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Quando a psicologia escolar crítica vai à clínica

When the critical school psychology goes to the clinic

Cuando la psicología escolar crítica va a la clínica

RELATO DE PRÁTICAS PROFISSIONAIS

Quando a psicologia escolar crítica vai à clínica

When the critical school psychology goes to the clinic

Cuando la psicología escolar crítica va a la clínica

Paula Cristina Medeiros RezendeI; Cárita Portilho de LimaII; Flaviana Franco NavesIII; Marina Borges e SilvaIII

IInstituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia - MG

IIInstituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo - SP

IIIPontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo - SP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Paula Cristina Medeiros Rezende Av. Alexandre Ribeiro Guimarães, 281, apto 402, Bairro Santa Maria Uberlândia-MG. CEP: 38408-050

Apoiados na Psicologia Crítica, tendo como interlocutores as autoras Patto (1990), Souza (1996, 2007), Machado (1994), Meira (2000) e Bock (1997, 2002), pretendemos, a partir de uma experiência de atendimento de crianças com queixas no processo de escolarização, em um serviço-escola, dar visibilidade às possibilidades de ação do psicólogo escolar no processo de investigação/intervenção no contexto clínico. Durante a realização das atividades, buscamos desempenhar uma prática de forma coerente com a Psicologia Escolar Crítica, tendo a escola e seus agentes como ativos participantes do processo de investigação/intervenção.

Utilizamos como campos de ação o atendimento em grupo (de crianças e de pais) e a visita escolar e domiciliar. Porém, antes de apresentar as especificidades de cada um deles, discutiremos o modo como compreendemos a queixa escolar. Trata-se de um tópico de referência, uma vez que é determinante na escolha das ferramentas de ação: sustenta os questionamentos que vamos fazer, o modo como as ferramentas serão utilizadas e os caminhos que iremos percorrer.

Entendemos que o insucesso de alguns processos de escolarização não pode ser justificado pela história individual da criança, pois considerar que suas causas encontram-se no psiquismo ou no rebaixamento intelectual não nos possibilita pensar em ações que potencializem as relações escolares e dissolvam as queixas (Patto, 1990; Souza, 2007).

Portanto, para superar as condições nas quais a queixa é produzida, é interessante a construção de ações que considerem a produção social do fracasso escolar e que se proponham a fortalecer uma rede que interconecte os diferentes sujeitos e contextos, propondo espaços de diálogo entre a clínica, a escola e a comunidade, abarcando o psicólogo, a criança, a família, os professores e os demais envolvidos.

Dessa forma, frente às questões educacionais, o psicólogo propõe uma avaliação de caráter investigativo, não classificatório e que não se baseia em métodos que visam encontrar nos indivíduos a explicação para a queixa. É necessário enfatizar que a investigação não pode ser vista como um processo isolado da intervenção, pois compreendemos que a investigação e a intervenção constituem-se dialeticamente em todos os momentos durante a prática psicológica.

Assim, após discutirmos nossa concepção sobre a queixa escolar e o processo de avaliação/intervenção, passaremos a apresentar os campos de ação utilizados em nossa experiência clínica. Enfatizamos que a atuação do psicólogo frente aos processos de escolarização deve abarcar os mais diversos contextos e indivíduos envolvidos, buscando desenvolver ações que dirijam-se às circunstâncias, ao invés de pessoas isoladas. Isso quer dizer que a história individual constitui, mas não determina o percurso da pessoa, pois são as possibilidades de se relacionar com outros contextos e indivíduos que podem proporcionar movimento, ruptura e novos sentidos ao que está paralisado. Destacamos que, nesse processo de mudança, o psicólogo possui um papel ativo, ao potencializar o inédito e o incomum.

Em nosso entendimento, as ações desenvolvidas em nossa experiência e apresentadas neste trabalho (atendimento em grupo, com pais e crianças, visita escolar e domiciliar) são importantes para o trabalho do psicólogo escolar, não existindo hierarquia entre elas, já que, em conjunto, todas contribuem para a construção de condições que favoreçam a dissolução da queixa escolar. Além disso, as ações estão em permanente inter-relação; assim, os acontecimentos vivenciados durante a intervenção em um contexto irão, de alguma forma, afetar as outras intervenções.

