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Teoria da mente e leitura: estudo qualitativo na educação infantil

Theory of mind and reading: qualitative study in early childhood education

Teoría de la mente y lectura: estudio cualitativo en la educación infantil

Resumo

Tendo em vista as interfaces entre teoria da mente e linguagem e os benefícios da leitura mediada para o desenvolvimento sociocognitivo infantil, apresenta-se a vertente qualitativa de um estudo mais amplo sobre teoria da mente, que, de forma complementar, investigou as experiências vivenciadas por pré-escolares em relação à atividade leitora no contexto familiar e escolar. Participaram da pesquisa 178 crianças e 17 docentes de escolas públicas e privadas de educação infantil. As crianças responderam a um questionário que buscou avaliar o contexto familiar das atividades diárias de leitura; já as professoras foram entrevistadas para avaliar as concepções e práticas sobre as atividades leitoras em sala de aula, sendo os relatos submetidos à análise de conteúdo. Os resultados indicam que os contextos de leitura tanto familiar quanto escolar são potencialmente favoráveis ao desenvolvimento sociocognitivo e tendem a contribuir para o aprimoramento da compreensão infantil dos estados mentais.

Palavras chave:
Filosofia da mente; leitura; pré-escolares.

Abstract

Considering the interfaces between theory of mind and language and the benefits of mediated reading for children’s sociocognitive development, the qualitative aspect of a broader study of mind theory is presented, which, in a complementary way, investigated the experiences experienced by preschool children in relation to the reading activity in the family and school context. The participants were 178 children and 17 teachers from public and private early childhood schools. The children answered a questionnaire that sought to evaluate the family context of the daily reading activities and the teachers were interviewed to evaluate the conceptions and practices about the reading activities in the classroom, and the reports were submitted to content analysis. The results indicate that both the family reading context and the school context are potentially favorable contexts for sociocognitive development and tend to contribute to the improvement of children’s understanding of mental states.

Keywords:
Philosophy of mind; reading; Preschool children.

Resumen

Teniendo en vista las interfaces entre teoría de la mente y lenguaje y los beneficios de la lectura mediada para el desarrollo socio-cognitivo infantil, se presenta la vertiente cualitativa de un estudio más amplio sobre teoría de la mente que, de forma complementar, se investigó las experiencias vivenciadas por pre-escolares en relación a la actividad lectora en el contexto familiar y escolar. Participaron 178 niños y 17 docentes de escuelas públicas y privadas de educación infantil. Los niños contestaron un cuestionario que buscó evaluar el contexto familiar de las actividades diarias de lectura y las profesoras se entrevistaron para evaluar las concepciones y prácticas sobre las actividades lectoras en sala de clase, los relatos se sometieron al análisis de contenido. Los resultados indican que tanto el contexto familiar de lectura como el alumno constituyen contextos potencialmente favorables al desarrollo socio-cognitivo y tienden a contribuir para la mejora de la comprensión infantil de los estados mentales.

Palabras clave:
Filosofía de la mente; lectura; pre-escolares.

Introdução

A teoria da mente é uma capacidade sociocognitiva que emerge nos anos pré-escolares e que possibilita a compreensão dos estados mentais (sentimentos, desejos, crenças, pensamentos e intenções), bem como a predição do comportamento próprio e alheio (Rodrigues & Pires, 2010Rodrigues, M. C.; Pires, L. G. (2010).Teoria da mente: Linguagem e contextos de desenvolvimento infantil. Em: M. C., Rodrigues; T. M., Sperb (Orgs.), Contextos de desenvolvimento da linguagem (pp. 103-135). São Paulo: Vetor.). Diante da sua importância para a trajetória evolutiva e no que tange mais especificamente à sua avaliação, emerge um interesse inicial em investigar se as crianças brasileiras apresentam a mesma sequência de desenvolvimento proposta neste domínio por Wellman e Liu (2004Wellman,H. M.; Liu, D. (2004). Scaling of Theory of Mind Tasks. Child Development, 75(2), 523-541.). Os referidos autores foram os responsáveis por categorizar as tarefas de teoria da mente, visando agrupá-las e organizá-las em um nível crescente de dificuldade em um instrumento único que, ao final, ficou composto por sete tarefas sociocognitivas, a saber: 1) desejos diferentes, tarefa que avalia a capacidade da criança de compreender que duas pessoas (a criança e a outra pessoa) podem possuir desejos diferentes dos seus sobre os mesmos objetos; 2) crenças diferentes, que verifica se a criança é capaz de perceber que duas pessoas (ela e a outra pessoa) podem ter crenças diferentes sobre o mesmo objeto; 3) acesso ao conhecimento, que testa se a criança consegue prever ações de uma pessoa que não teve acesso a conhecimentos que ela própria teve em determinada situação; 4) crença falsa de conteúdo, que testa a criança com relação à crença falsa de uma terceira pessoa a respeito do conteúdo de um recipiente (a criança teve acesso ao conteúdo e a outra pessoa não); 5) crença falsa explícita, que avalia a capacidade da criança de perceber que outra pessoa pode ter uma crença equivocada em relação a uma situação; 6) crença e emoção, que verifica como a criança se sente diante de uma crença equivocada; 7) emoção real e aparente, que avalia a capacidade infantil de entender que uma pessoa pode sentir uma emoção, mas demonstrar sentir outra.

A pesquisa mais ampla da qual este estudo é parte integrante objetivou investigar o desenvolvimento da teoria da mente em crianças brasileiras. Aplicou-se a escala de teoria da mente em 178 crianças, com idade entre 4 e 5 anos, de escolas públicas e privadas de uma cidade da zona da mata mineira (Rodrigues, Pelisson, Silveira, Ribeiro, & Silva, 2015Rodrigues, M. C.; Pelisson, M. C. C.; Silveira, F. F.; Ribeiro, N. N.; Silva, R. L. M. (2015). Avaliação da teoria da mente: estudo com alunos de escolas públicas e particulares mineiras. Estudos de Psicologia de Campinas,32(2), 213-221.). Quanto aos resultados, destaca-se que não foram encontradas diferenças quanto ao sexo, corroborando a literatura já existente sobre o assunto.

No entanto, houve diferenças significativas quanto às redes de ensino: as crianças oriundas de escolas privadas apresentaram maiores pontuações, sugerindo um desenvolvimento da teoria da mente mais aprimorado. Houve também diferenças quanto à idade: as crianças de 5 anos obtiveram um desempenho superior na escala de teoria da mente, encontrando-se de acordo com a literatura da área, que defende um desenvolvimento gradual dessa capacidade sociocognitiva.

Os resultados, corroborados por Jou (2013Jou, G. I. (2013). Narrativas Infantis e Teoria da Mente. ComCiência, 154, 1-6.) e Kidd e Castano (2013Kidd, D. C.; Castano, E. (2013). Reading Literary Fiction Improves Theory of Mind. Sciencexpress, 342(6156), 377-380.), indicam que fatores culturais podem influenciar o desempenho sociocognitivo infantil. Rodrigues e Pires (2010Rodrigues, M. C.; Pires, L. G. (2010).Teoria da mente: Linguagem e contextos de desenvolvimento infantil. Em: M. C., Rodrigues; T. M., Sperb (Orgs.), Contextos de desenvolvimento da linguagem (pp. 103-135). São Paulo: Vetor.) salientam que há um consenso quanto ao papel relevante da linguagem e das diferentes experiências vivenciadas nos contextos de desenvolvimento, como a família e a escola, inserindo-se, entre elas, as práticas relacionadas à leitura de livros de histórias infantis (Ribeiro, Batista, & Rodrigues, 2014Ribeiro, N. N.; Batista, T. C.; Rodrigues, M. C. (2014). Teoria da mente: possíveis implicações educacionais. Psicologia Argumento, 32(78), 127-135.), práticas focalizadas no presente estudo qualitativo.

A linguagem desempenha, portanto, um papel central para a compreensão dos estados mentais, pois, por meio dela, a criança participa de conversações, jogos de faz de conta, leitura de histórias e outras atividades que tendem a beneficiar sua capacidade de vincular ações manifestas e comportamentos com estados mentais (Grazzani & Ornaghi, 2012Grazzani, I.; Ornaghi, V. (2012). How do use and comprehension of mental-state language relate to theory of mind in middle childhood? Cognitive Development , 27(2), 99-111.; Nelson, 2005Nelson, K. (2005). Language pathways into the community of minds. Em: J. W.Astington; J. A., Baird (Orgs.), Why language matters for theory of mind (pp. 26-49). Oxford: Oxford University Press.; Souza, 2009Souza, A. S. F. (2009).Teoria da mente e desenvolvimento infantil: Um procedimento de intervenção com crianças no interior da Bahia. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo - SP.). Um aspecto da relação entre linguagem e teoria da mente é o uso de termos utilizados para fazer referência aos estados mentais próprios e alheios, tais como pensar, desejar, querer, triste, identificados por Astington e Pelletier (2000Astington, J. W.; Pelletier, J. (2000). A linguagem da mente: seu papel no ensino e na aprendizagem. Em: D. R., Olson; N., Torrance (Orgs.), Educação e desenvolvimento humano (p. 489-510). Porto Alegre: Artmed.) como termos mentais.

O uso desses termos mentais tem sido considerado um indicador chave da presença da teoria da mente (Grazzani & Ornaghi, 2012Grazzani, I.; Ornaghi, V. (2012). How do use and comprehension of mental-state language relate to theory of mind in middle childhood? Cognitive Development , 27(2), 99-111.) e a via de acesso dessa capacidade sociocognitiva (Souza, 2009Souza, A. S. F. (2009).Teoria da mente e desenvolvimento infantil: Um procedimento de intervenção com crianças no interior da Bahia. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo - SP.). Diante disso, como salientam Kidd e Castano (2013Kidd, D. C.; Castano, E. (2013). Reading Literary Fiction Improves Theory of Mind. Sciencexpress, 342(6156), 377-380.), a escola exerce um papel fundamental à medida que fornece um espaço no qual a criança pode desenvolver e aprimorar a linguagem e a teoria da mente por meio de atividades conduzidas pela mediação do professor (Astington & Pelletier, 2000Astington, J. W.; Pelletier, J. (2000). A linguagem da mente: seu papel no ensino e na aprendizagem. Em: D. R., Olson; N., Torrance (Orgs.), Educação e desenvolvimento humano (p. 489-510). Porto Alegre: Artmed.). Nessa direção, a leitura de histórias pode constituir fonte potencial de promoção do desenvolvimento sociocognitivo, sobretudo quando conduzida de forma interativa e dialogada.

