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O desenvolvimento da atenção voluntária no TDAH: ações educativas na perspectiva histórico-cultural

The development of voluntary attention in ADHD: educational actions in cultural-historical perspective

El desarrollo de la atención voluntaria en el TDAH: actividades educativas en la perspectiva histórico-cultural

RELATO DE PRÁTICA PROFISSIONAL

O desenvolvimento da atenção voluntária no TDAH: ações educativas na perspectiva histórico-cultural

The development of voluntary attention in ADHD: educational actions in cultural-historical perspective

El desarrollo de la atención voluntaria en el TDAH: actividades educativas en la perspectiva histórico-cultural

Anderson Jonas das NevesI; Lúcia Pereira LeiteII

IMestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem - Universidade Estadual Paulista, Bauru-SP. E-mail: filosofoajn@gmail.com

IIProfessora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem - Universidade Estadual Paulista, Bauru-SP. E-mail: lucialeite@fc.unesp.br

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Anderson Jonas das Neves Rua Rodolfina Dias Domingues, 10-70, Vila Ipiranga, Bauru, São Paulo, SP – Brasil. CEP: 17056-100.

As instituições escolares e organizações de saúde têm se deparado com o crescimento elevado de casos de crianças diagnosticadas com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) (Collares & Moysés, 2010; Rosa, 2011). Nessa perspectiva, evidencia-se a necessidade de se refletir e intervir sobre os processos de atenção e controle da conduta à luz de subsídios teórico-operacionais que permitam avançar e superar justificativas, discursos e práticas que reduzem a análise desse fenômeno a um modelo organicista (Collares & Moysés, 2010; Eidt & Tuleski, 2010; Landskron & Sperb, 2008; Leite & Tuleski, 2011). Entende-se que TDAH deve ser compreendido como construções que derivam das interações sociais estabelecidas pelo sujeito com o mundo social, sendo, portanto, um fenômeno interpsicológico. Os limites deste texto extrapolam um debate crítico sobre as classificações do TDAH, pretendendo demonstrar que tal ocorrência não está deslocada do contexto social em que se apresenta, o qual certamente influencia no modo como a escola se relaciona com alunos que recebem tal diagnóstico. Importa aqui, então, debater e discordar de como a sociedade julga a diferença como um elemento localizado no indivíduo, distanciando-se de uma compreensão social multifacetada do fenômeno, que requer, nessa perspectiva, ajustes contextuais.

Nessa direção, a experiência aqui relatada articula-se com os pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural para compreender o desenvolvimento humano, com destaque para as marcas sociais que constituem o homem e os elementos sócio-históricos envolvidos na conceituação desse transtorno (Leite & Tuleski, 2011). Com isso, espera-se ampliar o foco de análise do TDAH face às críticas aos processos de produção do fracasso escolar pautados em concepções cristalizadas, acentuadas fortemente em causas biológicas (Machado & Souza, 1997; Patto, 1981). Destarte, serão descritas intervenções realizadas durante atendimentos em estágio supervisionado na área da Educação Inclusiva, oferecido para um curso de graduação em Psicologia de uma universidade pública do interior paulista, que se constituiu em ações para a promoção da inclusão educacional de alunos, público-alvo da Educação Especial, definidos na sequência, e que necessitavam de ajustes curriculares por estarem distantes das expectativas acadêmicas para o ano frequentado.

