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Sentido do ensino médio para estudantes de escolas públicas estaduais

Sentido de la enseñanza secundaria para estudiantes de escuelas públicas estaduales

Resumo

Neste estudo objetivamos suscitar a discussão acerca do sentido do ensino médio para os estudantes da rede estadual de ensino, tendo como referencial teórico a Psicologia Histórico-Cultural. Os dados empíricos foram coletados por meio de entrevistas individuais, realizadas com oito estudantes do ensino médio, pertencentes a dois colégios estaduais. As análises pautaram-se em teorizações de autores que tratam da temática em questão, em especial nos estudos de Lev Semenovich Vigotski e Alexei Nikolaievich Leontiev. Os resultados apontam para a ausência de sentidos vinculados à atividade de estudo, pois os estudantes não atribuem valor à aprendizagem em si. Eles apontam as relações pessoais (amizades) e as expectativas de alcançarem sucesso profissional no futuro, como fatores motivacionais para frequentarem o ensino médio. Embora os participantes afirmem que cursar o ensino médio é relevante para suas vidas, eles não têm clareza acerca da importância do que aprendem nele para o seu desenvolvimento, o que resulta no não estabelecimento da atividade de estudo, no sentido defendido por Leontiev.

Palavras-chave:
Ensino médio; escolas estaduais; Psicologia histórico-cultural

Resumen

En este estudio se tuvo por objetivo suscitar la discusión acerca del sentido de la enseñanza secundaria para los estudiantes de la red estadual de enseñanza, teniendo como referencial teórico la Psicología Histórico-Cultural. Los datos empíricos fueron recolectados por intermedio de entrevistas individuales, realizadas con ocho estudiantes de la enseñanza secundaria, pertenecientes a dos colegios estaduales. Los análisis se efectuaron en teorizaciones de autores que tratan de la temática en cuestión, en especial en los estudios de Lev Semenovich Vygotsky y Alexei Nikolaievich Leontiev. Los resultados apuntan para la ausencia de sentidos vinculados a la actividad de estudio, pues los estudiantes no atribuyen valor al aprendizaje en sí mismo. Ellos apuntan las relaciones personales (amistades) y, las expectativas de alcanzar éxito profesional en el futuro, como factores motivacionales para acudir a la enseñanza secundaria. Aunque los participantes afirmen que cursar la enseñanza secundaria es relevante para sus vidas, ellos no tienen clareza acerca de la importancia de lo que aprenden en él para su desarrollo, lo que resulta en el no establecimiento de la actividad de estudio, en el sentido defendido por Leontiev.

Palabras clave:
Enseñanza secundaria; escuelas estaduales; Psicología histórico-cultural

Abstract

In this study, we aimed to raise the discussion about the meaning of secondary education for the students of the state educational network, having as theoretical reference the Historical-Cultural Psychology. Empirical data collected through individual interviews with eight high school students from two state colleges. The analyzes were based on theorizations of authors who deal with the subject in question, especially in the studies of Lev Semenovich Vigotski and Alexei Nikolaievich Leontiev. The results point to the absence of meanings related to the study activity, since the students do not attribute value to the learning itself. They point to personal relationships (friendships) and expectations of career success in the future as motivational factors for attending high school. Although participants say that attending high school is relevant to their lives, they are not clear about the importance of what they learn in it for their development, which results in the non-establishment of study activity, in the sense advocated by Leontiev.

Keywords:
High school; state public schools; historical-cultural Psychology

Introdução

Embora o ensino médio, que integra os últimos três ou quatro anos da Educação Básica no Brasil, seja historicamente uma etapa educativa alvo de diversas reformas, ainda não foram superados muitos dos problemas nele encontrados, como a definição de seu currículo, recursos para sua manutenção e ampliação, formação de professores, qualidade do ensino, níveis de aprovação, distorção série/idade e evasão. No que tange à sua função, há também um grande impasse, coexistindo a ideia de preparação para o trabalho e de preparação para continuidade dos estudos.

Vinculada a essas grandes questões, está a maneira como os estudantes o vivenciam e o sentido pessoal que atribuem a esta etapa educativa, o que por sua vez, tem impacto na postura que assumem frente aos estudos, resultando em maior ou menor apropriação dos conhecimentos nele trabalhados. Portanto, o presente estudo objetivou investigar quais os sentidos do ensino médio para os estudantes desse nível de ensino.

Para poder discutir mais a fundo tais questões, primeiramente apresentaremos um breve resumo acerca da história do ensino médio e, na sequência, abordaremos o conceito de sentido pessoal e sua interface com a atividade de estudo, apoiados nos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural.