A leitura mediada - ou seja, a leitura na qual o leitor estimula a participação da criança por meio de técnicas evocativas e interações frequentes, incentivando sua produção (Ferraz, 2008Ferraz, M. M. P. (2008). Leitura mediada na biblioteca escolar: uma experiência em escola pública. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo-SP.) - constitui uma modalidade de leitura oportuna para estimular o desenvolvimento infantil em vários aspectos, entre eles o sociocognitivo. Nesse domínio específico, a leitura mediada, por fomentar conversações reflexivas sobre o estado mental dos personagens, tende a beneficiar o aprimoramento da linguagem referente a estados mentais e o desenvolvimento da teoria da mente (Ribeiro & cols., 2014Ribeiro, N. N.; Batista, T. C.; Rodrigues, M. C. (2014). Teoria da mente: possíveis implicações educacionais. Psicologia Argumento, 32(78), 127-135.). Nessa perspectiva, outros estudos (Adrian, Clemente, & Villanueva, 2007Adrian, J. E.; Clemente, R. A.; Villanueva, L. (2007). Mothers' Use of Cognitive State Verbs in Picture-Book Reading and the Development of Children's Understanding of Mind: A Longitudinal Study. Child Development, 78(4), 1052-1067. ; Mar, Tackett, & Moore, 2010Mar, R. A.; Tackett, J. L.; Moore, C. (2010). Exposure to media and theory-of-mind development in preschoolers.Cognitive Development , 25(1), 69-78.) têm enfatizado a importância do uso dos livros de histórias infantis em contextos de desenvolvimento variados, como a escola e a família.

Ribeiro e cols. (2014Ribeiro, N. N.; Batista, T. C.; Rodrigues, M. C. (2014). Teoria da mente: possíveis implicações educacionais. Psicologia Argumento, 32(78), 127-135.) destacam que a leitura mediada possibilita às crianças compartilharem suas vivências, tendo a possibilidade de se colocarem no lugar do outro, compreendendo emoções e pensamentos por meio da trama narrativa das histórias. Symons, Peterson, Slaughter, Roche, e Doyle (2005Symons, D. K.; Peterson, C. C.; Slaughter, V.; Roche, J.; Doyle, E. (2005). Theory of mind and mental state discourse during book reading and story-telling tasks. British Journal of Developmental Psychology, 23, 81-102.) afirmam que esse tipo de leitura possibilita a elaboração de perguntas, a descrição das imagens contidas nas narrativas, além de proporcionar ao adulto a oportunidade de parafrasear o que está acontecendo nas histórias. O professor, como salientam Ribeiro e cols. (2014)Ribeiro, N. N.; Batista, T. C.; Rodrigues, M. C. (2014). Teoria da mente: possíveis implicações educacionais. Psicologia Argumento, 32(78), 127-135., assume papel de relevância, pois ao desenvolver atividades no contexto da educação infantil - como as brincadeiras de faz de conta e as reflexões sobre atitudes dos personagens durante a leitura interativa das histórias, por exemplo - pode, de forma lúdica, explorar um vocabulário rico em termos mentais e,por meio dessa interface com a linguagem, favorecer o desenvolvimento da teoria da mente.

A literatura vem indicando que a leitura explorada com intencionalidade sociocognitiva relaciona-se positivamente com o aprimoramento da compreensão dos estados mentais. Symons e cols. (2005Symons, D. K.; Peterson, C. C.; Slaughter, V.; Roche, J.; Doyle, E. (2005). Theory of mind and mental state discourse during book reading and story-telling tasks. British Journal of Developmental Psychology, 23, 81-102.), por exemplo, examinaram as interações entre pais e filhos durante a leitura mediada de um livro infantil por meio de três estudos. O primeiro deles verificou a relação entre a atribuição de termos mentais durante a leitura de 51 díades pai-criança e o desempenho em tarefas de crença falsa. No segundo estudo, analisaram-se as narrativas e aplicaram-se as tarefas em um grupo de crianças (n=29) que participaram do primeiro estudo. No terceiro, avaliou-se 20 crianças (de 4 e 5 anos) que ainda não haviam participado das intervenções anteriores quanto à teoria da mente e à linguagem. Os resultados indicaram que o discurso intencionalmente voltado para os estados mentais utilizado pelos pais durante a leitura mediada correlacionou-se positivamente com o desenvolvimento da teoria da mente nas crianças.

Adrian e cols. (2007Adrian, J. E.; Clemente, R. A.; Villanueva, L. (2007). Mothers' Use of Cognitive State Verbs in Picture-Book Reading and the Development of Children's Understanding of Mind: A Longitudinal Study. Child Development, 78(4), 1052-1067. ), por sua vez, realizaram um estudo longitudinal com 41 díades mãe-criança (crianças com idades entre 3 e 5 anos) para avaliar se a linguagem precoce focalizada pelos pais nos termos mentais correlacionava-se com o desenvolvimento da teoria da mente infantil. Em um primeiro momento, as mães foram avaliadas em relação à atribuição de termos mentais durante a leitura de histórias para seus filhos, e as crianças foram avaliadas em relação à teoria da mente, por meio de tarefas diferenciadas de crença falsa. Após um ano, 37 das 41 díades mãe-criança foram novamente avaliadas, sendo encontrada uma correlação positiva entre o uso materno precoce de verbos cognitivos na leitura de livros (narrativas por imagem) e a compreensão sobre os estados mentais. Esse resultado reforça a premissa de que as competências linguística e sociocognitiva da criança podem ser refinadas durante atividades de leitura conduzidas de forma mediada por um adulto.

Quanto à intervenção, alguns estudos (Dias, 2012Dias, J. P. (2012). Literatura e desenvolvimento sociocognitivo: avaliação e implementação de um programa na educação infantil. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo- SP.; Oliveira e cols., 2012Oliveira, S. E. S. D.; Pereira, P. H. D. S.; Oliveira, M. C. R. D.; Teixeira, A. F.; Natale, L. L.; Aquino, M. G. D. (2012). Desenvolvimento sociocognitivo da teoria da mente: estudos interventivos com crianças de 3 e 4 anos. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, 8(1), 19-30. ; Ribeiro, 2012Ribeiro, N. N (2012). Atribuição de estados mentais e consciência metatextual: efeitos de uma pesquisa-intervenção com a literatura infantil. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora - MG.; Rodrigues, Ribeiro, & Cunha, 2012Rodrigues, M. C.; Ribeiro, N. N.; Cunha, P. C. (2012). Leitura mediada com enfoque sóciocognitivo: avaliação de uma pesquisa- intervenção. Paidéia, 22(53), 393-402.), os quais lançaram mão da leitura mediada, vêm apresentando resultados bastante favoráveis à utilização dos livros de histórias infantis com enfoque sociocognitivo. Dias (2012)Cantarelli, A. P.; Cardoso, E. O.; Simioni, R. (2006). Literatura Infantil: Instrumento Educacional. 12ª Jornada Nacional de Educação e 2º Congresso Internacional em Educação: Educação e Sociedade: Perspectivas educacionais do século XXI. Santa Maria, RS: UNIFRA, por exemplo, implementou e avaliou um programa de leitura de livros de histórias infantis com 45 crianças em fase pré-escolar, divididas entre grupo experimental e grupo controle,utilizando instrumentos pertencentes às áreas das habilidades sociais e do desempenho sociocognitivo. Os resultados comparativos indicaram efeitos positivos da intervenção: as crianças do grupo experimental ampliaram suas habilidades sociais e sociocognitivas e seus comportamentos pró-sociais, sendo constatada, concomitantemente, uma redução dos problemas de relacionamento e de hiperatividade.

Esse resultado reforça, uma vez mais, a viabilidade do livro de história infantil como recurso sociocognitivo promissor. Como ressaltam Kidd e Castano (2013Kidd, D. C.; Castano, E. (2013). Reading Literary Fiction Improves Theory of Mind. Sciencexpress, 342(6156), 377-380.), esse tipo de recurso possibilita o desenvolvimento da linguagem, da empatia e da teoria da mente. Contribui,também, para a compreensão da atitude alheia e para o reconhecimento de suas similaridades com os outros, além de deixar explícitas as normas e os valores da sociedade, permitindo que as crianças naveguem com sucesso pelas relações sociais mais complexas.

Já o programa sociocognitivo implementado por Rodrigues e cols. (2012Rodrigues, M. C.; Ribeiro, N. N.; Cunha, P. C. (2012). Leitura mediada com enfoque sóciocognitivo: avaliação de uma pesquisa- intervenção. Paidéia, 22(53), 393-402.) envolveu a participação de cinco docentes e 57 alunos, com média de 6 anos de idade, de uma escola pública federal mineira. Esse programa teve como objetivo diversificar a prática docente de contar histórias, por meio de uma capacitação prévia, e promover, de forma indireta, a compreensão sociocognitiva infantil. A intervenção consistiu na leitura mediada, realizada pelas docentes em sala de aula, de 38 livros de histórias, durante um ano letivo. Evidenciou-se um efeito sociocognitivo favorável quanto ao uso de termos mentais infantis, obtendo-se frequência mais elevada destes termos e maior diversificação e sofisticação quanto à atribuição de estados mentais após o término do programa. Do ponto de vista da formação continuada, o estudo destaca um aspecto de relevância: a necessidade de capacitação prévia dos docentes, a fim de redimensionara atividade de contar histórias.

Oliveira e cols. (2012Oliveira, S. E. S. D.; Pereira, P. H. D. S.; Oliveira, M. C. R. D.; Teixeira, A. F.; Natale, L. L.; Aquino, M. G. D. (2012). Desenvolvimento sociocognitivo da teoria da mente: estudos interventivos com crianças de 3 e 4 anos. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, 8(1), 19-30. ), no entanto, realizaram uma análise da eficácia de procedimentos interventivos voltados para a aquisição de verbos mentais e para a prática de atribuição de estados mentais sobre o desenvolvimento da teoria da mente em crianças de 3 e 4 anos de idade. Estas foram distribuídas em três estudos: o primeiro avaliou a adequação das intervenções pretendidas; o segundo considerou o efeito dessas intervenções; e o terceiro focalizou a eficácia do treino de três adultos como aplicadores dos procedimentos avaliativos e interventivos.

Do segundo estudo, mais especificamente, participaram 44 crianças, as quais foram prévia e posteriormente avaliadas por meio da utilização de tarefas de crença falsa na intervenção, em atividades com jogo e em histórias infantis. Os resultados indicaram que as intervenções baseadas na atividade lúdica e na conversação envolvendo, por exemplo, a mediação dos verbos “pensar” e “saber” podem beneficiar o desenvolvimento da teoria da mente. As crianças do grupo experimental apresentaram um desempenho significativamente melhor do que as crianças do grupo controle, indicando efeito positivo pós-intervenção no desenvolvimento da teoria da mente em crianças pequenas.