Em um primeiro momento, as atividades do estágio configuraram-se em estudos dirigidos e discussões sobre os processos educacionais e o desenvolvimento das funções superiores à luz da Psicologia Sócio-Histórica (Luria, 1979; Vigotski, 1996), a construção social da deficiência e suas respectivas implicações nas políticas públicas de inclusão educacional, possibilitando aprofundamento teórico crítico e o planejamento sistemático das intervenções na área da Psicologia da Educação junto à demanda do estágio. Concomitante às atividades de supervisão, o estagiário realizou visitas orientadas à instituição não governamental que atendia a população do referido estágio, no caso, na área da Psicologia. Essa instituição, por sua vez, caracteriza-se pela oferta de atendimentos na área da educação e saúde para alunos da Educação Especial, sendo definidos pela Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva (MEC, 2008)1 1 . Os autores deste texto adotam a referência do público da Educação Especial apresentada no Art. 2 do Decreto nº 7.611, de 17 de novembro de 2011, do Ministério da Educação, que dispõe sobre a Educação Especial, o atendimento educacional especializado e dá outras providências, estabelecendo que "A educação especial deve garantir os serviços de apoio especializado voltado a eliminar as barreiras que possam obstruir o processo de escolarização de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação". Nessa normativa, entretanto, excluem-se os transtornos funcionais do desenvolvimento. enquanto "[...] alunos com deficiência, altas habilidades e superdotação, transtorno global do desenvolvimento [...], síndromes do espectro do autismo e psicose infantil, transtornos funcionais de desenvolvimento, ou seja, alunos com dislexia, disortografia, disgrafia, discalculia, transtorno de atenção e hiperatividade, entre outros" (p. 15).

Lucas2 2 . Nome fictício do aluno participante desta proposta. , sujeito foco deste estudo, era um garoto de dez anos, filho de pais presidiários e tutelado pelos avôs paternos desde os três anos. Frequentava o quarto ano do ensino fundamental de uma escola municipal e era usuário do serviço de Psicologia da referida instituição, após ser diagnosticado com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Sua trajetória escolar iniciou-se aos seis anos em uma escola municipal infantil, com constantes interrupções de aulas e transferências sucessivas de professores no decorrer do ano letivo. No primeiro ano do ensino fundamental, a criança ingressou em uma nova escola, apresentando dificuldades de adaptação, choro e recusa. Em 2009, com o início da alfabetização e a substituição da professora no decorrer do ano letivo, o aluno exibia choro frequente, comportamentos de desatenção diante dos conteúdos escolares, dificuldade em leitura e escrita e agitação em classe, que repercutiram na avaliação do seu desempenho acadêmico, tido como muito inferior ao esperado e visto como disperso e agitado em classe. Os problemas de comportamento e a defasagem escolar do aluno tornaram-se temas recorrentes nas reuniões docentes, corroborando para que conselho escolar e os avôs decidissem conjuntamente, ao final do segundo ano do ensino fundamental, o encaminhamento para avaliação multiprofissional, momento em que se diagnosticou o TDAH pela equipe multidisciplinar da instituição. A partir de então, começou a frequentar os atendimentos grupais em Psicologia da referida instituição.

Como aspectos metodológicos das intervenções realizadas, informa-se que, no início das atividades do estágio, foram efetuadas observações semanais do contexto escolar (sala de aula e recreio) e dos atendimentos institucionais em grupo da área da Psicologia, acrescida de entrevistas com avôs, psicóloga da instituição e professora regular, que ofereceram subsídios para o planejamento sistemático de estratégias a serem efetivadas com a criança. Durante os atendimentos institucionais, percebeu-se que a criança movimentava-se e falava em excesso, incomodava os colegas durante a realização das atividades, distraía-se com outros elementos da sala e se recusava a fazer tarefas que exigissem a escrita, alegando desinteresse pelos conteúdos propostos. A psicóloga da instituição supunha que tais comportamentos fossem decorrentes do quadro familiar apresentado, aliado à recusa familiar do uso de medicações específicas. Quando os avôs foram entrevistados, relataram a dificuldade em colocar limites e rotina de estudos com o neto, justificando tais condutas com afirmativas de que ele sempre foi assim e não apresentaria mudanças. Em diálogo com a professora da sala de aula, percebeu-se que as queixas escolares se pautavam em função do diagnóstico de TDAH, reproduzindo assim o discurso médico reducionista (Collares & Moysés, 2010; Eidt & Tuleski, 2010), e na sua dificuldade pedagógica em lidar com o aluno. À luz dessas informações, foram planejadas intervenções na área da Psicologia da Educação, em proposta conjunta com a psicóloga da instituição e com a professora de sala de aula, que tiveram como objetivo implantar ações intencionais de ensino que procurassem auxiliar no desenvolvimento gradativo da atenção voluntária, na instituição e no espaço escolar.