Breve resgate da história do ensino médio no Brasil

Um olhar para a história do Brasil nos mostra que os movimentos políticos e econômicos vividos pelo País tiveram papel determinante nas formas de se pensar e organizar a educação brasileira. Com relação à história do ensino médio, isso pode ser nitidamente percebido, uma vez que em cada momento histórico ele foi organizado para atender a diferentes públicos e demandas, ora assumindo um caráter mais teórico, ora tendo um enfoque técnico, mas sempre em resposta ao contexto socioeconômico do País. Os conflitos entre os interesses dos conservadores e dos progressistas, seus embates e disputas, às vezes atendidos pelos governos em função do movimento econômico do País, provocaram as nuances que caracterizam a história do ensino médio no Brasil. No entanto, em menor ou maior grau, a dualidade estrutural nesse nível de ensino, caracterizada pela existência de ramos distintos de ensino para elites e para a classe trabalhadora, manteve-se desde o início de sua organização até os dias de hoje.

Como aponta Xavier (1990)Xavier, M. E. S. P. (1990). Capitalismo e escola no Brasil: a constituição do liberalismo em ideologia educacional e as reformas do ensino (1931-1961). Campinas, SP: Papirus., no Brasil o ensino médio foi inicialmente o espaço para a formação da elite, tendo um currículo voltado para as humanidades, organizado a princípio dentro do modelo de seminário-escola dos jesuítas, cujo objetivo era preparar uma pequena parcela da população para exames de ingresso no Ensino superior. Mas, de acordo com Xavier (1990)Xavier, M. E. S. P. (1990). Capitalismo e escola no Brasil: a constituição do liberalismo em ideologia educacional e as reformas do ensino (1931-1961). Campinas, SP: Papirus., Kuenzer (2000)Kuenzer, A. Z. (2000). Ensino médio e profissional: as políticas do Estado neoliberal (2ª. ed.). São Paulo: Cortez. (Coleção Questões da Nossa Época; v. 63)., Romanelli (2012)Romanelli, O. O. (2012). História da educação no Brasil: (1930/1973) (37ª ed. Prefácio do Prof. Francisco Iglésias). Petrópolis, RJ: Vozes. e Moehlecke (2012)Moehlecke, S. (2012). O Ensino Médio e as novas diretrizes curriculares nacionais: entre recorrências e novas inquietações. Revista Brasileira de Educação, 17(49), 39-58. Recuperado: 21 mai. 2015. Disponível: Disponível: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v17n49/a02v17n49.pdf
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, foi na década de 1930, a partir das reformas educacionais iniciadas por Francisco Campos, que o ensino médio começou a ser pensado para as massas, que precisavam de profissionalização para trabalhar nas indústrias que estavam surgindo no Brasil.

Doravante, uma sucessão de reformas foi realizada. Segundo Romanelli (2012)Romanelli, O. O. (2012). História da educação no Brasil: (1930/1973) (37ª ed. Prefácio do Prof. Francisco Iglésias). Petrópolis, RJ: Vozes., uma delas é a Reforma Capanema, promulgada por meio da Lei Orgânica do Ensino Secundário (Decreto-lei n. 4.244/42) e dos decretos específicos para a educação profissional, em três linhas distintas: Lei Orgânica do Ensino Industrial (Decreto-lei 4. 073, de 30 de janeiro de 1942); Leis Orgânicas do Ensino Comercial (Decreto-lei 6.141 de dezembro de 1943) e do Ensino Agrícola (Decreto-lei 9.613, de agosto de 1946).

Como afirma Saviani (2008)Saviani, D. (2008). História das ideias pedagógicas no Brasil (2ª ed. rev. e ampl.). Campinas, SP: Autores Associados., essas reformas evidenciavam o caráter dualista do ensino médio, uma vez que tal organização vislumbrava, no máximo, para a população pobre, a conclusão do ensino técnico (industrial, comercial ou agrícola) e para a elite, a realização do ensino secundário, seguido do ensino superior.

De acordo com Moehlecke (2012)Moehlecke, S. (2012). O Ensino Médio e as novas diretrizes curriculares nacionais: entre recorrências e novas inquietações. Revista Brasileira de Educação, 17(49), 39-58. Recuperado: 21 mai. 2015. Disponível: Disponível: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v17n49/a02v17n49.pdf
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, foi somente com a primeira LDB (Lei n. 4024/61) que se efetivou a equivalência entre o então denominado ensino secundário nas modalidades propedêutico e profissionalizante (industrial, comercial, agrícola e normal), no sentido de possibilitar o ingresso no ensino superior. Tal feito se apresenta como um dos principais pontos de mudança em relação às propostas anteriores.

No entanto, como afirma Xavier (1990)Xavier, M. E. S. P. (1990). Capitalismo e escola no Brasil: a constituição do liberalismo em ideologia educacional e as reformas do ensino (1931-1961). Campinas, SP: Papirus., se o projeto para o ensino médio alimentava esperanças de ascensão de camadas mais baixas via educação, o que se propunha para o ensino superior já denunciava que este não seria para todos e que a “seleção” se daria em função das aptidões inatas, da “natural” diferença entre melhores e piores, mais esforçados e menos esforçados. Portanto, abre-se a possibilidade de equivalência entre os cursos de ensino médio, mas fecham-se as portas do ensino superior por meio de processos seletivos mais rígidos, que mantêm os privilégios às classes mais altas, mas de maneira dissimulada.

