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Desenvolvimento de rede para enfrentar o bullying: lições canadenses

Development of a network to stop bullying: Canadian lessons

Desarrollo de red para hacer frente al bullying: lecciones canadienses

RELATO DE PRÁTICA PROFISSIONAL

Desenvolvimento de rede para enfrentar o bullying: lições canadenses

Development of a network to stop bullying: Canadian lessons

Desarrollo de red para hacer frente al bullying: lecciones canadienses

Ana Carina Stelko-PereiraI; Lúcia Cavalcanti de Albuquerque WilliamsII

I Psicóloga, Mestre em Educação Especial, Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de São Carlos

II Doutora em Psicologia Experimental (USP), Mestre em Psicologia (Universidade de Manitoba, Canadá), Professora Titular do Departamento de Psicologia da UFSCar e Coordenadora do Laboratório de Análise e Prevenção da Violência (LAPREV)

Endereço para Correspondência Endereço para Correspondência Ana Carina Stelko-Pereira R. Tenente João Gomes da Silva, 972, Mercês, Curitiba, Paraná E-mail: anastelko@gmail.com

O bullying é um problema grave no Brasil (Pinheiro & Williams, 2009; Neto, 2003), referindo-se a repetidas situações de vitimização entre pares, em desigual condição de poder, em que o autor de violência tem a intenção de machucar ou causar dano (Olweus, 2003). Tal problema tem sido associado a um impacto negativo no clima escolar e na saúde mental dos alunos envolvidos (Salmivalli, Karhunen, & Lagerspetz, 1996; Sourander, Helstelä, Helenius, & Piha, 2000).

Apesar de sua alta prevalência, poucas são as intervenções avaliadas de modo sistemático específicas ao bullying e à violência escolar no país, sendo tal cenário diferente do internacional. Notadamente na América do Norte, foram explicitadas as etapas consideradas necessárias para se desenvolver e avaliar um programa preventivo (por exemplo, Dumka, Roosa, Michaels, & Suh, 1995; Rossi, Lipsey & Freeman, 2004), sendo identificados os programas com melhores resultados (Blaya, Debarbieux, & Denechau, 2008; Wilson & Lipsey, 2007). Certamente seria desaconselhável transpor um modelo de avaliação de programas de outros países para o Brasil, tampouco simplesmente importar programas estrangeiros tidos como efetivos para o contexto brasileiro. Contudo, conhecer experiências internacionais e atentar para as dificuldades e maneiras que outros países têm encontrado para solucioná-las poderá enriquecer nossas pesquisas, bem como nossos esforços preventivos.

Um dos aspectos discutido internacionalmente é o fato de que nem sempre os programas apoiados em resultados sólidos de pesquisa são os que conseguem alcance social amplo e diversidade do público beneficiado (Biglan, Mrazek, Carimine, & Fay, 2003; Nation e cols., 2003). Assim, tem-se discutido que o processo de desenvolvimento de programas não pode terminar na elaboração e avaliação de intervenções. Afirma-se que é preciso convencer pessoas, governos e instituições de que programas preventivos baseados em estudos são necessários, sendo mais adequados do que as intervenções não apoiadas em pesquisas, e, portanto, é vantajoso para o público-alvo que tais intervenções sejam empregadas (Biglan e cols., 2003).

O presente relato busca descrever um dos pilares para o enfrentamento do bullying no Canadá, sendo fonte de conhecimento sobre prevenção de tal problema. Trata-se da rede PREVnet: Promoting Relationships and Eliminating Violence Network (Promovendo Relacionamentos e Eliminando a Violência), www.prevnet.ca. Tal relato foi elaborado com base na experiência de participação como ouvinte em reuniões da diretoria da referida rede e leitura de relatórios e artigos a respeito das ações da PREVnet por parte da primeira autora1 1 . A primeira autora permaneceu 6 meses no Canadá realizando estágio de doutorado no exterior com apoio do CNPQ sob supervisão da Profa. Debra Pepler (Universidade de York, Canadá), fundadora e coordenadora do PREVNet. .

Tal rede foi fundada em 2006 e tem como objetivos principais: 1) educar para que todos os canadenses e as instituições que envolvem crianças e adolescentes se comprometam a enfrentar o problema do bullying; 2) prover ferramentas para crianças, adolescentes, famílias, escola e comunidade avaliarem o fenômeno do bullying; 3) auxiliar no desenvolvimento de estratégias preventivas científicas que considerem as diversas etapas do desenvolvimento humano; e 4) participar do desenvolvimento de políticas públicas para que se defina o que será considerado bullying e quais serão os procedimentos com relação à vítima, ao autor, aos pares, aos adultos relacionados aos alunos e à comunidade quando um episódio ocorrer.

A rede busca fornecer variadas estratégias, abarcando diferentes públicos. No endereço eletrônico da rede, essas estratégias são detalhadas e subdvidem-se em informações para: todos, crianças, adolescentes, pais ou cuidadores, educadores e outros profissionais envolvidos com crianças e adolescentes.