Como dito anteriormente, esta pesquisa é parte integrante de estudo mais amplo que avaliou a teoria da mente em pré-escolares (Rodrigues & cols., 2015Rodrigues, M. C.; Pelisson, M. C. C.; Silveira, F. F.; Ribeiro, N. N.; Silva, R. L. M. (2015). Avaliação da teoria da mente: estudo com alunos de escolas públicas e particulares mineiras. Estudos de Psicologia de Campinas,32(2), 213-221.). Objetivou-se aqui, como complemento para esse estudo mais amplo, investigar o contexto das experiências vivenciadas pelos participantes em relação à leitura mediada de livros infantis, realizadas no âmbito familiar e escolar. Foi utilizada uma abordagem qualitativa, que considerou as relações entre a linguagem, a teoria da mente e a perspectiva aplicada da leitura de livros infantis.

Método

Participantes

Participaram do estudo, ao todo, 178 crianças, sendo 91delas provenientes de escolas públicas (44 meninos e 47 meninas) e 87, de escolas privadas (41meninos e 46meninas), todos alunos do 1º ou do 2º período da educação infantil, com idade média de 4 anos e cinco meses e 5 anos e quatro meses, respectivamente. Participaram, também, 17 professoras dessas crianças, sendo 9 de escolas públicas e 8 de escolas privadas de uma cidade da zona da mata mineira.

Instrumentos e materiais

Foram elaborados e aplicados diferentes questionários e roteiros de entrevista. As docentes responderam a um questionário que buscava coletar dados referentes à idade, ao grau de escolaridade, ao tipo de instituição em que trabalha e aos anos de experiência com a educação infantil. Responderam, também, a um roteiro de entrevista semi-estruturado para investigar as concepções e práticas sobre a atividade docente de contar histórias e sobre a leitura de livros infantis, composto por 13 perguntas subdivididas em duas temáticas (“Concepções e práticas relacionadas à atividade de contar histórias” e “Desenvolvimento da atividade de leitura dos livros infantis”).

Junto às crianças, aplicou-se um questionário semi-aberto, também elaborado pelas autoras desta pesquisa, intitulado “Sondagem do contexto familiar com a leitura interativa”. Instrumento misto, composto por dez perguntas fechadas e cinco abertas, este questionário estava dirigido a investigar a motivação e o grau das experiências familiares vivenciadas pelas crianças em relação à leitura e à atividade de contar histórias. Considerando as especificidades da faixa etária dos participantes, o questionário foi respondido oralmente.

Procedimentos

Após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e a elaboração do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), foram agendadas reuniões com as professoras de ambas as redes de ensino para explicar os objetivos e a importância da pesquisa, para receber seus TCLEs, para agendar as entrevistas e marcar a coleta dos dados de seus alunos.

Com as crianças, inicialmente estabeleceu-se uma boa interação. Foram explicados os procedimentos da coleta de dados, de modo a obter o consentimento livre e esclarecido de forma oral. As coletas de dados das docentes e das crianças foram realizadas individualmente, na própria instituição escolar, durante horários previamente agendados.

Análise dos dados

Os dados obtidos por meio das entrevistas com as docentes e das perguntas abertas dos questionários aplicados às crianças foram avaliados por meio da análise de conteúdo temática e frequencial. Primeiramente, realizou-se análise vertical, com delimitação dos fragmentos significativos dos relatos dos participantes e uma categorização preliminar destes relatos; em seguida, foi realizada a análise horizontal destes fragmentos, aglutinando-se as categorias e delimitando-se os indicadores de frequências e porcentagens das categorias globais e específicas (Bardin, 2011Bardin, L. (2011).Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70.). Para as perguntas fechadas, computou-se a frequência mediante a ocorrência de respostas dos participantes considerando as opções de respostas.

Considerações éticas

Esta pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética em pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora em 19 de Maio de 2011 (Protocolo nº. 2342.82.2011).

Resultados e discussão

Apresentam-se inicialmente os resultados obtidos no questionário “Sondagem do contexto familiar com a leitura interativa”, aplicado às crianças, e, em seguida, aqueles correspondentes às entrevistas realizadas com as professoras. A Tabela 1 apresenta as frequências das respostas dadas pelas crianças de ambas as escolas, divididas entre os dois grupos de idades, ao questionário citado.

Tabela 1
Porcentagem de respostas infantis ao questionário de sondagem do contexto familiar

Conforme demonstra a tabela, a maioria expressiva das crianças (95% das de 4 anos e 90% das de 5 anos) possui livros infantis em casa.Os livros, na maioria das vezes, são presentes dados por familiares que têm o hábito de realizar a leitura interativa com a criança (90% entre as de 4 anos e 78% entre as de 5 anos), geralmente no período da noite. Esses achados afinam-se com aqueles obtidos por Phillips e Lonigan (2009Phillips, B. M.; Lonigan, C. J. (2009). Variations in the home literacy environment of preschool children: A cluster analytic approach. Scientific Studies of Reading, 13(2), 146-174.), os quais identificaram que as crianças estadunidenses também possuem muitos livros de história em casa e que seus pais têm o hábito de ler esses livros para elas.

A forma de leitura também variou entre direta (56% das crianças de 4 anos e 44% daquelas de 5 anos) e interativa (32% das de 4 anos e 40% das de 5 anos), verificando-se ainda que 80% dos pais das crianças mais novas e 70% dos pais das mais velhas realizam algum tipo de interação dialogada com as crianças sobre o conteúdo dos livros. Além disso, a maioria expressiva das crianças (88% das de 4 anos e 84% das de 5 anos) diz gostar quando alguém da família realiza a leitura desses livros para elas, pois segundo relataram, gostam de ver o livrinho e de ler.