Outro movimento importante na história do ensino médio deu-se durante o período da ditadura militar quando, segundo Moehlecke (2012)Moehlecke, S. (2012). O Ensino Médio e as novas diretrizes curriculares nacionais: entre recorrências e novas inquietações. Revista Brasileira de Educação, 17(49), 39-58. Recuperado: 21 mai. 2015. Disponível: Disponível: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v17n49/a02v17n49.pdf
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, foi estabelecida a profissionalização compulsória para o ensino médio, por meio da Lei n. 5.692/71. No entanto, tal medida se mostrou ineficaz, uma vez que, como pontua Nascimento (2007)Nascimento, M. N. M. (2007). Ensino médio no Brasil: determinações históricas. Publ. UEPJ Ci. Hum., Ci. Soc. Apl., Ling., Letras e Artes, 15(1), 77-87. Recuperado: 01 mar. 2016. Disponível: Disponível: http://www.revistas2.uepg.br/index.php/humanas/article/viewFile/594/581 .
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, o país não dispunha de recursos humanos e materiais para sua implantação, o que de fato nunca ocorreu.

Mais tarde, a partir da redemocratização da sociedade brasileira em 1985, com posterior aprovação da Constituição Federal de 1988, grandes modificações no ensino médio passaram a ser definidas e implementadas, pois como pontua Moraes (2006), nessa constituição os direitos coletivos foram reconhecidos. Assim, de maneira especial, na Constituição Cidadã definiram-se os deveres do Estado com relação à ampliação do acesso ao ensino médio, em caráter de obrigatoriedade e gratuidade.

Vale lembrar que, nesse novo momento histórico, marcado pela globalização e predomínio da ideologia neoliberal, surgiram novas demandas educativas. Assim, no que se refere ao ensino médio, o estabelecimento da nova LDB (9394/96, 1996Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. (1996, 20 de dezembro). Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: Presidência da República: Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Recuperado: 10 set. 2015. Disponível: Disponível: http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf
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) caminhou no sentido oposto à Lei 5692/71, na medida em que a orientação se dirigia para a integração desse ensino, visando agora a formação geral. Dessa forma, a partir da nova LDB, o ensino médio integrou-se à educação básica, correspondendo ao último nível, com duração mínima de três anos. Contudo, uma análise mais detalhada revela suas contradições e fragilidades, como afirmam Bremer e Kuenzer (2012Bremer, M. A. S.; Kuenzer, A. Z. (2012). Ensino médio integrado: uma história de contradições. IX ANPED Sul. Seminário de pesquisa em educação da região sul. Recuperado: 3 abr. 2016. Disponível: Disponível: http://www.portalanpedsul.com.br/admin/uploads/2012/Trabalho_e_Educacao/Trabalho/05_01_24_2217-6580-1-PB.pdf
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, p. 6):

...embora a superação da dualidade entre trabalho intelectual e manual esteja indicada na legislação, na prática, onde a dualidade efetivamente ocorre a partir da apropriação privada dos meios de produção, ela se acentua pelo rompimento da relação entre qualificação e ocupação, decorrente das novas formas de organizar e gerir o trabalho no regime de acumulação flexível.

Assim, para acertar esse descompasso com a realidade, no ano seguinte à promulgação da LDB 9394/96, por meio do Decreto n. 2.208/97, segundo Moehlecke (2012)Moehlecke, S. (2012). O Ensino Médio e as novas diretrizes curriculares nacionais: entre recorrências e novas inquietações. Revista Brasileira de Educação, 17(49), 39-58. Recuperado: 21 mai. 2015. Disponível: Disponível: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v17n49/a02v17n49.pdf
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, definiu-se nova estrutura para a formação profissional de nível técnico, separando novamente ensino médio geral de ensino profissional, bem como introduzindo, de acordo com Brandão (2011Brandão, C. F. (2011). O Ensino Médio no contexto do Plano Nacional da Educação: o que ainda precisa ser feito. Cadernos Cedes, 31(84), 95-208. Recuperado:14 abr. 2016. Disponível: Disponível: http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v31n84/a03v31n84.pdf
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, p.197), “a ideia de desenvolvimento das competências como objetivo central das novas diretrizes curriculares deste nível de ensino”, com extrema valorização dos “métodos ativos”.

De acordo com Bremer e Kuenzer (2012)Bremer, M. A. S.; Kuenzer, A. Z. (2012). Ensino médio integrado: uma história de contradições. IX ANPED Sul. Seminário de pesquisa em educação da região sul. Recuperado: 3 abr. 2016. Disponível: Disponível: http://www.portalanpedsul.com.br/admin/uploads/2012/Trabalho_e_Educacao/Trabalho/05_01_24_2217-6580-1-PB.pdf
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, esse decreto instituiu uma rede paralela de educação profissional, o que causou a quebra com a aparente unidade que a LDB tentava trazer e o rompimento definitivo com a concepção de educação profissional integrada ao ensino médio. Segundo Brandão (2011Brandão, C. F. (2011). O Ensino Médio no contexto do Plano Nacional da Educação: o que ainda precisa ser feito. Cadernos Cedes, 31(84), 95-208. Recuperado:14 abr. 2016. Disponível: Disponível: http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v31n84/a03v31n84.pdf
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, p. 197), “Um dos objetivos dessa separação era tornar o ensino profissional de nível médio mais curto e, portanto, de mais rápida conclusão”.