O atendimento às crianças em grupo constitui-se em um espaço que busca problematizar as queixas apresentadas, ao reconhecer os recursos de cada criança e do grupo e oferecer possibilidade de ressignificar as vivências escolares. Nesses atendimentos, a função do psicólogo é, dentre outras, valorizar as experiências de cada criança no coletivo, construindo momentos nos quais os diferentes conhecimentos escolares e cotidianos sejam legitimados.

Outro aspecto importante nesses atendimentos diz respeito à relação com os pares, uma vez que estar com outras crianças mais experientes, desempenhar tarefas em conjunto e receber auxílio são situações que podem movimentar os processos de desenvolvimento. Assim, o grupo passa a constituir esse espaço onde a relação com os outros indivíduos pode ser transformadora.

As atividades desenvolvidas durante os atendimentos são entendidas como disparadoras do processo de intervenção, ou seja, o papel central não é atribuído às atividades realizadas, o importante é a forma como são apresentadas ao grupo e as construções que o grupo faz a partir delas. São ainda compreendidas como possibilidades de mobilizar o grupo para uma temática específica a ser abordada, como: leitura, escrita e conhecimento lógico-matemático, relacionamentos interpessoais e posicionamentos atribuídos/assumidos no grupo.

É interessante notar que as queixas trazidas pelos responsáveis ou pela escola não se apresentam da mesma forma no grupo, ou seja, elas se configuram de múltiplas formas em diferentes vozes (família, escola, criança, psicólogo). Isso demonstra que é possível problematizar os estereótipos que são atribuídos às crianças, possibilitando que elas construam outros sentidos sobre o seu processo de escolarização.

Já em relação ao trabalho em grupo com os pais e responsáveis, entendemos que se trata de uma possibilidade de inseri-los no processo de investigação da queixa escolar. É interessante observar a forma como os pais interessam-se pela vivência do outro e compartilham problemas e soluções. Nesse contexto de atendimento em grupo, os pais são mobilizados a participar ativamente do processo de dissolução da queixa escolar.

Além dos grupos com crianças e responsáveis, o atendimento às queixas escolares implica visitas às escolas com o intuito de estabelecer uma relação de confiança e uma parceria entre a escola e o psicólogo escolar. Concordamos com Souza (2007) quando afirma que ainda é muito pequeno o número de experiências clínicas que integram a escola de maneira crítica. Dentro de uma proposta crítica, a escola passa de coadjuvante a protagonista do cenário do processo de escolarização, tanto no âmbito da investigação quanto no da intervenção.

As parcerias construídas com a escola e, principalmente, com os professores tornam-se uma possibilidade de conhecer e legitimar outras versões dos processos de escolarização.

Entrar na escola e na sala de aula é uma oportunidade para o psicólogo aproximar-se das condições concretas em que a criança estuda, das relações entre os pares e educadores em na sala de aula, das negociações que são estabelecidas, dos materiais escolares e didáticos disponíveis, da organização do tempo e espaço, da forma de documentação do percurso dos alunos, do modo como os conteúdos formais são trabalhados e do ambiente físico da sala e da escola em geral.

Outra ação relevante durante os atendimentos às queixas na escolarização é a visita domiciliar. Essa ação, criada no contexto da saúde e bastante divulgada nessa área, ainda não possui publicações expressivas no campo da educação, apesar de acreditarmos que ela pode oferecer várias contribuições.

Esse campo de ação incrementa a compreensão da malha de relações nas quais o sujeito encontra-se articulado. O objetivo é compreender o contexto domiciliar, compartilhar a cultura, experimentar o cotidiano, legitimar as versões produzidas nesse lugar, estar junto com o sujeito em uma outra perspectiva. Destacamos que, durante a visita, o olhar do psicólogo deve procurar compreender a realidade que se apresenta a ele e não avaliar ou atribuir juízo de valor às questões isoladas, pois, ao contrário da psicologia tradicional, na qual esses fatores isolados são entendidos como determinantes na história do indivíduo, a Psicologia Crítica entende que são múltiplos fatores que constituem o percurso dos sujeitos. Ocupar esse outro espaço de trabalho constitui-se em uma possibilidade de reconfiguração de sentidos sobre a queixa escolar.

