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Compromisso ético-político da psicologia na educação como expressão da perspectiva histórico-cultural

School psychology's ethical-political commitment as an expression of cultural-hiistorical perspective

Compromiso ético-político de la psicología en la educación como expresión de la perspectiva histórico-cultural

HISTÓRIA

Compromisso ético-político da psicologia na educação como expressão da perspectiva histórico-cultural* * Transcrição da conferência de encerramento do XI Congresso Nacional de Psicologia Escolar e Educacional, ocorrido em agosto de 2013, em Uberlândia, MG.

School psychology's ethical-political commitment as an expression of cultural-hiistorical perspective

Compromiso ético-político de la psicología en la educación como expresión de la perspectiva histórico-cultural

Elenita de RicioTanamachi - UNESP-Bauru SP/LIEPPE-IPUSP

Esta conferência propõe o compromisso ético-político da Psicologia na Educação como expressão da Psicologia Histórico-Cultural e de sua referência teórico-metodológica, o Materialismo Histórico-Dialético, com o objetivo de superar as concepções que referendam a adaptação dos indivíduos ao contexto social, característica ainda hegemônica da Psicologia Escolar como conhecimento e como atividade prática. Para tanto, explicita de que compromisso ético-político, de que educação e de que psicologia escolar é possível tratar no contexto do Materialismo Histórico-Dialético e defende a emancipação como finalidade da Psicologia. Apresenta as implicações dessa concepção no contexto da educação, delimitando a intervenção do psicólogo em instituições educativas e quanto à queixa escolar. Conclui que, na perspectiva histórico-cultural, a Psicologia Escolar e/ou da Educação constituem a dimensão educativa da formação do psicólogo.

Para iniciar, proponho que se acompanhe uma análise sobre as manifestações desencadeadas recentemente no Brasil pelo movimento "Passe Livre", publicada pelo professor Ivo Tonet, da Universidade Federal de Alagoas. Seu texto é extremamente esclarecedor quanto ao compromisso ético-político presente em tais manifestações. Dele extraí alguns trechos que põem o tema do congresso e da minha conferência em relação com a realidade brasileira do momento e que justificam a atualidade do referencial teórico-metodológico aqui proposto.

Falemos do compromisso ético-político nos movimentos sociais atuais, conforme o professor Ivo Tonet (2013). ** ** As ideias aqui apresentadas são de autoria dos textos citados nas referências bibliográficas.

Como pano de fundo do que ocorre hoje no Brasil, numa retrospectiva histórica, o autor aponta a "vitória esmagadora do capital sobre o trabalho [... ] com a consequente intensificação da exploração da classe trabalhadora e a perda de horizonte revolucionário (substituído pelo "aperfeiçoamento da atual ordem social" como horizonte mais presente) [... ]".

Isso explica por que, em vez de lutar "contra o capital e o Estado", a classe trabalhadora e os movimentos sociais lutam "com o capital e o Estado" para a conquista de melhorias pontuais, nunca colocando em questão a "ordem social capitalista". Coloca o autor:

" [... ] As ideias de revolução, de socialismo, de superação de toda exploração e dominação do homem pelo homem, de construção de uma sociedade realmente igualitária foram substituídas pelas ideias de reforma, democracia, cidadania, universalização dos direitos, melhorias gradativas [... ]".

" [... ] Este conjunto de circunstâncias gerou uma ideologia profundamente conservadora e individualista [... ]".

Resumindo, vivemos historicamente:

a "substituição de horizonte revolucionário por horizonte reformista";

a "descrença na possibilidade de mudar o mundo na sua totalidade e o apego a reformas pontuais";

a "sensação de impotência diante dos problemas sociais";

a "ideia de que todas as lutas deveriam confluir para o Estado, ou para tomá-lo e, supostamente, colocá-lo a serviço das classes populares ou para arrancar dele melhorias pontuais";

"O acento na ação individual e eleitoral em substituição à luta coletiva"; a identificação do socialismo com falta de "liberdades democrático-cidadãs", "com ditadura", "com partido único e todo-poderoso", "com supressão de toda propriedade [... ] sobrando apenas a busca do aperfeiçoamento da democracia e da cidadania [... ]".

Situando o caso brasileiro, o professor destaca a chegada do governo instituído na contemporaneidade ao poder, marcada pela aparente oposição aos interesses do capital. Isso gerou expectativa de mudanças substanciais e o pacto entre o capital e o trabalho como solução para os problemas sociais, mas nenhuma mudança estrutural ocorreu.