Somente a partir da expedição do Decreto n. 5.154, em 2004, foi restituída a possibilidade de reintegração entre ensino médio e ensino técnico-profissional, “mediante a modalidade ‘ensino médio integrado’ que passou a compor o texto da LDB por força da Lei n. 11.741/2008” (Kuenzer, 2010Kuenzer, A. Z. (2010). O ensino médio no plano nacional de educação 2011-2020: superando a década perdida?Educ. Soc., Campinas, v. 31, n. 112, pp. 851-873. Recuperado: 13 abril, 2016 de Recuperado: 13 abril, 2016 de http://www.scielo.br/pdf/es/v31n112/11.pdf
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, p. 864), ainda em vigência.

No entanto, apesar das muitas discussões e regulamentações realizadas desde então, e do estabelecimento de novas Diretrizes Curriculares para o ensino médio, bem como do aumento expressivo no que se refere ao acesso a esse nível de médio, ocorrido a partir de meados da década de 1990 no Brasil, os problemas que afetam essa etapa de ensino ainda são inúmeros. Dentre eles, um muito frequente, refere-se à queixa dos professores acerca da falta de interesse nos estudos, demonstrada pelos estudantes. Ao mesmo tempo, é comum ouvir dos estudantes que eles não sabem por que razão devem estudar todos aqueles conteúdos.

Entendendo que essa queixa não é algo que pode ser explicada apenas por fatores individuais dos estudantes, já que está presente em diferentes momentos da história da educação e também em vários contextos escolares, recorreremos à compreensão da Psicologia Histórico-Cultural acerca da formação de sentidos pessoais e sua vinculação à atividade de estudo, na tentativa de estabelecer relações entre os sentidos dos estudantes e a postura que assumem frente aos estudos.

Psicologia Histórico-Cultural e o conceito de sentido pessoal

De acordo com a Psicologia Histórico-Cultural, é por meio da aquisição dos conhecimentos produzidos pela humanidade que o homem se faz homem, ou seja, o psiquismo humano se constrói a partir da aprendizagem dos sujeitos, primeiramente de forma espontânea e posteriormente de maneira organizada por meio do ensino escolar. Assim, a criança inicia a construção de seu conhecimento acerca do mundo a partir de suas vivências concretas, nas quais as relações de mediação entre os sujeitos são imprescindíveis. Nessas relações, ela vai construindo os conceitos espontâneos, com os quais opera de forma prática, mas sobre os quais não consegue ter consciência, pois seu conhecimento parte do empirismo. No entanto, quando a criança passa a ir à escola e a entrar em contato com os conceitos científicos - que já são organizados dentro de um sistema e possuem relações mediadas com os objetos -, por meio de outros conceitos, consegue generalizar e, portanto, tomar consciência sobre eles. A aquisição dos conceitos científicos, por sua vez, modifica a estrutura do pensamento, possibilitando maior capacidade de generalização e de estabelecimento de relações. Isso altera o funcionamento do pensamento qualitativamente e permite, enfim, alcançar o pensamento em conceitos.

Considerando esses pressupostos, o ensino escolar é fundamental para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, do pensamento em conceitos e, portanto, da consciência dos sujeitos. No entanto, é preciso ressaltar que não é qualquer tipo de ensino que promove o desenvolvimento. Como afirma Asbahr (2011Asbahr, F. S. F. (2011). “Por que aprender isso, professora?” Sentido pessoal e atividade de estudo na Psicologia Histórico-Cultural. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo., p.100), “A aprendizagem ocorre dependendo do sentido que tenha para o sujeito, o que requer que o professor estruture a atividade de estudo de modo que os objetos a serem aprendidos tenham lugar estrutural na atividade dos estudantes”.

Como já dissemos, o processo de aquisição do que foi produzido pela humanidade se dá a partir das mediações que são estabelecidas nas inter-relações, no meio social. No entanto, o homem não é um ser passivo nesse processo, ele internaliza o que é dado na cultura, mas o faz de maneira particular. Assim, apesar de em determinado momento histórico estarem presentes certas configurações sociais, estas serão incorporadas pelas pessoas de maneira singular, em função de suas vivências concretas, do lugar que ocupam nas relações sociais de dada estrutura social, o que resulta nas diferenças individuais, nas distintas personalidades humanas.