Com relação à estratégia para todos, há a divulgação de resultados de pesquisas em breves descrições ao leigo apontando as implicações negativas do bullying. Algumas das estratégias para crianças e adolescentes incluem: divulgação de um número de telefone a ser discado caso precisem de ajuda; panfletos que indicam o que fazer se a criança for vítima, autor ou testemunha de bullying; modelo de carta para contar a um adulto se a criança/adolescente estiverem envolvidos em bullying; atividades para a criança/adolescente sugerirem a professores e colegas; e vídeos de curta duração sobre o fenômeno.

Com relação a estratégias para os pais, explica-se por que razão esses deveriam preocupar-se com o fenômeno do bullying/cyberbullying; o que fazer quando os filhos são autores, vítimas ou testemunhas de bullying/cyberbullying; comentam-se estratégias para uma adequada relação entre pais e filhos; especifica-se como agir para amparar os filhos com relação ao bullying quando forem homossexuais; e são feitas reflexões sobre como a escola do filho tem se posicionado diante do bullying. A respeito das estratégias para educadores e outros profissionais (motoristas de ônibus escolar, babás, líderes recreativos), busca-se explicitar a importância do papel que esses exercem para o combate ao problema, destacando-se o quanto servem de modelo para as crianças e adolescentes e como deveriam agir com os alunos envolvidos no bullying. Adicionalmente, sugerem-se atividades a serem realizadas com as crianças e adolescentes pelos profissionais, como discussões, dramatizações, colagens e pesquisas. Os professores também têm acesso a questionários que podem ser utilizados para medir o fenômeno do bullying e para avaliar o quanto se sentem preparados e apoiados para lidar com o problema, fornecendo sugestões sobre onde procurar mais informações.

Além das estratégias predominantemente vinculadas ao site, a rede promove e apoia campanhas relacionadas à garantia dos direitos das crianças e adolescentes, realiza concurso entre alunos e escolas, selecionando as melhores atividades para combater o problema, divulga vídeos de curta duração, realiza pesquisas sobre o tema, facilita o contato com especialistas para fazerem palestras ou darem consultorias, publica livros comunicando pesquisas nacionais e internacionais, descreve resultados de investigações em artigos científicos, promove a elaboração e avaliação de programas preventivos de bullying, e subsidia a criação de materiais diversos ao combate ao problema (jogos de videogame, manuais). A rede também tem intensa participação na mídia nacional e colabora com comitês para a elaboração de leis.

Essas atividades promovidas pela rede são baseadas no trabalho de uma comissão permanente de planejamento (nove diretores, seis conselheiros, dois codiretores científicos, seis pesquisadores principais e um diretor de parcerias), que define os objetivos da rede, como esta vem sendo mantida e expandida e mobiliza parceiros de diversas esferas sociais. Em relação aos parceiros, em fevereiro de 2012, faziam parte da rede 62 pesquisadores relacionados direta ou indiretamente ao tema bullying, os quais eram funcionários de 24 universidades canadenses. Adicionalmente, fazem parte da rede 50 organizações, tais como: Associação dos Diretores de Escolas, Associação Nacional de Professores, Associação Canadense de Psicólogos, um canal de televisão dedicado a assuntos de família e uma revista dedicada a promover assuntos ligados à saúde.

A comunicação entre os parceiros ocorre principalmente por meio do acompanhamento do sítio da rede, e-mails, jornais eletrônicos e conferências anuais promovidas pela rede. A cada ano escolhem-se cerca de 14 parceiros para intensificar a coconstrução de projetos, buscando atingir ao menos um dos quatro objetivos da rede e, assim sendo, a comunicação é maior entre os pesquisadores e tais parceiros. Há comunicações face a face entre os parceiros e a PREVnet e reuniões de planejamento de grupos de trabalho, entre outros exemplos.

A fim de realizar essas atividades, a PREVnet é financiada por empresas privadas, entidades públicas, doações e venda de materiais (livros, camisetas). Em fevereiro de 2012 a rede contava com 12 financiadores, incluindo empresas internacionais de telefonia e informática, universidades e agências federais financiadoras de projetos, havendo recebido 1,6 milhão de dólares canadenses para subsidiar atividades para os próximos quatro anos.

São realizadas avaliações constantes pelos membros das atividades desenvolvidas e anualmente escrevem-se relatórios para os financiadores prestando conta da utilização das verbas e dos resultados alcançados. Segundo Pepler e Craig (2011), tem-se enfatizado a análise dos resultados proximais da rede, isto é, tem havido expansão do número de pessoas e instituições parceiras, aumento da quantidade das atividades realizadas e de opiniões favoráveis de membros dessas instituições sobre os benefícios da rede para o apoio no enfrentamento ao bullying. Espera-se, segundo as mesmas autoras, que no futuro possa-se avaliar se a construção da rede permitiu mudanças nos índices canadenses de prevalência do bullying e melhoria nos relacionamentos interpessoais.