Temos assistido às privatizações (concessões, parcerias público-privadas, isenções fiscais, mercantilização de tudo, corte dos gastos públicos, privatização do serviço público, fortalecimento de interesses privados) e as políticas sociais compensatórias.

Na esfera política esse comportamento tipicamente burguês é marcado por alianças, corrupção, utilização de bens públicos para fins privados, manipulação das massas com fins eleitoreiros, criminalização das lutas sociais, favorecimento de grandes grupos empresariais. As consequências disto são o agravamento dos problemas sociais e a insatisfação descrédito em relação às instituições políticas, a despolitização, a alienação e o apassivamento, a confusão ideológica e política, a percepção da enorme desigualdade social, o aumento da inflação, a deterioração do serviço público e gastos com a construção e a reforma de estádios de futebol, impostos abusivos x o que é recebido em troca: a violência... Diante deste contexto, explode insatisfação de toda a população e de inúmeros setores.

Enfim, o aumento do transporte foi a gota d'agua.

Mas, atenção! De acordo com o professor Ivo "a falta [... ] de esclarecimento acerca das causas mais profundas dos problemas sociais pode facilmente tornar essas massas presa de grupos reacionários e/ou de indivíduos "salvadores"". A ausência da "classe operária" organizada nesse movimento, porque atrelada "ao Estado [... ] enfraquece as lutas surgidas nas organizações partidárias e nos movimentos sociais".

"Tudo isso contribui para iludir as massas, fazendo-as acreditar que a resolução dos problemas sociais centra-se em questões éticas contra a corrupção, contra a malversação de recursos públicos; em questões administrativas, como melhorar os gastos dos recursos públicos e diminuir os impostos; questões políticas baseadas na ideia de reforma política para conquistar o Estado e/ou reformas realizadas pelo Estado [... ]".

As questões ético-políticas, se assim colocadas, admitem soluções circunstanciais, somente encontradas no contexto do capitalismo, mas a resolução desses problemas, cuja essência explica/extrapola o âmbito difuso que assumem nesse contexto, porque entendidos como problemas universais, "só pode ser encontrada com a superação radical do capitalismo e a construção de uma sociedade socialista."; e nesse caso, é a classe trabalhadora que continua sendo o sujeito fundamental das transformações almejadas, mas para isso é preciso que ela esteja organizada política e ideologicamente contra o capital e contra o Estado.

Aqui a discussão sobre o compromisso ético-político atualiza a concepção materialista histórico-dialética que encontrei no Dicionário do Pensamento Marxista sobre o tema, sem descaracterizá-lo (sem pós-modernizá-lo!!!). ** ** As ideias aqui apresentadas são de autoria dos textos citados nas referências bibliográficas.

Sobre o verbete ética na perspectiva do Materialismo Histórico-Dialético, no referido dicionário, encontramos em síntese o que se segue.

A moral própria à economia capitalista não garante a emancipação, uma vez que essa forma de organização produz:

"a exploração do homem pelo homem";

"a reificação das relações sociais entre os seres humanos como relações entre coisas";

"a destruição dos pressupostos vivos de toda a produção (a natureza e a humanidade)".

Nesse caso, a moral admite apenas questões ético-administrativas e/ou políticas próprias às circunstâncias, de que são exemplos as bandeiras levantadas contra a corrupção e a malversação de recursos públicos, por menos impostos, pela conquista do Estado (para ser mais representativo) e por reformas políticas. Essa moral é subjetiva, genérica/geral: uma moral de aparência.

O dicionário vai a Marx para afirmar que o socialismo proposto pelo autor "não se baseia numa exigência moral subjetiva, mas em uma teoria da história". A sociedade capitalista da época de Marx (e nem mesmo a de hoje) não pode ser a meta final da história, pelas consequências que produz. Então a moral subjetiva é impotente (insuficiente) para dar conta dessa meta. O resultado da evolução histórica deve ser a emancipação da humanidade, do proletariado.

Para Marx (1989), no socialismo a moralidade não se faz necessária porque os interesses privados e os interesses gerais da humanidade devem coincidir. "Se o homem é formado pelas circunstâncias, estas devem ser formadas humanamente".

Para Engels, trata-se de processo progressivo, pois "a moral do proletariado vitorioso acabará por se tornar a moral universal da humanidade".