Portanto, no processo de aquisição dos significados sociais das palavras, ao internalizá-los, o homem fixa neles suas impressões pessoais - marcadas pelos afetos e pelos motivos que conduzem sua ação -, o que se denomina sentido. Pautando-se nos estudos sobre linguagem desenvolvidos pelo psicólogo francês F. Paulham, Vigotski introduziu na Psicologia Histórico-Cultural o conceito de sentido da palavra, diferenciando-o do significado da palavra, e definiu-o assim:

...o sentido de uma palavra é a soma de todos os fatos psicológicos que ela desperta em nossa consciência. Assim, o sentido é sempre uma formação dinâmica, fluida, complexa, que tem várias zonas de estabilidade variada. O significado é apenas uma dessas zonas do sentido que a palavra adquire no contexto de algum discurso e, ademais, uma zona mais estável, uniforme e exata. (Vigotski, 2009Vigotski, L. S. (2009). A construção do pensamento e da linguagem (2ª ed.). São Paulo: WMF Martins Fontes., p. 465).

Nessa perspectiva, o sentido de uma palavra é sempre inconstante e, portanto, inesgotável, variável de acordo com o contexto. Por sua natureza dinâmica, como afirma Asbahr (2010, p. 86), “O sentido enriquece a palavra a partir de seu contexto e essa é a lei fundamental da dinâmica do significado das palavras”.

Vigotski (2009)Vigotski, L. S. (2009). A construção do pensamento e da linguagem (2ª ed.). São Paulo: WMF Martins Fontes.apresenta, no texto Pensamento e Palavra, a ideia de que para compreender o discurso de alguém, além de entender as palavras é preciso compreender os motivos que estão por trás daquele pensamento verbal, pois, como ele diz: “A compreensão efetiva e plena do pensamento alheio só se torna possível quando descobrimos a sua eficaz causa profunda afetivo-volitiva”(p. 479).

Ao introduzir a questão da motivação, Vigotski (2009)Vigotski, L. S. (2009). A construção do pensamento e da linguagem (2ª ed.). São Paulo: WMF Martins Fontes. confere à consciência humana um caráter mais elevado do que o pensamento em si, pois é ela que “sente e pensa” (p. 485). Para ele, pensamento e linguagem são a chave para compreender a natureza da consciência humana. Somente a partir das palavras, nas quais estão incorporadas as representações generalizadas da consciência prática dos homens, é possível chegar à natureza histórica da consciência humana. De maneira poética, ele explica essa relação:

A consciência se reflete na palavra como o sol em uma gota de água. A palavra está para a consciência como o pequeno mundo está para o grande mundo, como a célula viva está para o organismo, como o átomo para o cosmo. Ela é o pequeno mundo da consciência. A palavra consciente é o microcosmo da consciência humana. (Vigotski, 2009Vigotski, L. S. (2009). A construção do pensamento e da linguagem (2ª ed.). São Paulo: WMF Martins Fontes., p. 486).

Segundo Leontiev (2004)Leontiev, A. (2004). O desenvolvimento do psiquismo (2ª ed.). São Paulo: Centauro., a consciência é constituída pelo conteúdo sensível, pela significação social e pelo sentido pessoal. O primeiro deles engloba as sensações, as imagens da percepção e as representações, é o conteúdo imediato da consciência e, portanto, é a base para sua existência, já que transforma o estímulo exterior em fato da consciência. Já a significação social, ou significado social, corresponde às generalizações cristalizadas da prática social, que são elaboradas pelos homens e refletem a realidade objetiva existente, por meio da linguagem. São, por assim dizer, os produtos das relações sociais e, por estas serem históricas e estarem em constante transformação, as significações também se modificam, refletindo assim a dinâmica das relações sociais. O autor assinala ainda que, ao nascer, os indivíduos se deparam com um sistema de significações pronto, do qual devem se apropriar em seu processo de humanização. A partir desse processo de apropriação, esses significados passam a constituir a consciência dos indivíduos.

Contudo, como já dissemos anteriormente, cada indivíduo se apropriará desse conjunto de significações, em maior ou menor grau, e o fará de maneira ativa, não mecânica, imprimirá nelas suas impressões, afetos, sentimentos, motivos, de acordo com suas vivências, sua posição nas relações sociais, enfim, conforme o sentido pessoal que dada significação tem para ele. De acordo com Leontiev (1983Leontiev, A. (1983). Actividad, conciencia, personalidad. Habana: Editorial Pueblo Y Educación., p. 125, tradução nossa),

A diferença das significações, dos sentidos pessoais, é igual a trama sensível da consciência, não tem uma existência própria “supra individual”, “não psicológica”. Se a sensibilidade externa relaciona na consciência do sujeito as significações com a realidade do mundo objetivo, o sentido pessoal as relaciona com a realidade de sua própria vida dentro desse mundo, com suas motivações. O sentido pessoal é também o que origina a subjetividade da consciência humana.

