" ou, talvez, de digna sobrevivência ante a obscuridade moral que caracteriza a sociedade. Penso que temos que potencializar essas ações, apoiá-las, mesmo que sejam fragmentadas, que possam parecer insignificantes ante a magnitude do problema. No pessoal tento focalizar minhas forças no processo de formação, seja nas escolas onde trabalho, seja com os meus alunos de graduação e de pós-graduação. O debate das questões éticas, da situação social do país, e em particular, da educação ocupam espaços da nossa reflexão conjunta, que tento ampliar e aprofundar. Por meio do trabalho docente, tento oportunizar condições que possam favorecer, ao menos em alguns, o fortalecimento de sua condição de sujeito ativo, reflexivo, crítico e criativo, compromissado com a transformação de seus contextos de atuação. Este tem sido o caminho a que me tenho proposto recorrer perante a crise mencionada. Não sei se realmente conseguirei algo; porém é uma tentativa de resistir à perplexidade paralisante que hoje toma conta de muitos.

Mercedes: Eu gostaria, finalmente, de ratificar o que disse no início: Albertina, você é, sem dúvida, uma autoridade na Psicologia do Brasil. É no exercício teórico-prático da perspectiva histórico-cultural que seu percurso tem sido traçado e reconhecido. No Brasil, a perspectiva tem se diversificado e gerado muitas "ramificações"... Albertina, você se destaca por seu pioneirismo, sua competência e sua ética. Vou pedir licença para imitá-la na forma de finalizar suas palestras, com uma reflexão. Trago aqui algumas palavras de José Saramago: "Talvez mais do que esteticamente sensíveis ou politicamente corretos, o que nós devemos mesmo ser é ativamente bons."

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2010
  • Data do Fascículo
    Jun 2007
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