Silva (2009Silva, V. R. S. D. (2009). Um estudo com crianças de 3ª série do ensino fundamental sobre compreensão de histórias infantis, procedimentos de leitura e nível de satisfação: uma interface psicolinguística e literatura. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - RS.) também evidenciou que as crianças gostam de ler histórias infantis, sentem prazer com a atividade de leitura, além de preferirem que a história seja narrada por outra pessoa. O conjunto de resultados obtidos por Symons e cols. (2005Symons, D. K.; Peterson, C. C.; Slaughter, V.; Roche, J.; Doyle, E. (2005). Theory of mind and mental state discourse during book reading and story-telling tasks. British Journal of Developmental Psychology, 23, 81-102.) e Adrian e cols. (2007Adrian, J. E.; Clemente, R. A.; Villanueva, L. (2007). Mothers' Use of Cognitive State Verbs in Picture-Book Reading and the Development of Children's Understanding of Mind: A Longitudinal Study. Child Development, 78(4), 1052-1067. ) reforçam, nesse sentido, a importância dos familiares que, ao assumirem o papel de leitores ativos em casa, assumem, também, uma postura mediadora entre o conhecimento transmitido pela criança e a associação que ela faz entre essa informação e a realidade, facilitando, assim, sua compreensão sobre o mundo social.

A maioria das crianças de ambas as idades (80% de 4 anos e 70% de 5 anos) alegou que os pais mostram as ilustrações dos livros e conversam sobre as imagens. Em parte, esse resultado vai ao encontro da pesquisa de Ziv, Samdja e Aram (2013Ziv, M.; Smadja, M. L.; Aram, D. (2013). Mothers’ mental-state discourse with preschoolers during storybook reading and wordless storybook telling. Early Childhood Research Quarterly , 28(1), 177-186.), os quais perceberam que as mães de crianças entre 4 a 6 anos fazem referência aos termos mentais quando leem livros de histórias para seus filhos; contudo, dando realce também à importância das ilustrações, elas evocam ainda mais esses termos quando exploram as figuras contidas no enredo de um livro composto apenas por imagens. Os autores sugerem que as mães sentem-se mais encorajadas a explorar conversações mentalistas quando leem livros sem texto escrito, pois nesse tipo de leitura, tanto a mãe quanto a criança complementam a história narrada.

As crianças informaram que aprendem algo com a leitura, oscilando entre aspectos relacionados à categoria aprendizagem escolar (34% das crianças de 4 anos e 50% das de 5 anos) e aos hábitos cotidianos (29% das de 4 anos e apenas 6% das crianças de 5 anos). Constata-se que a leitura tende a proporcionar aprendizados, sobretudo para as crianças mais velhas. Esse achado, por indicar uma relação com a linguagem, pode também ter contribuído para um melhor resultado nas tarefas de teoria da mente das crianças de 5 anos, conforme apresentam Rodrigues e cols. (2015Rodrigues, M. C.; Pelisson, M. C. C.; Silveira, F. F.; Ribeiro, N. N.; Silva, R. L. M. (2015). Avaliação da teoria da mente: estudo com alunos de escolas públicas e particulares mineiras. Estudos de Psicologia de Campinas,32(2), 213-221.) ao reportarem os resultados da pesquisa mais ampla, visto que a leitura mediada de histórias tende a favorecer o desenvolvimento da teoria da mente, como prevê a literatura disponível a respeito do tema (Adrian & cols., 2007Adrian, J. E.; Clemente, R. A.; Villanueva, L. (2007). Mothers' Use of Cognitive State Verbs in Picture-Book Reading and the Development of Children's Understanding of Mind: A Longitudinal Study. Child Development, 78(4), 1052-1067. ; Ribeiro, 2012Ribeiro, N. N (2012). Atribuição de estados mentais e consciência metatextual: efeitos de uma pesquisa-intervenção com a literatura infantil. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora - MG.; Ribeiro & cols., 2014Ribeiro, N. N.; Batista, T. C.; Rodrigues, M. C. (2014). Teoria da mente: possíveis implicações educacionais. Psicologia Argumento, 32(78), 127-135.).

Além disso, tais resultados realçam também a importância do papel da família para o desenvolvimento da linguagem, indo ao encontro dos estudos que discutem a importância da leitura mediada entre pais e filhos para o desenvolvimento da teoria da mente (Rodrigues & Pires, 2010Rodrigues, M. C.; Pires, L. G. (2010).Teoria da mente: Linguagem e contextos de desenvolvimento infantil. Em: M. C., Rodrigues; T. M., Sperb (Orgs.), Contextos de desenvolvimento da linguagem (pp. 103-135). São Paulo: Vetor.) e das pesquisas que encontraram evidências da importância dessa relação (Adrian & cols., 2007Adrian, J. E.; Clemente, R. A.; Villanueva, L. (2007). Mothers' Use of Cognitive State Verbs in Picture-Book Reading and the Development of Children's Understanding of Mind: A Longitudinal Study. Child Development, 78(4), 1052-1067. ; Aram, Fine, & Ziv, 2013Ziv, M.; Smadja, M. L.; Aram, D. (2013). Mothers’ mental-state discourse with preschoolers during storybook reading and wordless storybook telling. Early Childhood Research Quarterly , 28(1), 177-186.; Sabbagh & Callanan, 1998Sabbagh, M. A.; Callanan, M. A. (1998). Metarepresentation in action: 3-, 4-, and 5-year-olds' developing theories of mind in parent-child conversations.Developmental Psychology , 34(3), 491.; Symons, 2004Symons, D. K. (2004). Mental state discourse, theory of mind, and the internalization of self-other understanding.Developmental Review , 24(2), 159-188.).

Os resultados referentes às entrevistas realizadas com as docentes, por sua vez, foram analisados e descritos conforme as temáticas delimitadas no roteiro anteriormente detalhado e seguem explicitados nas tabelas 2 e 3, respectivamente.

Tabela 2
Temática A: Concepções e práticas docentes relacionadas à atividade de contar histórias

Conforme evidencia a tabela 2, os resultados das entrevistas realizadas com as professoras revelam que maioria delas (62,5%) desenvolve atividades diárias de leitura na sala de aula, por meio da narrativa tanto por imagem quanto textual. Além disso, foi possível constatar que tanto as escolas públicas quanto as privadas incentivam a prática de leitura por meio de projetos (43,75%) ou da facilidade de acesso das crianças aos livros (18,75%). Tais incentivos, segundo Ribeiro e cols. (2014Ribeiro, N. N.; Batista, T. C.; Rodrigues, M. C. (2014). Teoria da mente: possíveis implicações educacionais. Psicologia Argumento, 32(78), 127-135.), mostram-se relevantes, já que as atividades leitoras devem ser inseridas na rotina escolar para que as crianças se familiarizem com a leitura e a linguagem, incitando o uso de um vocabulário rico em termos mentais, o que tende a contribuir para o aprimoramento de uma linguagem mentalista.

Todas as professoras atribuíram expressiva importância à atividade de contar histórias na educação infantil, uma vez que, na visão das docentes, estimula aspectos predominantemente cognitivos, sociais e relacionados à alfabetização. Tal importância também foi identificada no estudo de Mar e cols. (2010Mar, R. A.; Tackett, J. L.; Moore, C. (2010). Exposure to media and theory-of-mind development in preschoolers.Cognitive Development , 25(1), 69-78.) que, ao avaliarem a influência de histórias infantis no desenvolvimento da teoria da mente em crianças pré-escolares, verificaram que a exposição à literatura infantil contribuiu para a melhoria da competência linguística e beneficiou o desenvolvimento sociocognitivo, uma vez que o conteúdo das histórias possibilitou a aquisição e aprimoramento da linguagem da mente pelas crianças. Esses achados estão de acordo com os resultados apresentados por Dias (2012Dias, J. P. (2012). Literatura e desenvolvimento sociocognitivo: avaliação e implementação de um programa na educação infantil. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo- SP.), que também identificou benefícios de intervenções por meio da leitura mediada com crianças da educação infantil, as quais também apresentaram melhoras em seu desenvolvimento sociocognitivo.

As professoras também opinaram que a leitura pode ser utilizada como um recurso preventivo e promotor da compreensão sobre o mundo social, sendo que 50% das docentes enfatizam a leitura como facilitadora da inserção da criança na sociedade e como promotora de habilidades sociais. Tais opiniões afinam-se com aquelas encontradas por Cantarelli, Cardoso e Simioni (2006Cantarelli, A. P.; Cardoso, E. O.; Simioni, R. (2006). Literatura Infantil: Instrumento Educacional. 12ª Jornada Nacional de Educação e 2º Congresso Internacional em Educação: Educação e Sociedade: Perspectivas educacionais do século XXI. Santa Maria, RS: UNIFRA), que indicam que as docentes utilizam a literatura infantil em sala de aula como um recurso lúdico para trabalhar conflitos emocionais (expressar sentimentos e angústias por meio da identificação dos personagens e organizar suas vivências nos contextos sociais), além de favorecer o desenvolvimento da criatividade. Corroboram ainda o estudo de Rodrigues e cols. (2012Rodrigues, M. C.; Ribeiro, N. N.; Cunha, P. C. (2012). Leitura mediada com enfoque sóciocognitivo: avaliação de uma pesquisa- intervenção. Paidéia, 22(53), 393-402.), em que as docentes também expressam suas expectativas quanto aos benefícios da leitura para o desenvolvimento sociocognitivo do aluno.

Todas as professoras consideram importante a delimitação de um objetivo e a elaboração de um planejamento para a atividade de contar histórias - o que, para 43,75% das docentes, permite atingir metas do projeto pedagógico e adequar os livros ao contexto da sala de aula -; para 37,5% das entrevistadas, a atividade de leitura pode variar de acordo com a demanda dos alunos. Essa visão é reforçada por Ferraz (2008Ferraz, M. M. P. (2008). Leitura mediada na biblioteca escolar: uma experiência em escola pública. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo-SP.),que também enfatiza a necessidade de que tais atividades sejam antecedidas por sistematização e planejamento por parte das docentes, a partir de uma seleção adequada dos livros, dos termos e das expressões que serão trabalhados, assim como a consciência dos aspectos cognitivos envolvidos.