Como explica Leontiev (1983)Leontiev, A. (1983). Actividad, conciencia, personalidad. Habana: Editorial Pueblo Y Educación., o processo de formação dos sentidos, do movimento interno da consciência individual, ocorre na atividade do homem, ou seja, é gerado pelo movimento da atividade objetal humana. Mas o que é atividade para a Psicologia Histórico-Cultural? Segundo o autor:

A atividade é uma unidade molar, não aditiva do sujeito corporal e material. Em um sentido mais estreito, isto é, a nível psicológico, essa unidade da vida se vê mediada pelo reflexo psíquico, cuja função real consiste em que este oriente o sujeito no mundo dos objetos. Em outras palavras, a atividade não é uma reação, assim como tampouco um conjunto de reações, se não que é um sistema que possui uma estrutura, passos internos e transformações, desenvolvimento. (Leontiev, 1983Leontiev, A. (1983). Actividad, conciencia, personalidad. Habana: Editorial Pueblo Y Educación., p. 66, tradução nossa).

De acordo com Leontiev (1983)Leontiev, A. (1983). Actividad, conciencia, personalidad. Habana: Editorial Pueblo Y Educación., a atividade só existe nas relações que se estabelecem na sociedade e sempre está orientada para um objeto, devido à existência de uma necessidade, também criada nas relações sociais. As necessidades, por sua vez, estão sempre vinculadas a um motivo, o qual orienta a atividade. Os motivos incitam a atividade e, por meio deles, pode-se compreender o sentido pessoal que está por traz de determinada atividade. “O sentido consciente traduz a relação do motivo ao fim” (Leontiev, 2004Leontiev, A. (2004). O desenvolvimento do psiquismo (2ª ed.). São Paulo: Centauro., p. 103), pois toda atividade pressupõe a existência de um motivo. A atividade se realiza por meio de ações, as quais são seus componentes fundamentais. Leontiev (1983Leontiev, A. (1983). Actividad, conciencia, personalidad. Habana: Editorial Pueblo Y Educación., p. 83, tradução nossa) assim as define: “Denominamos ação ao processo que se subordina a representação daquele resultado que deve ser alcançado, isto é, um processo subordinado a um objetivo consciente”.

É importante ressaltar que Leontiev (1983)Leontiev, A. (1983). Actividad, conciencia, personalidad. Habana: Editorial Pueblo Y Educación. diferencia atividade e ação a partir de sua relação com os motivos, de maneira que, para ele, só devem ser chamados de atividade os processos nos quais coincidem o objeto a que se dirigem e o objetivo. Entretanto, ele estabelece um paralelo entre ambos os conceitos, ao dizer que, da mesma maneira que o conceito de motivo se relaciona com o conceito de atividade, o conceito de objetivo se relaciona com o conceito de ação.

Se, na atividade, objeto e objetivo (motivo e fim) coincidem, na ação, o objeto é sempre um “alvo direto reconhecido”, o qual a suscitará. Contudo, apesar de distintas em sua relação com os motivos, atividade e ação possuem uma ligação particular, dinâmica, de forma que uma atividade pode vir a se tornar uma ação e vice-versa. E é devido a esse movimento, ou seja, “Esta é a maneira pela qual surgem todas as atividades e novas relações com a realidade” (Leontiev, 2014Leontiev, A. (2014). Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil. In: Vigotskii, L. S.; Luria, A. R.; Leontiev, A. N. (Orgs.), Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem(12ª ed., pp. 223-237). São Paulo: Ícone., p. 69).

Como isso ocorre? Para explicar esse processo, Leontiev (1983, 2014) diferencia os motivos-fins, de acordo com sua relação com a atividade, dividindo-os em “motivos geradores de sentido ou realmente eficazes” e “motivos estímulos ou apenas compreensíveis”. Os primeiros se caracterizam por atribuir sentido à atividade, de maneira que os sujeitos têm consciência dos motivos que os levam à atividade e suas ações. Já os motivos estímulos não geram sentido, apenas impulsionam o sujeito para a ação.

A atividade se vincula ao motivo, e a ação se vincula ao objetivo (fim), ao que deve ser feito. Desse modo, como aponta Leontiev (2014)Leontiev, A. (2014). Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil. In: Vigotskii, L. S.; Luria, A. R.; Leontiev, A. N. (Orgs.), Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem(12ª ed., pp. 223-237). São Paulo: Ícone., somente por meio da análise dos motivos pode-se chegar à compreensão das principais formas de atividade dos indivíduos e, portanto, ao sentido atribuído por eles aos objetos e fenômenos do mundo social. Dito de outra maneira, para compreender os sentidos pessoais, é preciso compreender os motivos que impulsionam a atividade.

No que se refere à atividade de estudo, e tendo em mente que o processo de aprendizagem exige a conscientização dos conteúdos, o sentido da razão de estudar deve estar claro para o estudante, porque é o sentido pessoal que o impulsionará ou não para a atividade de estudo.

Diante disso, o presente artigo visa discutir os sentidos do ensino médio para os estudantes da rede pública estadual, pois consideramos que a compreensão dos sentidos dos estudantes em relação ao ensino médio pode fornecer interessantes informações para fomentar discussões e nortear enfrentamentos no que diz respeito aos desafios vividos na atualidade, no interior da escola de ensino médio.