A PREVnet pode servir como exemplo de atuação para o Brasil com relação ao enfrentamento do bullying, atentando-se para as seguintes lições: 1) o bullying é responsabilidade de todos e, por isso, o seu enfrentamento deve partir de uma articulação entre diferentes setores sociais; 2) mais importante do que criar novos serviços, entidades e instituições que competirão por recursos é articular aquelas já existentes, unindo-as em direção ao objetivo comum do enfrentamento do bullying; 3) os pesquisadores devem se unir, a despeito de suas diferenças metodológicas ou teóricas, evitando com isso a competição por prestígio ou poder; 4) o bullying é um problema que ocorre no relacionamento entre as pessoas, portanto, deve-se buscar alternativas de criação de relacionamentos saudáveis, ao invés da imposição de ameaças, medos e reprimendas; 5) o financiamento das atividades deve partir de diferentes fontes, tanto de recursos individuais quanto do setor público e privado; 6) a rede deve ter um intenso comprometimento com a pesquisa, tanto no que se refere à elaboração e divulgação de estratégias baseadas em evidências, quanto à contínua avaliação da própria rede; e 7) tal rede deve ser transparente perante a sociedade e seus próprios financiadores.

Certamente desenvolver uma rede de enfrentamento ao bullying no Brasil, tal como a PREVnet, não é uma tarefa fácil. Porém, acredita-se que tal iniciativa seja propícia, dada a nossa alta prevalência do fenômeno e a urgência de encontrarmos soluções para seu enfrentamento e prevenção.

Lúcia Cavalcanti de Albuquerque Williams

Endereço - Rod. Washington Luis, km 235-SP 310

Departamento de Psicologia

Laboratório de Análise do Comportamento.

E- Mail: williams@ufscar.br

Recebido em: 19/04/2012

Reformulado em: 04/06/2012

Aprovado em:05/10/2012

Agradecemos apoio financeiro por bolsa de doutorado SWE concedida a primeira autora pelo CNPQ.

  • Biglan, A., Mrazek, P. J., Carmine, D., & Flay, B. R. (2003). The integration of research and practice in the prevention of youth problem behaviors. American Psychologist, 58(6/7), 433-440.
  • Blaya, C., Debarbieux, E., & Denechau, B. (2008). A systematic review of interventions to prevent corporal punishment, sexual violence and bullying in schools Plan International: Nova York.
  • Dumka, L. E., Roosa, M. W., Michaels, M. L., & Suh, K. W. (1995). Using research and theory to develop prevention programs for high-risk families. Family Relations, 44, 78-86.
  • Nation, M., Crusto, C.,Wandersman, A., Kumpfer, K. L., Seybolt, D., Morrissey-Kane, E., & Davino, K. (2003). What works in prevention: principles of effective prevention programs. American Psychologist, 58(6/7), 449-456.
  • Neto, A. L., & Saavedra, L. H. (2003). Diga não para o Bullying: Programa de Redução do Comportamento Agressivo entre Estudantes Rio de Janeiro: ABRAPIA.
  • Olweus, D. (2003). A profile of bullying at school. Educational Leadership, 60(6), 12-17.
  • Pepler, D., & Craig, W. (2011). Promoting relationships and eliminating violence in Canada. International Journal of Behavioral Development, 35(5), 389-397.
  • Pinheiro, F. M. F., & Williams, L. C. A. (2009). Violência intrafamiliar e envolvimento em bullying no ensino fundamental. Cadernos de Pesquisa, 39(138), 995-1018.
  • Rossi, P. H., Lipsey, M. W., & Freeman, H. E. (2004). Evaluation: a systematic approach (7a ed.). Reino Unido: Sage Publications.
  • Salmivalli, C., Karhunen, J., & Lagerspetz, K. M. J. (1996). How do the victims respond to bullying? Aggressive Behavior, 22, 99-109.
  • Sourander, A., Helstelä, L., Helenius, H., & Piha, J. (2000). Persistence of bullying from childhood to adolescence - a longitudinal 8-year follow-up study. Child Abuse & Neglect, 24, 873-881.
  • Wilson, S. J., & Lipsey, M. W. (2007). School-based interventions for aggressive and disruptive behavior: update of a meta-analysis. American Journal of Preventive Medicine, 33(2S), 130-143.
  • Endereço para Correspondência
    Ana Carina Stelko-Pereira
    R. Tenente João Gomes da Silva, 972, Mercês, Curitiba, Paraná
    E-mail:
  • 1
    . A primeira autora permaneceu 6 meses no Canadá realizando estágio de doutorado no exterior com apoio do CNPQ sob supervisão da Profa. Debra Pepler (Universidade de York, Canadá), fundadora e coordenadora do PREVNet.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012
    Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE), Rua Mirassol, 46 - Vila Mariana , CEP 04044-010 São Paulo - SP - Brasil , Fone/Fax (11) 96900-6678 - São Paulo - SP - Brazil
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