Tabela 3
Temática B: Desenvolvimento docente da atividade de leitura dos livros infantis

Conforme mostra a Tabela 3, todas as docentes atribuem importância à ilustração dos livros, sendo que mais da metade das entrevistadas (56,25%) acredita que as imagens favorecem a compreensão infantil e a fantasia. 50% das docentes conduzem a leitura predominantemente de forma interativa e dialogada e relatam explorar, no decorrer da atividade de leitura, os pensamentos, as emoções, os desejos e os planos dos personagens, conjugando dramatizações (37,5%), modelando a forma de contar e o tom de voz (25%) ou focalizando as atitudes dos personagens (37,5%). No estudo de Ziv, Smadja e Aram (2015Ziv, M.; Smadja, M. L.; Aram, D. (2015). Preschool teachers' reference to theory of mind topics in three storybook contexts: Reading, reconstruction and telling. Teaching and Teacher Education , 45, 14-24.) os autores demonstram que docentes de pré-escolares usam mais termos mentais quando estão familiarizadas com o texto do livro, reconstruindo a história para as crianças por meio de um livro de imagens produzido por eles; e também quando lançam mão do livro de imagem propriamente dito para contar uma história. Os autores destacam, então, a importância do contato prévios com as histórias, para conhecê-las, bem como a fertilidade da narrativa dos livros por imagens, pois afirmam que tais aspectos permitem uma maior conversação entre as docentes e as crianças acerca dos estados mentais.

Na intervenção de capacitação docente realizada por Rodrigues e cols. (2012Rodrigues, M. C.; Ribeiro, N. N.; Cunha, P. C. (2012). Leitura mediada com enfoque sóciocognitivo: avaliação de uma pesquisa- intervenção. Paidéia, 22(53), 393-402.), em que se procurou incentivar a exploração dialogada por parte das professoras, foi possível verificar o quanto a sistematização das práticas possibilitou efeitos positivos para a ampliação da atribuição de termos mentais pelas crianças e para o refinamento quanto às habilidades sociocognitivas. Com base na intervenção conduzida, Oliveira e cols. (2012Oliveira, S. E. S. D.; Pereira, P. H. D. S.; Oliveira, M. C. R. D.; Teixeira, A. F.; Natale, L. L.; Aquino, M. G. D. (2012). Desenvolvimento sociocognitivo da teoria da mente: estudos interventivos com crianças de 3 e 4 anos. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, 8(1), 19-30. ) reforçaram a importância de que o leitor assuma um papel mais ativo, instigando a criança a identificar termos mentais e a relacioná-los aos estados e comportamentos dos personagens. Os autores afirmam que a mediação do adulto pode envolver desde a instigação à imaginação infantil até o suporte para compreender termos desconhecidos, a fim de fazer a adequada correspondência destes às ações dos personagens das histórias. Assim, pode-se considerar que as docentes aqui investigadas refletem, de certa forma, uma intencionalidade sociocognitiva de exploração (foco em ações, metas, pensamentos e emoções dos personagens), fator que tende a beneficiar o desenvolvimento infantil nesse domínio.

Diante desses achados e considerando as relações entre linguagem e desenvolvimento da teoria da mente, é possível afirmar que os contextos de leitura tanto familiar quanto escolar mostraram-se favoráveis ao desenvolvimento sociocognitivo da amostra analisada, uma vez que pais e professores possuem o hábito de ler livros infantis para as crianças com ênfase na leitura dialogada. Ressalta-se, contudo, no que tange ao contexto escolar, que apenas metade das professoras realiza predominantemente a leitura mediada, enquanto no contexto familiar essa prática de leitura ocorre predominantemente com as crianças de 5 anos (40%). Esse resultado qualitativo em relação ao contexto familiar das crianças mais velhas pode ter contribuído para o melhor desempenho dessa amostra de crianças na escala de teoria da mente, conforme evidenciam Rodrigues e cols. (2015Rodrigues, M. C.; Pelisson, M. C. C.; Silveira, F. F.; Ribeiro, N. N.; Silva, R. L. M. (2015). Avaliação da teoria da mente: estudo com alunos de escolas públicas e particulares mineiras. Estudos de Psicologia de Campinas,32(2), 213-221.).

Destaca-se, então, a necessidade de se estimular, por meio de palestras, capacitações e grupos informativos e de sensibilização, a prática da leitura mediada dos livros de histórias infantis nesses dois contextos, uma vez que, pelas relações de interface, podem beneficiar, de maneira interdependente, o desenvolvimento infantil da teoria da mente e da linguagem.

Considerações finais

A vertente qualitativa do estudo mais amplo aqui apresentada realça o consenso existente na literatura de que a exploração intencional e planejada da linguagem referente aos estados mentais pode aprimorar a compreensão infantil desses estados mentais e o desenvolvimento sociocognitivo. O livro de história constitui, portanto, um instrumento valioso para a promoção desse desenvolvimento, uma vez que é possível encontrar quantidade expressiva de termos mentais no conteúdo das histórias, ressaltando, dessa forma, que tanto a família quanto a escola constituem contextos potenciais para a estimulação desse desenvolvimento na infância.

Observa-se, assim, a necessidade de estudos futuros que abordem as relações entre a compreensão infantil da mente, a linguagem voltada para os estados mentais e, de forma aplicada, a ampliação dos estudos nacionais sobre a utilização sociocognitiva dos livros de histórias infantis, a fim de fornecer subsídios práticos para profissionais da área, como professores, pedagogos e psicólogos, além de pais e cuidadores.

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Errata

  • No artigo:
    RODRIGUES, Marisa Cosenza, SILVEIRA, Flávia Fraga da, & PELISSON, Maíze Carla Costa. Teoria da mente e leitura: estudo qualitativo na educação infantil. Psicologia Escolar e Educacional {online}. 2017, vol.21, n.2, pp.195-204. ISSN2175-3539. http://dx.doi.org/10.1590/2175-3539201702121106
    Onde se lê como autora: Flávia Fraga da Silveira
    Leia-se: Flávia Fraga Silveira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2017

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2016
  • Aceito
    15 Dez 2016
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