Método

O presente estudo foi realizado a partir de um exercício no método do materialismo histórico-dialético, o qual se constitui como base filosófica da Psicologia Histórico-Cultural. Tal escolha se deu tendo em vista que nos apropriamos da concepção de Vigotski (1996)Vigotski, L. S. (2009). A construção do pensamento e da linguagem (2ª ed.). São Paulo: WMF Martins Fontes. de que os objetos da Psicologia só podem ser verdadeiramente apreendidos a partir de um método que integre subjetivo e objetivo, ideal e material, sujeito e sociedade. Somente com uma análise histórica e dialética dos fenômenos é possível estudá-los em sua complexidade, não os reduzindo, não os simplificando, mas entendendo-os como uma totalidade.

O estudo empírico envolveu oito adolescentes (cinco meninas e três meninos),estudantes do ensino médio, com idades entre 15 a 17 anos, pertencentes a duas instituições de ensino da rede pública estadual, localizadas em uma cidade de médio porte do interior do Paraná. Nesse estudo, buscamos coletar dados por meio de entrevistas baseadas em um roteiro semiestruturado, a fim de investigar os sentidos atribuídos pelos estudantes ao ensino médio.

Procedimentos de coleta de dados

Entramos em contato pessoalmente com duas instituições de ensino da rede estadual, uma situada na região central da cidade e outra na periferia, apresentamos os objetivos da pesquisa e solicitamos a permissão para a realização das entrevistas com alguns de seus estudantes. Diante do aceite de ambas as instituições, deu-se seguimento a todos os procedimentos determinados pelo Comitê de Ética da Universidade Estadual de Maringá.

Após a aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética, foi retomado o contato com as instituições de ensino participantes da pesquisa e solicitado aos coordenadores pedagógicos que indicassem alguns estudantes que poderiam se interessar em participar da pesquisa. É importante mencionar que decidimos pela solicitação de indicação de estudantes devido ao número pequeno de participantes de cada escola. Não foram feitos quaisquer tipos de ressalvas com relação ao desempenho educacional dos possíveis participantes, de maneira que, em nosso pedido, solicitamos apenas a indicação de estudantes, meninos e meninas, que cursavam o ensino médio.

Aos indicados, fizemos o convite para a participação na pesquisa, em caráter voluntário. Diante do aceite dos estudantes, foram entregues os termos de consentimento livre e esclarecido para menores, que foram assinados pelos adolescentes e seus responsáveis. De posse das anuências, agendamos as entrevistas, que foram realizadas nas próprias escolas, no horário de aula.Por fim, terminadas todas as entrevistas, que foram gravadas, fizemos a transcrição do material na íntegra, para que posteriormente pudéssemos dar início à análise de dados.

Resultados e Discussões

Por meio das entrevistas tentamos investigar o sentido do ensino médio para os participantes da pesquisa, chegar à expressão singular da subjetividade dos adolescentes, que dialeticamente, se vincula à totalidade da qual fazem parte. Para tanto, foram feitos a eles os seguintes questionamentos: a) O que significa para você estar cursando o ensino médio? e b) Qual a importância do que você aprende no ensino médio para a sua vida?

A seguir, apresentaremos os resultados, discutindo-os a luz da Psicologia Histórico-Cultural. Para ilustrar utilizaremos excertos das falas dos participantes, cujos nomes foram substituídos por outros fictícios.

Quando questionados sobre o que significava para eles estarem cursando o ensino médio, as respostas dos entrevistados foram variadas e trouxeram aspectos individuais dessa experiência, seu sentido para cada estudante. Dois adolescentes consideram que cursar o ensino médio é uma vitória, pois existem pessoas em suas famílias ou colegas que não tiveram essa oportunidade ou não a aproveitaram. Para exemplificar, apresentamos a fala de um deles:

Que eu conquistei grandes vitórias. Que eu pulei o ensino fundamental e cheguei no ensino médio, que pra mim aquilo é uma vitória. É... Eu da minha família, de todos os meus primos, eu sou a única, das mais velhas eu sou a única que está no ensino médio. Então aquilo pra mim é assim... um prazer, né? Pra mim, pra minha família eu sou o orgulho, porque eu não larguei os estudos... Então pra mim é uma vitória. (Juliana, 17 anos, 2º ano EM)

Na fala acima notamos que o sentido de vitória se relaciona ao fato de a estudante conviver, em sua família, com pessoas que não tiveram condições de acesso a esse nível de ensino. Por perceber essa exclusão, poder cursar o ensino médio tem o sentido de obtenção de uma oportunidade diferente, que deve ser aproveitada, de maneira que essa percepção se torna um dos motivos para a atividade de estudo.