Assim, "As transformações da teoria ética marxista estão relacionadas com transformações na teoria da história e nas próprias circunstâncias históricas", portanto não são normas próprias à economia capitalista (superam-nas no sentido da emancipação das condições nesse caso impostas aos indivíduos).

A tese aqui é que a sociedade comunista é moralmente superior à existente, e isso põe a questão da relação entre os meios e os fins no contexto da ética (a justificação do mal como meio inevitável para a realização do progresso não procede). "Há meios que são, por princípio, inadequados para a consecução de um objetivo moral"; são inadequados a uma sociedade de indivíduos emancipados. O socialismo utópico, cristão, e os movimentos contemporâneos como esses analisados por Ivo Tonet podem ser revolucionários apenas em um ou outro aspecto (político, mas não social).

No campo da política, a defesa de Marx e Engels é pela revolução acompanhada de transformação social, o que não ocorre em nenhum desses casos - seja nos socialismos reais seja no dos movimentos contemporâneos.

A revolução política tem que ser acompanhada de transformação social. Não basta denunciar/criticar a realidade, é preciso transformá-la. É preciso explicar/entender a corrupção, os altos impostos, enfim todas as bandeiras genéricas, a aparência que é suficiente para a moral subjetiva. Ir à essência dos fenômenos exige instrumentos teóricos dos quais os indivíduos foram expropriados em sua formação.

É esse compromisso ético-político (delimitado nas especificidades do conhecimento em questão) que buscamos ao propor a atividade do psicólogo escolar como expressão da Psicologia Histórico-Cultural.

Visando à concretização desse compromisso ético-político na atividade teórico-prática do psicólogo na Educação, vou defender aqui a tese que orienta e organiza o trabalho de nosso grupo de estudos do LIEPPE, sediado no IPUSP.

A tese "propõe que o método Materialista Histórico Dialético é o diferencial da teoria Histórico-Cultural porque permite explicar a realidade e as possibilidades concretamente existentes para a sua transformação, desde que a finalidade seja a superação daquelas condições ou circunstâncias particulares de objetivação/apropriação alienada no sentido da humanização, ou seja, no sentido da constituição da socialidade dos indivíduos". *** *** O conteúdo apresentado nos itens assim assinalados encontra-se no texto "Teoria, método e pesquisa na psicologia histórico-cultural", citado nas referências bibliográficas.

Por socialidade aqui se entende a constituição da condição universal nos indivíduos singulares, como marca do processo de humanização ou apropriação. por indivíduos singulares. daquilo que o gênero humano elaborou, tendo a relação indivíduo-sociedade como mediadora.

Com essa tese, defende-se que, no caso da Psicologia Histórico-Social, o compromisso ético-político se expressa por meio do método materialista histórico-dialético, porque a epistemologia materialista histórico-dialética veicula uma visão de homem e de sociedade numa concepção ética: uma visão gestada no marco de uma nova sociedade para analisar/explicar/transformar a atual. Tal visão implica a construção de uma ordem social que assegure a todos os homens um presente e um futuro dignos e exige compromisso pessoal e com a construção de um conhecimento científico capaz de permitir que o homem se objetive de forma social e consciente.

Essa é a referência teórico-metodológica dos autores da Psicologia Histórico-Cultural (Luria, Leontiev e Vigotski), por inúmeras razões considerada como inadequada, ultrapassada e até mesmo ideológica - enfim, não compreendida na atualidade.

Atenção: "É usual ouvirmos que o materialismo histórico-dialético é uma concepção tão ideológica quanto qualquer outra concepção científica; no entanto, o conceito de ideologia usado nessa desqualificação do marxismo refere-se a um conceito de senso comum, desconsiderando, na perspectiva de Marx, que o pensamento ideológico é aquele que visa dissimular a dominação de uma classe sobre a outra por meio do ocultamento de uma situação particular conferindo-lhe aparência de universal".

Terminada essa longa mas necessária introdução, proponho as categorias do método materialista histórico-dialético que têm implicações imediatas para a Psicologia Histórico-Cultural, enfocando as proposições de Vigotski para transformar o método de Marx em "O Capital" que falta à psicologia. Finalmente, destaco a investigação/intervenção do psicólogo escolar como expressão dessa perspectiva.

Vamos às categorias do método materialista histórico-dialético que garantem à Psicologia Histórico-Cultural o compromisso ético-político com a emancipação naqueles aspectos que lhe são específicos como ciência. *** *** O conteúdo apresentado nos itens assim assinalados encontra-se no texto "Teoria, método e pesquisa na psicologia histórico-cultural", citado nas referências bibliográficas.