Ao lançar mão dessa ação, o psicólogo pode articular perguntas sobre vários aspectos que compõem a história e os possíveis percursos do sujeito. Algumas perguntas que podem inspirar os profissionais durante a visita domiciliar são: Qual a história do bairro e como é sua infraestrutura (transporte, iluminação, saneamento básico, asfaltamento)? Quais são os espaços de socialização e formas de lazer disponíveis (escola, igreja, associações, praça, centros esportivos e culturais)? Como é o relacionamento com os vizinhos? Como é a casa (cômodos, organização, higiene)? Como a família se relaciona?

A visita domiciliar é uma oportunidade de se aproximar das formas como a educação escolar se presentifica em outro contexto, ou seja, oportunidade de conhecer onde e como a criança organiza os materiais escolares, os estudos, como vai para a escola, se existem regras e hábitos familiares em relação às questões escolares, como a família vivencia essas questões e quais recursos e potencialidades podem ser acionados para integrar os elementos desse contexto ao processo de escolarização da criança. Tudo isso facilita o envolvimento dos familiares nessa proposta de atendimento e auxilia o psicólogo na criação de ferramentas de atuação mais coerentes com os interesses e o cotidiano da criança.

Assim, a visita domiciliar constitui-se em um espaço privilegiado de diálogo, produção de saberes e novos sentidos sobre a queixa, pois, ao fortalecer a relação de confiança e parceria entre a família e o psicólogo escolar, permite o estabelecimento de uma prática mais ampla e efetiva.

Diante de todos os campos de ação apresentados nesse artigo, destacamos a importância da integração entre família, escola e comunidade no atendimento da queixa escolar, em oposição a ações isoladas que não contextualizam o processo de escolarização.

A constatação de que não existem modelos consolidados de atuação crítica em Psicologia Escolar torna necessário que o psicólogo arrisque-se na criação de novas formas de atuação e que desbrave novos campos de inserção.

Partindo da compreensão do indivíduo como um sujeito ativo e potencialmente transformador da sua realidade, buscamos em nossa atuação a coerência entre os pressupostos teóricos e metodológicos. Logo, pautados nos pressupostos críticos, buscamos realizar uma prática na qual as ferramentas de investigação/intervenção não são receitas aplicáveis a todo contexto, não são indispensáveis e nem garantem por si só a dissolução da queixa escolar. Ou seja, as atividades elegidas para auxiliar na aproximação dos casos não são em si potentes, a potência reside no modo como os profissionais utilizam-nas.

Recebido em: 23/06/2009

Reformulado em: 01/12/2009 (1ª)

Reformulado em: 30/03/2010 (2ª)

Aprovado em: 11/05/2010

Sobre as Autoras

Paula Cristina Medeiros Rezende (lalamedeiros@netsite.com.br)

Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia - MG

Cárita Portilho de Lima (carita.portilho@yahoo.com.br)

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo - SP

Flaviana Franco Naves (flavinaves@yahoo.com)

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo - SP

Marina Borges e Silva (marinabs_psico@hotmail.com)

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo - SP

  • Bock, A. M. B. (1997). Formação do psicólogo: um debate a partir do significado do fenômeno psicológico. Psicologia Ciência e Profissão, 17(2), 37-42.
  • Bock, A. M. B., Gonçalves, M. G. M., & Furtado, O. (2002). Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em psicologia. São Paulo: Cortez.
  • Machado, A. M. (1994). Crianças de classe especial: efeitos do encontro entre saúde e educação. São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Meira, M. E. M. (2000). Psicologia escolar: pensamento crítico e práticas profissionais. Em E. R. Tanamachi, M. P. R. Souza & M. L. Rocha (Orgs.), Psicologia e educação: desafios teóricos-práticos (pp 35-72). São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Patto, M. H. S. (1990). A produção do fracasso escolar. São Paulo: T. A. Queiroz.
  • Souza, M. P. R. (1996). A queixa escolar e a formação do psicólogo. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo.
  • Souza, M. P. R. (2007). Prontuários revelando os bastidores do atendimento psicológico à queixa escolar. Em B. P. Souza (Org.), Orientação à queixa escolar (pp 27-58). São Paulo: Casa do Psicó
  • Endereço para correspondência

    Paula Cristina Medeiros Rezende
    Av. Alexandre Ribeiro Guimarães, 281, apto 402, Bairro Santa Maria
    Uberlândia-MG. CEP: 38408-050
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Out 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010
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