Devemos relembrar que os sentidos estão marcados também pela posição social que cada um ocupa na sociedade. Isso fica evidente nesse caso, pois, por ser oriunda de uma família com baixa escolaridade, a educação assume um status de superação, principalmente pela ideia ainda presente na sociedade de que ela pode ser redentora e diminuir as desigualdades sociais. Vale ressaltar que, como as ideias pedagógicas da escola nova e do construtivismo continuam sendo predominantes no contexto educacional - embora com nova roupagem, o neoescolanovismo e o neoconstrutivismo,como define Saviani (2008)Saviani, D. (2008). História das ideias pedagógicas no Brasil (2ª ed. rev. e ampl.). Campinas, SP: Autores Associados. -, essa concepção está em plena vigência, sendo cada vez mais atribuída aos indivíduos a responsabilidade por seu sucesso, pois cabe a eles aproveitarem as oportunidades e alcançarem essa vitória.

Em consonância com essa ideia, Cecília estabeleceu uma relação entre o sentido do ensino médio e sua postura ativa na busca de conhecimentos para ampliar sua formação. Em sua fala, fica clara a incorporação das ideias das pedagogias do “aprender a aprender”, como uma necessidade constante de aperfeiçoamento, expressa na realização consecutiva de cursos, sendo o estudante, protagonista na construção de seu conhecimento.

Muito. Porque eu tenho... eu almejo muita coisa. Então, eu procuro sempre tá buscando é... mais informações, com professores, sempre que eu posso. Eu pergunto além do conteúdo que ele tá estudando, porque assim eu posso ter uma formação a mais pra entrar na faculdade, pra ingressar numa faculdade, depois fazer uma pós, e assim por diante. (Cecília, 17 anos, 3º EM)

Uma adolescente entende que cursar o ensino médio é concluir uma etapa de sua formação, que lhe credencia a iniciar outra etapa, a faculdade. “Estou chegando na faculdade (risos). E logo saio daqui” (Elisa, 16 anos, 2º EMG, I2). Já para outro estudante, o ensino médio tem o significado de construção de um futuro bom para si.

Outros três estudantes também pontuam a aquisição de conhecimentos como o significado pessoal do ensino médio para eles, como ilustra a seguinte fala: “Ah, mais pra você aprender mais, ter mais conhecimento. Eu acho que pra mim é isso, não é? É importante você ter o ensino médio. É mais pra você conhecer coisas novas e tal, entendeu?” (Clara, 15 anos, 1º EMI, I2).

Como foi possível perceber, os significados são variados e se relacionam às vivências pessoais, as expectativas que cada um atribui a esta etapa de ensino. Entretanto, vale destacar que apenas três dos oito adolescentes entrevistados relacionam o significado do ensino médio com a aquisição de conhecimentos, o que, de acordo com a Psicologia Histórico-Cultural, se vincula à verdadeira função da escola, que é a transmissão, às novas gerações, do saber produzido pela humanidade ao longo de sua história.

No entanto, apesar destes estudantes afirmarem que o ensino médio tem como significado a aquisição de novos conhecimentos, quando questionados sobre qual a importância dos conteúdos aprendidos no ensino médio para suas vidas, a maioria deles teve dificuldades em responder, fazendo até mesmo pausas em suas falas e, por vezes, pedindo para repetir a pergunta. Dos oito participantes, cinco estabeleceram uma relação direta entre conteúdos aprendidos e utilidade na vida diária, em questões práticas e simples do cotidiano, como matemática financeira, conhecimento sobre o funcionamento de seu corpo e uso da língua portuguesa para se comunicar. Apresentamos um excerto para ilustrar:

(Pausa). Depende do que. Em química mesmo. A gente tá aprendendo sobre bomba nuclear. A gente vê que isso faz mal e que a gente não pode praticar, né? E... Matemática, essas coisas, a gente vê que... Matemática trimestre passado foi matemática financeira. Então a gente aprende que... negócio de juros, essas coisas, que a gente já pode levar pra vida, porque se você deixar o juro muito alto, muito baixo, o lucro, as perdas que você pode ter, etc. E as coisas tudo que pode acontecer... A maioria das coisas que você aprende no ensino médio é pra isso. E... biologia você aprende os negócios do corpo e depois você aprende as plantas... Igual a gente estava estudando este trimestre, aprende as coisas da raiz, então pra quem quer ser um agrônomo, tem que estudar bastante biologia, principalmente no segundo ano. (Gustavo, 16 anos, 2º EMG, I1)

A partir da leitura desta resposta, notamos que as relações feitas entre o que se aprende no ensino médio e sua utilidade para sua vida se deram de maneira simplista, ou seja, o estudante confrontou os conteúdos e sua utilidade direta na vida prática, assim como os outros, cujas falas não foram aqui apresentadas. Por isso, eles não conseguem perceber a utilidade de conteúdos mais complexos. Essa falta de clareza em saber por que se estuda determinado conteúdo faz com que o ensino se torne mecânico, sem sentido para o estudante e, consequentemente, ele perde o interesse em aprender, sendo esta uma das grandes queixas de professores desse nível de ensino.

Como explica Leontiev (1983)Leontiev, A. (2014). Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil. In: Vigotskii, L. S.; Luria, A. R.; Leontiev, A. N. (Orgs.), