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A construção de práticas críticas em espaços de formação do/a psicólogo/a escolar

The construction of psychologist ‘s critical practices in educational spaces of the school psychologist

La construcción de prácticas críticas en espacios de formación del/de la psicólogo/a escolar

Resumo

Trata-se de relato de experiência interventiva de uma das frentes do estágio em psicologia da educação do curso de psicologia de uma instituição pública de ensino superior, realizado por duas estagiárias que atuaram junto ao atendimento de crianças encaminhadas com queixa escolar. O objetivo deste relato é contribuir com a socialização de práticas críticas em psicologia escolar frente a difculdades de aprendizagem. O trabalho destaca o processo avaliativo e interventivo realizado, o qual abarca três segmentos envolvidos na superação das difculdades de aprendizagem vivenciadas - a família, a escola e a criança. Conclui-se que esta experiência de intervenção aponta caminhos sólidos para a construção de atuações críticas nos espaços de formação do/a psicólogo/a escolar e educacional. Foi possível promover às estagiárias a vivência de práticas que transcenderam a aparência fragmentada dos fenômenos e buscaram nas relações interpessoais essenciais a via de superação das difculdades de aprendizagem.

Palavras-chave:
Formação do psicólogo; psicologia escolar e educacional; difculdades escolares

Abstract

It is a report of an interventional experience of one of the fronts of the psychology internship in the psychology course of a public institution of higher education, carried out by two trainees who worked with the care of children referred with a school complaint. The objective of this report is to contribute to the socialization of critical practices in school psychology in the face of learning diffculties. The work highlights the evaluation and intervention process carried out, which encompasses three segments involved in overcoming the learning diffculties experienced - the family, the school, and the child. It has concluded that this experience of intervention points out solid paths for the construction of critical actions in the educational spaces of the school and educational psychologist. It was possible to promote to the trainees the experience of practices that transcended the fragmented appearance of the phenomena and sought in the essential interpersonal relations the way of overcoming the diffculties of learning.

Keywords:
Psychologist training; school and educational psychology; school diffculties

Resumen

Se trata de relato de experiencia de intervención de una de las frentes de pasantía en psicología de la educación del curso de psicología de una institución pública de enseñanza universitaria, realizado por dos practicantes que actuaron junto a la atención de niños encaminadas con queja escolar. El objetivo de este relato es contribuir con la socialización de prácticas críticas en psicología escolar frente a difcultades de aprendizaje. El estudio destaca el proceso evaluativo y de intervención realizado, lo cual abarca tres segmentos involucrados en la superación de las difcultades de aprendizaje vivenciadas - la familia, la escuela y el niño. Se concluye que esta experiencia de intervención apunta caminos sólidos para la construcción de actuaciones críticas en los espacios de formación del/de la psicólogo/a escolar y educacional. Fue posible promover a las alumnas practicantes la vivencia de prácticas que trascendieron la apariencia fragmentada de los fenómenos y buscaron en las relaciones interpersonales esenciales la vía de superación de las difcultades de aprendizaje.

Palabras clave:
Formación del psicólogo; psicología escolar y educacional; difcultades escolares.

O modelo clínico de intervenção em psicologia escolar reproduz a tendência da sociedade de classes em fragmentar e singularizar os fenômenos, ocultando suas determinações históricas e sociais (Meira & Tanamachi, 2003Meira, M.E.M.; Tanamachi, E.R. (2003). A Atuação do Psicólogo como Expressão do Pensamento Crítico em psicologia e Educação. IN: Antunes, M.A.M.; Meira, M.E.M. (Orgs.), Psicologia Escolar: Práticas Críticas(pp. 11-62). São Paulo: Casa de Psicólogo.). Dentro desta perspectiva, frente à queixa escolar desconsidera-se a importância da compreensão das múltiplas determinações envolvidas em sua produção; adota-se, portanto, uma abordagem adaptativa a qual elege as expectativas arbitrárias e classistas do processo de escolarização burguês como parâmetros para apontar critérios de normalidade, determinar aquilo que falta na criança e estereotipá-la como incapaz (Patto, 2008Patto, M.H.S. (2008). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Casa do Psicólogo.). Destarte, ao culpabilizar a criança pela não aprendizagem, o trabalho do/a psicólogo/a restringe-se quantificá-la, avaliá-la, diagnosticá-la e classificá-la a partir de padrões normativos classistas e preconceituosos.

A concepção crítica em psicologia escolar e educacional ergue-se na defesa de que as dificuldades de aprendizagem devem ser compreendidas dentro do cotidiano de violências simbólicas imposto pelas instituições de ensino, as quais, ao elegerem os padrões aquisitivos e culturais de uma elite como normativos e ideais, cultivam práticas excludentes e discriminatórias, sobretudo no que se refere às crianças economicamente vulneráveis atendidas pelas escolas públicas (Patto, 2008Patto, M.H.S. (2008). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Casa do Psicólogo.; Souza, 2009Souza, M.P.R. (2009). Psicologia Escolar e Educacional em busca de novas perspectivas. Psicologia Escolar e Educacional, 13(1), 179-182.; Antunes, 2008Antunes, M.A.M. (2008). Psicologia Escolar e Educacional: história, compromissos e perspectivas.Psicologia Escolar e Educacional , 12(2), 469-475.).

Tendo os pressupostos desta postura crítica como diretrizes de atuação, relataremos uma experiência interventiva de uma das frentes do estágio em psicologia da educação do curso de psicologia de uma instituição pública de ensino superior, realizada entre abril de 2015 e fevereiro de 2016. O objetivo deste relato é contribuir com a socialização de práticas críticas em psicologia escolar frente a dificuldades de aprendizagem. Destarte, será descrita a trajetória de duas estagiárias que atuaram na frente de estágio voltada ao atendimento de crianças encaminhadas com queixa escolar, na qual propôs-se enfrentar o desafio colocado por Souza (2009Souza, M.P.R. (2009). Psicologia Escolar e Educacional em busca de novas perspectivas. Psicologia Escolar e Educacional, 13(1), 179-182.) para a formação e atuação do/a psicólogo/a escolar, qual seja, a superação da expectativa adaptacionista e excludente relativa à atuação deste/a profissional nas instituições de ensino.

A proposta de estágio foi apresentada à equipe gestora e docente da instituição pública de ensino participante. Uma professora do primeiro ano do Ensino Fundamental I interessou-se pelo trabalho e apresentou como demanda três crianças de uma das turmas em que lecionava, afirmando que elas apresentavam dificuldades de aprendizagem referentes à apropriação da escrita.

Seguindo os pressupostos assinalados por Meira e Tanamachi (2003Meira, M.E.M.; Tanamachi, E.R. (2003). A Atuação do Psicólogo como Expressão do Pensamento Crítico em psicologia e Educação. IN: Antunes, M.A.M.; Meira, M.E.M. (Orgs.), Psicologia Escolar: Práticas Críticas(pp. 11-62). São Paulo: Casa de Psicólogo.) sobre a atuação crítica do/a psicólogo/a frente a demandas de queixa escolar, as estagiárias realizaram o processo avaliativo e interventivo abarcando os três segmentos os quais, segundo as autoras, devem ser envolvidos na superação das dificuldades de aprendizagem vivenciadas - a família, a escola e a criança. Relataremos a seguir o processo de avaliação.

Com as famílias das crianças encaminhadas, foram realizadas visitas domiciliares no intuito de identificar: a história escolar da criança; se as dificuldades da criança descritas pela escola se reproduziam no ambiente familiar; o que a família fazia diante das dificuldades vivenciadas pela criança; a explicação das dificuldades da criança na perspectiva da família; as expectativas com relação à escolarização da criança; a relação da família com a escola.

Na escola, foram feitos encontros com a professora das crianças encaminhadas visando investigar: as dificuldades das crianças na perspectiva da docente; o modo como estas dificuldades se manifestavam em sala de aula; a hipótese explicativa da docente para a problemática; as alternativas pedagógicas que adotava diante das dificuldades; quais as aprendizagens já consolidadas pelas crianças encaminhadas; quais as expectativas da docente para essas crianças no que se refere à trajetória escolar; como a docente avaliava a relação da escola com a família.

Também, foram realizadas observações em sala de aula nas quais analisaram-se: as relações da criança encaminhada com os/as demais colegas e com a professora; os métodos de ensino adotados; o contexto em que as dificuldades de aprendizagem se manifestavam; as estratégias utilizadas frente às dificuldades da criança.

Com as crianças encaminhadas, articulou-se a intervenção aos conceitos de nível de desenvolvimento real e zona de desenvolvimento iminente propostos por Vygotski (2001Vygotski, L. S. (2001). Obras escogidas. Tomo II. Madrid: Visor.). Neste sentido, buscou-se realizar atividades lúdicas que possibilitassem identificar o que a criança já era capaz de fazer sozinha - visando delinear as aprendizagens já consolidadas e superar o rótulo imobilizante de incapacidade que frequentemente as acompanhava - e o que conseguiam realizar com ajuda e mediações - de modo a identificar as aprendizagens que estavam em iminência de se concretizar, nas quais, de acordo com o autor, o bom ensino deve atuar para promover saltos qualitativos significativos. Além disso, buscou-se compreender a concepção da queixa escolar na visão das crianças encaminhadas - de que forma elas a compreendiam e explicavam.