Para Marx, conforme Betty Oliveira (2005), a referência sobre o humano no homem não está na essência divina ou subjetiva, nem na essência biológica ou no meio/na experiência (na relação indivíduo-sociedade), mas está no trabalho como intercâmbio homem/natureza.

O trabalho, enquanto atividade mediadora do processo de humanização e como primado ontológico para compreender a humanização é uma categoria importante do método materialista histórico-dialético porque aponta para a superação de sua condição como atividade produtora de mais-valia no contexto da economia capitalista.

É na execução do trabalho como atividade principal que o homem toma para si os bens elaborados pelo conjunto dos homens (gênero humano) e os fenômenos da natureza, fazendo deles órgãos de sua individualidade. Desse modo, desenvolve a consciência humana e participa do desenvolvimento/transformação do ser da realidade e objetiva-se como ser humano (universal); e como a alienação é a característica constitutiva do trabalho na economia capitalista, então a emancipação almejada depende da superação dessa condição (alienada) em todos os níveis de relação com o trabalho (na relação com a execução, com o seu produto, com o conjunto de atividades/gênero e na relação entre os homens).

O caráter material da existência é também importante, pois permite afirmar o modo de produção da existência como elemento explicativo e constitutivo do processo de humanização, já que para essa concepção, são as relações de produção que, na economia capitalista, determinam o conteúdo e a forma da relação entre os homens, determinam a "consciência dos homens", o seu ser.

O caráter histórico do desenvolvimento humano configura-se como outra categoria da concepção marxiana que orienta a Psicologia Histórico-Cultural, pois se as mudanças históricas da sociedade e da vida material produzem mudanças na consciência e no comportamento humano, então a historicidade é dimensão essencial da formação do psiquismo humano, conforme entende Marta Shuar, (1990).

Como se pode observar, o trabalho, o caráter material da existência humana e a historicidade são categorias ontológicas para a compreensão do processo de humanização na perspectiva do Materialismo Histórico-Dialético; porém essas categorias só podem ser assim compreendidas por meio da lógica dialética, a lógica de conhecimento e de explicação da realidade peculiar a essa perspectiva e à Psicologia Histórico-Cultural.

O processo de conhecimento sobre a realidade permite reconhecer o movimento e as contradições nas relações entre os homens e suas formas de organização. Para Vigotski (1996), "é a ciência em geral, universal ao máximo".

A lógica dialética materialista e histórica pressupõe as leis da realidade transformadas em leis do pensamento por meio das categorias universalidade e mediação, e as leis da contradição, da negação da negação e da transformação da quantidade em qualidade. Desse modo, as leis do pensamento são formas psíquicas do reflexo da realidade, são a apropriação do real pelo pensamento e sua transformação em ideal no psiquismo humano mediado pelas significações socialmente compartilhadas.

Para a lógica dialética, o processo de conhecimento ocorre por meio de dois movimentos: do real concreto ao abstrato, por meio de conceitos, categorias e relações gerais, e do abstrato ao concreto no pensamento como uma " [... ] rica totalidade de determinações e relações diversas" (Marx, 1989).

A lógica dialética pressupõe a relação singular-particular-universal em qualquer dimensão da produção humana (Oliveira, 2005). Como pressuposto da lógica dialética, essa relação do singular-particular-universal permite entender a realidade como uma condição particular, mediadora entre as condições singulares e universais de humanização. Aqui é possível pensar na superação da condição atual de humanização que ocorre por meio da alienação.

No caso da constituição do gênero humano, "o singular é entendido como o indivíduo que, para se emancipar, precisa relacionar-se com os bens materiais e intelectuais produzidos pelo conjunto dos homens"; "O universal é o gênero humano que, quando objetivado e apropriado pelos homens individualmente, constitui-se como a meta máxima de humanização. Esta é a condição ineliminável, a possibilidade de emancipação pela apropriação da produção humana e não pela condição de submissão às circunstâncias de exploração do homem pelo homem", e "O particular é o elemento mediador, a sociedade, as circunstâncias por meio das quais os indivíduos singulares relacionam-se com o gênero. São as condições instituídas historicamente que dão a forma e o conteúdo a partir dos quais o indivíduo relaciona-se com o gênero humano. O particular não representa o gênero humano, dele apenas mantém a parte necessária para validar o movimento de exploração. Mas, devido ao processo de alienação, é tomado como sendo o gênero, a categoria geral. Na sociedade de classes, o particular é alienante e alienador. A emancipação é entendida como emancipação meramente política, a liberdade é a de mercado e a adaptação é o principio fundamental nas condições particulares".