Nos atendimentos da instituição, que eram feitos com três crianças com queixa e faixa etária semelhantes, inicialmente foram ofertadas atividades lúdicas coletivas, como brincadeira da estátua e construção de história com fantoches, propiciando que Lucas se envolvesse e tivesse participação ativa nas atividades coletivas. Em prosseguimento, desenvolveu-se com o grupo uma atividade que envolvia a elaboração de uma maquete, a qual demandava que as crianças retratassem o contexto/cenário estrutural e social da instituição, pela confecção e emprego de peças em miniatura. Essa atividade exigia que se recriasse no imaginário o cenário observado e, após reconstruí-lo com outros elementos cotidianos (uso livre dos materiais escolares diversos), transpondo uma situação real, objetivava-se uma ação concreta, operacionalizada sob diferentes óticas e análises, formuladas pelas funções psicológicas superiores diante de instrução intencional. No andamento da atividade, observaram-se os seguintes comportamentos da criança: verbalização das ações que deveria realizar para a elaboração da maquete (planejamento externalizado das ações); seleção dos objetos necessários para confecção das diferentes partes da maquete (seletividade das informações); construção das partes da maquete em cooperação com os colegas (trocas sociais). Ressalta-se que nesse processo discutiu-se com o grupo a finalidade da maquete (função social) e depois foi averiguado o significado particular dessa atividade (sentido pessoal). Como resultados da proposição dessa atividade, que foi realizada em sessões semanais durante dois meses, destacam-se a seleção da informação, motivos, finalidades, planejamento e organização da ação, que guiaram a conduta e a atenção de Lucas na construção da maquete, sendo esses elementos considerados por Vigostki (1996) e Luria (1979) enquanto aspectos fundamentais para o desenvolvimento de funções psíquicas superiores que envolvem a manifestação da atenção voluntária. Em outras palavras, a realização de uma atividade de ensino intencional que representasse em alguma medida o espaço cotidiano vivenciado na instituição possibilitou associar habilidades, interesses e motivações da criança em situações de aprendizagens que exigissem percepção, memória, pensamento lógico e abstração e atenção.

Em complementar, foram realizadas intervenções na escola, as quais foram planejadas em conjunto com a professora da sala de aula, que também objetivaram a proposição de ações intencionais de ensino que facilitassem o desenvolvimento da atenção voluntária em atividades escolares, como a elaboração de histórias curtas sobre diversidade humana e a produção de um jornal da classe. Nessa direção, foram apresentadas estratégias de ensino durante as aulas de Português que consistiam em abordar o tema "diversidade humana", em função de haver vários alunos da Educação Especial na escola, sob a forma de exercícios grupais que envolviam colagem, montagem de quebra-cabeças, elaboração de histórias a partir de figuras ilustrativas de pessoas com deficiência e, na sequência, a produção de um jornal da classe sobre a temática debatida. Ressalta-se que as produções coletivas do jornal da classe e as histórias sobre diversidade humana, por iniciativa da escola, foram expostas na feira cultural, recebendo reconhecimento por parte dos professores e pais dos alunos, visto que apresentaram reflexões relevantes no reconhecimento às diferenças. Particularmente, na produção do jornal da classe, Lucas envolveu-se no universo de ações dessa atividade, selecionando figuras para a elaboração das manchetes do jornal, redigindo pequenos textos sobre deficientes esportistas (tema de seu interesse) e auxiliando na montagem da estrutura do jornal. Durante o desenvolvimento dessa ação, a professora identificou que o aluno compartilhava habilidades e conhecimentos com os pares, interagia adequadamente na discussão e mantinha-se atento às instruções dadas. Ressalta-se o papel importante da professora no processo de desenvolvimento das funções psicológicas superiores (Meira, 2008). Outro fator de destaque foi a intervenção reflexiva conjunta sobre a proposição de práticas pedagógicas, uma vez que favoreceu o repensar crítico da professora das estratégias e da participação do aluno, indicando assim a contribuição da Psicologia em processos de formação continuada (Leite & Aranha, 2005; Leite & Perinotto, 2010).