Feito este levantamento as estagiárias elaboraram uma proposta de intervenção envolvendo os três segmentos - escola, família e criança encaminhada - e apresentaram aos envolvidos para discussão. Cada proposta abordava questões específicas referentes à realidade de cada criança; dados os limites do presente texto, a seguir apresentaremos os elementos gerais presentes no processo interventivo com as três crianças encaminhadas.

O processo interventivo na escola envolveu a realização de reuniões semanais com a professora com a duração de uma hora e meia. Essas reuniões consistiam em apresentar à professora participante os fundamentos da psicologia histórico-cultural no que se refere à apropriação da escrita como instrumento cultural complexo (Vygotski 2001Vygotski, L. S. (2001). Obras escogidas. Tomo II. Madrid: Visor., Luria, 2008Luria, A.R. (2008). Desenvolvimento cognitivo. São Paulo: Ícone.); auxiliar no planejamento de ações pedagógicas voltadas para as crianças que apresentavam dificuldades de aprendizagem; auxiliar na aplicação do planejamento pedagógico elaborado e analisar os resultados alcançados. Além disso, as estagiárias acompanhavam as atividades realizadas na sala de aula em que estudavam as crianças encaminhadas com a frequência de duas vezes por semana durante todo o período de aula. Outra frente de intervenção na escola foi a reconfiguração das reuniões de pais, mães e responsáveis; buscou-se torná-las espaços acolhedores de formação e informação a favor da aprendizagem das crianças, superando a conotação aversiva e punitiva que muitas vezes despertavam.

A intervenção com as famílias consistiu na realização de visitas domiciliares quinzenais com os objetivos de fornecer apoio aos familiares na mediação da rotina e dos estudos da criança em casa, e discutir as possibilidades existentes de participação ativa dos responsáveis na instituição de ensino e na vida escolar da criança. Com as crianças foram realizadas intervenções individuais semanais, de cunho lúdico, no intuito de acompanhar o movimento de suas aprendizagens e compreender o modo como vivenciavam o processo interventivo.

Os processos de avaliação e intervenção tiveram a duração de 10 meses. Ao final deste período as três crianças superaram as dificuldades de aprendizagem relacionadas à apropriação da escrita que motivaram seu encaminhamento. Os familiares tornaram-se mais participativos na vida escolar das crianças e a instituição de ensino passou a oferecer espaços de participação e atuação legitima da comunidade na escola, construindo possibilidades de diálogos e trocas horizontalizadas. Rompeu-se, portanto, com as explicações para o fracasso escolar circunscritas à patologização e psicologização dos processos de aprendizagem, à culpabilização das condições socioeconômicas da família e ao suposto caráter violento das comunidades; para tanto, articulou-se parcerias entre todos os setores do processo educativo, demonstrando que a cooperação coletiva é indispensável para enfrentar os desafios do processo de escolarização e garantir o bom desenvolvimento afetivo-cognitivo da criança na escola.

Conclui-se que esta experiência de intervenção aponta caminhos sólidos para a construção de atuações críticas nos espaços de formação do/a psicólogo/a escolar e educacional. Foi possível promover às estagiárias a vivência de práticas que transcenderam a aparência fragmentada dos fenômenos e buscaram nas relações interpessoais essenciais a via de superação das dificuldades de aprendizagem, movimentando trajetórias escolares antes imobilizadas por perspectivas unilaterais, preconceituosas e estigmatizantes.

Referências

  • Antunes, M.A.M. (2008). Psicologia Escolar e Educacional: história, compromissos e perspectivas.Psicologia Escolar e Educacional , 12(2), 469-475.
  • Luria, A.R. (2008). Desenvolvimento cognitivo São Paulo: Ícone.
  • Meira, M.E.M.; Tanamachi, E.R. (2003). A Atuação do Psicólogo como Expressão do Pensamento Crítico em psicologia e Educação. IN: Antunes, M.A.M.; Meira, M.E.M. (Orgs.), Psicologia Escolar: Práticas Críticas(pp. 11-62). São Paulo: Casa de Psicólogo.
  • Souza, M.P.R. (2009). Psicologia Escolar e Educacional em busca de novas perspectivas. Psicologia Escolar e Educacional, 13(1), 179-182.
  • Patto, M.H.S. (2008). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Vygotski, L. S. (2001). Obras escogidas Tomo II Madrid: Visor.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2018

Histórico

  • Recebido
    14 Nov 2016
  • Aceito
    21 Nov 2016
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