A alienação é a condição de todos os indivíduos no modo de produção capitalista.

No contexto do conhecimento, essa relação dialética do singular-particular-universal requer atenção às dimensões ontológica (condições históricas e universais de constituição da atividade humana), gnosiológica e epistemológica (teorias que explicam, respectivamente, a origem do conhecimento em geral e do conhecimento científico) e lógica (como se desenvolve o pensamento).

A atenção a essas dimensões do conhecimento e o movimento expresso pela relação dialética do singular-particular-universal permitiram aos psicólogos russos propor a Psicologia Histórico-Cultural com a finalidade de superar as teorias psicológicas hegemônicas de sua época.

Vejamos algumas proposições de Vigotski para transformar o método de Marx em "O Capital" que falta à Psicologia. *** *** O conteúdo apresentado nos itens assim assinalados encontra-se no texto "Teoria, método e pesquisa na psicologia histórico-cultural", citado nas referências bibliográficas.

Uma das grandes contribuições de Vigotski para a Psicologia foi a apropriação do Materialismo Histórico-Dialético como mediação para a formulação da Psicologia Histórico-Cultural sem desconsiderar que o sistema categorial e o caráter do conhecimento na filosofia e na psicologia são diferentes.

O autor defende a tese de que falta à Psicologia o seu "Capital", uma teoria geral que, ao dialogar com as diferentes concepções, permita compreendê-las como mediadoras entre o saber da Psicologia e o conhecimento em suas dimensões ontológica, gnosiológica, epistemológica e lógica, buscando a explicação do real de forma objetiva.

"O método Materialista Histórico-Dialético leva o autor a explicar que as mudanças ocorridas no contexto das várias psicologias encerram-se no âmbito da teoria, respondendo apenas à dimensão epistemológica. É isso que faz abordagens, na aparência diferente, terem finalidades semelhantes, já que sua lógica de desenvolvimento é sempre a mesma - a lógica formal, por meio da qual a psicologia separa-se das demais áreas do conhecimento. Além disso, tais teorias não consideram a sociedade como uma mediação, como uma particularidade, mas sim como a meta máxima de constituição do indivíduo. Nesse caso, seu objetivo é a adaptação dos indivíduos às circunstâncias atuais, e não a transformação de ambos para superar a condição alienada que caracteriza o trabalho na sociedade de classes".

" [... ] Vigotski trouxe para a realidade da psicologia a relação do indivíduo singular com o gênero humano, mediada pelas condições particulares, o que lhe faz explicar a história de constituição da psicologia, explicitando elementos importantes para a superação de sua condição como conhecimento parcial, expresso nas teorias psicológicas, na direção de sua constituição como teoria geral". Aqui a relação singular-particular-universal tem, nas várias teorias psicológicas já constituídas, os elementos mediadores entre o conhecimento em geral e a Psicologia Geral como o "Capital" da Psicologia.

Tal investigação tem a finalidade de explicar como a Psicologia constitui-se no momento atual, propondo elementos que tornam possível entender em que ela deve se constituir para responder ao seu lugar no processo de humanização dos indivíduos.

Para dar conta dessa tarefa, o autor propõe alguns princípios necessários à investigação das funções psicológicas superiores. Um deles é a análise de processos psicológicos, e não apenas de produtos do desenvolvimento psicológico (tomados como objetos ou situações isoladas). É preciso investigar e compreender como determinado fenômeno se desenvolve na história social dos indivíduos.

Outro princípio refere-se à explicação dos fenômenos para superar a mera descrição e compreender os fenômenos em sua essência (buscando sua gênese e as bases dinâmico-causais).

A investigação do "comportamento fossilizado" é outro princípio proposto por Vigotski para buscar aqueles comportamentos que, por terem perdido sua origem e aparência externa e por terem sido automatizados, não revelam a sua natureza interna, dando a impressão de comportamentos naturais. Levantar a história, a gênese desses comportamentos permite entender seu processo de transformação.

Esses princípios que constituem o projeto de Psicologia do autor tornaram possível:

-- redefinir seu objeto de estudo: a Psicologia é a ciência que estuda como o mundo objetivo (da arte, dos instrumentos de trabalho e da indústria) medeia a constituição dos indivíduos (Shuare, 1990); ou seja, o objeto da Psicologia é o desenvolvimento histórico do psiquismo humano; e isso só foi possível graças à ênfase no caráter mediatizado do psiquismo humano proposto pelo autor;

-- entender o psiquismo como reflexo psíquico da realidade;

-- delimitar as unidades de análise do psiquismo visando às unidades mínimas que conservam as propriedades do todo complexo;

-- explicitar o método genético experimental para chegar à gênese da constituição das funções estudadas;

-- entender o conceito de Zona de Desenvolvimento Próximo;

-- entender a atividade psicológica mediada como a base do movimento de apropriação da realidade objetiva, sendo essa atividade mediada a unidade de construção da consciência.

"A importância atribuída pelo autor à atividade mediada na constituição do psiquismo humano resgata a essência do método materialista histórico-dialético ao trazer a socialidade como condição ineliminável de constituição do homem como ser genérico".

"Ao considerar a historicidade e a totalidade no estudo da constituição e do desenvolvimento humano, a obra de Vigotski é a manifestação do método Materialista Histórico Dialético na Psicologia e, ao mesmo tempo, é a produção teórica que expressa a compreensão da constituição e desenvolvimento do homem como ser social (universal) e não como indivíduo alienado", fruto das circunstâncias atuais e a ela submetido.

Esse é o compromisso ético-político do Materialismo Histórico-Dialético, agora expresso como conteúdo da Psicologia.

Resta-nos explicitar/explicar o contexto de intervenção do psicólogo na Educação como expressão dos princípios e categorias do método materialista histórico-dialético, transformado em conteúdo da Psicologia Escolar, enfocando as respostas possíveis quanto às demandas da Educação. **** **** O conteúdo apresentado nessa parte da conferência encontra-se nos textos "A mediação da psicologia histórico-cultural na atividade de professores e do psicólogo" e "A atuação do psicólogo como expressão do pensamento crítico em psicologia e educação", ambos citados nas referências bibliográficas.

O referencial da Psicologia Histórico-Cultural até aqui proposto permite-nos explicitar espaços muito bem delimitados para a psicologia e para a educação no contexto da formação histórico-cultural dos indivíduos. Há uma afirmação de Rubinstein, resgatada por Davidov (1988), segundo a qual o objeto da psicologia é constituído pelas leis do desenvolvimento do psiquismo e o processo pedagógico é sua condição.

O objeto da pedagogia é constituído pelas leis específicas da educação, do ensino. As propriedades psíquicas nos diferentes níveis de desenvolvimento são condições a serem consideradas: "O que para uma destas ciências é objeto, para a outra atua como condição".

Qual tem sido a postura do psicólogo em contextos de escolarização?

Historicamente, o psicólogo faz a Psicologia acontecer na escola, ou o que é tão inadequado quanto, e defende a desescolarização. Atua como se fosse possível substituir o foco da ação do professor pelo objeto da Psicologia. Desse modo, a Psicologia tem justificado espaços corporativos ao psicólogo na Educação, muitas vezes denominados de Psicologia Escolar (diante da pergunta "por que o aluno não aprende?", ele posiciona-se como um "resolvedor de problema" e valida/justifica/atualiza o status quo da Educação e da própria Psicologia como ciência).

Nosso desafio aqui é romper com essa realidade de trabalho, propondo encaminhamentos que permitam estruturar/explicitar a psicologia como uma condição que precisa ser considerada pelo professor (um conhecimento a ser apropriado pelo professor - lembrando que não se trata de qualquer concepção de Psicologia, nem de Educação).

Para a perspectiva Histórico-Cultural

A psicologia é a ciência que se propõe a explicar como, a partir do mundo objetivo, constrói-se o mundo subjetivo do indivíduo - portanto os processos de subjetivação/objetivação/apropriação do mundo social dos indivíduos são o objeto da psicologia e o espaço de mediação na atividade do psicólogo.

A aprendizagem escolar é a principal atividade para garantir o processo de humanização dos indivíduos, porque possibilita e movimenta o processo de desenvolvimento do pensamento, tendo a linguagem, a consciência e as emoções como mediadoras dessa ação.

O objeto de estudo/intervenção da psicologia na educação é o modo como a aprendizagem é determinada pela educação e pela descoberta das leis psicológicas que regem esse processo.

A atividade do psicólogo consiste em mediar a análise e a descrição da relação entre o processo de produção das demandas escolares e/ou educativas e os processos de subjetivação/objetivação dos indivíduos nelas envolvidos. O psicólogo é o mediador no processo de compreensão e elaboração das condições necessárias para a superação da queixa/demanda, mediação necessária à superação das histórias de fracasso e/ou sucesso.

A queixa/demanda é entendida como síntese de múltiplas determinações, portanto, a superação das condições nas quais se apresentam depende de uma ação comprometida e consciente de todos os envolvidos, mediada pelo psicólogo.

É preciso compreender que a demanda é uma representação isenta de análise; portanto cabe propor o resgate da essência do que foi apresentado como demanda por meio da investigação/explicação/ação conjunta.

A avaliação e a intervenção não podem se pautar por métodos que visem encontrar nos indivíduos ou em aspectos particulares a explicação para as demandas.

É a historicidade dos fatos apresentados como demanda que deve ser investigada.

Devem-se buscar conjuntamente as ações, os acontecimentos, as concepções que produziram a demanda e motivaram o seu encaminhamento. Muda-se a pergunta! A pergunta "por quê?" imobiliza, paralisa o processo no primeiro motivo. Deve-se perguntar sobre as condições, sobre as circunstâncias, para levantar todos os determinantes; as circunstâncias delimitam a história e a movem na direção das ações necessárias.

A avaliação tem caráter investigativo, e não classificatório. Ela faz o resgate histórico das condições concretas que levaram à existência da demanda.

O desafio da intervenção é identificar as possibilidades concretamente existentes para a superação das condições que levaram à existência da demanda.

O psicólogo deve transformar em avaliação/intervenção o que os indivíduos envolvidos gostam/sabem/querem/precisam fazer. Não deve exigir que as pessoasfaçam aquilo que ele (psicólogo) determina a priori , em função do que já sabe.

Com as crianças, o psicólogo observa nas atividades quais aspectos estão relacionados com a investigação e que elementos revelam o potencial de aprendizagem quando colocadas diante de situações-problema, de desafios.

Com as famílias/escolas, o psicólogo investiga as concepções/hipóteses sobre a demanda: o que fazem para superá-las e as expectativas; avalia e mobiliza os significados, as objetivações, os sentidos atribuídos ou a serem atribuídos.

Os professores apropriam-se do saber psicológico que hegemonicamente está presente em sua formação e na formação do psicólogo para compreender como é que, historicamente, esse saber foi sendo organizado para justificar o status quo da Psicologia e da Educação, por meio da ênfase em aspectos particulares dos indivíduos, das famílias ou do meio social, os quais admitem a pergunta "por quê?" e apontam para a ausência de compromisso da Psicologia com a condição multideterminada das circunstâncias nas quais os indivíduos se humanizam.

Também é fundamental no trabalho com o professor o acesso a fundamentos teórico-metodológicos que orientem um novo modo de pensar os processos de aprendizagem e de escolarização, tendo como consequência a possibilidade de concretizar novas condições de ensino (a culpabilização de indivíduos ou situações isoladas paralisa, não transforma o processo de ensinar e de aprender). O professor precisa compreender esses processos para reorientar suas estratégias.

Enfim, é preciso trabalhar com a apropriação de conhecimentos necessários à delimitação do lugar do educador como mediador entre os conteúdos escolares e o processo de aprendizagem dos alunos, à explicitação da condição de liberdade/autonomia do professor e do aluno, à seleção de conteúdos e métodos e à compreensão da relação entre desenvolvimento e aprendizagem.

Em destaque, vejamos como algumas dessas questões teóricas da Psicologia e da Educação se expressam na prática concreta da escola.

-- No que tange à lógica dialética do Materialismo Histórico, o compromisso atribuído à psicologia de explicar aquilo que o homem é e aquilo em que ele pode vir a se constituir mediado pela educação escolar faz entender a urgência de aliar a competência técnico-pedagógica e o compromisso político com a transformação da realidade.

-- A compreensão da diferença entre a visão empírica e a visão concreta do aluno, acompanhada da constatação de que o aprendizado não é imediato depende da constituição das funções psicológicas superiores e da transformação de suas estruturas para ocorrer, como também de ações que respondam tanto às necessidades do aluno e do professor quanto dessas necessidades aliadas à formação da consciência para garantir os motivos compatíveis com a apropriação do saber que eleva a condição humana de ambos.

-- Trazida para a atividade do psicólogo e do professor, a relação entre o singular, o particular e o universal no contexto do Materialismo Histórico-Dialético e da Psicologia Histórico-Cultural faz superar a mera reflexão sobre os procedimentos e a prática imediata, ou um posicionamento meramente político diante da realidade (o que tem caracterizado muitas formas tradicionais de ação) e leva à apropriação de um determinado conhecimento como mediador entre a ação de professores, psicólogos e demais participantes do trabalho (suas finalidades enquanto profissionais) e o modo de pensar sobre essa ação (suas finalidades enquanto indivíduos), e assim permite transformar o conteúdo e a forma de pensar sobre a realidade da psicologia e da educação.

É importante lembrar que a alienação ainda é a forma particular por meio da qual ocorre o nosso processo de humanização, e que, por isso mesmo, nossas ações não podem ser entendidas como o fim, mas como uma parte do processo de intervenção. É preciso saber que a qualquer momento o trabalho pode ser interrompido. Neste caso, é preciso considerar a realidade alienada e as possibilidades de criação de uma nova realidade, para superarmos os modelos teórico-práticos tradicionais ainda presentes na atuação/formação do psicólogo e do professor.

Não se trata da defesa de qualquer teoria e nem de qualquer método. A realidade atual exige que o conhecimento sobre o homem considere as dimensões das quais esse saber é expressão (desde a filosofia, até a ciência em geral e suas especificidades). Sem atentar para essas dimensões do conhecimento, justificamos a realidade.

No espaço da Psicologia na Educação, que na sua especificidade temos chamado de Psicologia Escolar, o compromisso ético-político aqui assumido põe uma finalidade comum à atividade de educadores e psicólogos: a de favorecer os processos de humanização e a apropriação da capacidade do pensamento crítico, pela via da educação da consciência do psicólogo (dimensão educativa de sua formação) e da consciência do professor/educador (dimensão psicológica de sua formação).

Poderíamos, então, concluir que o que se constitui como objeto da Filosofia e suas finalidades (o "porquê" e o "para quê" do processo de humanização dos indivíduos, as possibilidades concretamente existentes de constituição da condição universal nos indivíduos singulares como a marca do processo de humanização); e da Psicologia, a explicação de como a aprendizagem e o desenvolvimento permitem aos indivíduos, por meio da atividade educativa, tomar o controle consciente da realidade;

É uma condição para que a educação escolar possa dar conta de seu objeto a efetivação do ensino/aprendizagem, por meio de recursos pedagógicos concretamente organizados pelo professor.

Destarte, as dimensões educativa e psicológica devem estar presentes na formação do professor e do psicólogo, pois ambas estão presentes no processo de humanização. A Psicologia Escolar não pode ser uma especialidade do psicólogo. Na perspectiva do Materialismo Histórico-Dialético e da Psicologia Histórico-Cultural, a Psicologia Escolar precisa ser transformada em dimensão educativa da Psicologia.

Para terminar, proponho a Psicologia Escolar como a dimensão educativa da Psicologia e o método materialista histórico-dialético como a garantia de que a emancipação de alunos, de professores e do próprio psicólogo, nas circunstâncias atuais, é a dimensão ético-política entendida como finalidade expressa da Psicologia Histórico-Cultural. Trazida para a atividade do psicólogo e assumida como conhecimento da Psicologia, a perspectiva materialista histórico-dialética transforma o conteúdo e a forma de pensar sobre a realidade da Psicologia e da Educação, no sentido da constituição da atividade consciente de todos os participantes desse processo. Defendo, então, que a humanização seja o compromisso ético-político da Psicologia e da Educação.

Notas

Recebido em: 20/02/2014

Aprovado em: 30/03/2014

Sobre a autora

Elenita de Ricio Tanamachi (tanamachi@uol.com.br)

Atuou como docente do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho - campus de Bauru. Doutorado em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1997).

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    Transcrição da conferência de encerramento do XI Congresso Nacional de Psicologia Escolar e Educacional, ocorrido em agosto de 2013, em Uberlândia, MG.
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    As ideias aqui apresentadas são de autoria dos textos citados nas referências bibliográficas.
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    O conteúdo apresentado nos itens assim assinalados encontra-se no texto "Teoria, método e pesquisa na psicologia histórico-cultural", citado nas referências bibliográficas.
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    O conteúdo apresentado nessa parte da conferência encontra-se nos textos "A mediação da psicologia histórico-cultural na atividade de professores e do psicólogo" e "A atuação do psicólogo como expressão do pensamento crítico em psicologia e educação", ambos citados nas referências bibliográficas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Maio 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014
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