Por fim, a experiência retratada da atuação na área da Psicologia da Educação, realizada em parceria com profissionais da instituição e professores da escola, resgata a importância da reflexão crítica diante de diagnósticos clínicos que, em grande medida, são utilizados para justificar o fracasso escolar e predeterminar pouco investimento de ações que possam justamente auxiliar o desenvolvimento do que se apresenta em déficit. Ao problematizar processos sociais de exclusão/estigmatização da diferença e a naturalização da normalização/homogeneidade do humano, foi possível identificar novos olhares sobre a diversidade humana e com implicações relevantes para o contexto da Educação em particular, contribuindo para o fortalecimento de ações de suporte educacional que convergem com os preceitos da Educação Inclusiva.

Lúcia Pereira Leite

Avenida Eng. Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01, Vargem Limpa,

Bauru, São Paulo, SP – Brasil. CEP: 17033-360 Caixa-Postal: 473.

Recebido em: 29/08/2012

Reformulado em: 04/12/2012

Aprovado em: 23/01/2013

  • Collares, C. A. L., & Moysés, M. A. A. (2010). Dislexia e TDAH: uma análise a partir da ciência médica. Em Conselho Regional de Psicologia de São Paulo & Grupo Interinstitucional de Queixa Escolar (Orgs.), Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doença de indivíduos (pp. 193-213). São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Eidt, N. M., & Tuleski, S. C. (2010). Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade e Psicologia Histórico-Cultural. Cadernos de Psicologia, 40(139), 121-146.
  • Landskron, L. M. F., & Sperb, T. M. (2008). Narrativas de professoras sobre o TDAH: um estudo de caso coletivo. Psicologia escolar e educacional, 12(1), 153-167.
  • Leite, H. A., & Tuleski, S. C. (2011). Psicologia Histórico-Cultural e desenvolvimento da atenção voluntária: novo entendimento para o TDAH. Psicologia escolar e educacional, 15(1), 111-119.
  • Leite, L. P., & Aranha, M. S. F. (2005). Intervenção reflexiva: instrumento de formação continuada do educador especial. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 21(2), 207-215.
  • Leite, L. P., & Perinotto, S. (2010). O pesquisador enquanto mediador na construção do conhecimento do professor. Revista Educação em Questão, 37(23), 99-120.
  • Luria, A. R. (1979). Curso de Psicologia Geral Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
  • Machado, A. M., & Souza, M. P. R. (1997). Psicologia Escolar: em busca de novos rumos São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Meira, M. E. M. (2008). A teoria de Vigotski: conceitos e implicações para a Psicologia da Educação. Em L. M.Martins (Orgs.), Sociedade, Educação e Subjetividade: Reflexões temáticas à luz da psicologia sócio-histórica (p. 145-173). São Paulo: Cultura Acadêmica.
  • Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. (2008). Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: MEC/SEESP.
  • Patto, M. H. S. (1981). Introdução à Psicologia Escolar São Paulo: T. A. Queiroz.
  • Rosa, S. A. (2011). Dificuldades de atenção e hiperatividade na perspectiva histórico-cultural. Psicologia escolar e educacional, 15(1), 143-150.
  • Vygotsky, L. S. (1996). A formação social da mente Rio de Janeiro: Martins Fontes.
  • Endereço para correspondência:

    Anderson Jonas das Neves
    Rua Rodolfina Dias Domingues, 10-70, Vila Ipiranga,
    Bauru, São Paulo, SP – Brasil. CEP: 17056-100.
  • 1
    . Os autores deste texto adotam a referência do público da Educação Especial apresentada no Art. 2 do Decreto nº 7.611, de 17 de novembro de 2011, do Ministério da Educação, que dispõe sobre a Educação Especial, o atendimento educacional especializado e dá outras providências, estabelecendo que "A educação especial deve garantir os serviços de apoio especializado voltado a eliminar as barreiras que possam obstruir o processo de escolarização de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação". Nessa normativa, entretanto, excluem-se os transtornos funcionais do desenvolvimento.
  • 2
    . Nome fictício do aluno participante desta proposta.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      29 Ago 2012
    • Aceito
      23 Jan 2013
    • Revisado
      04 Dez 2012
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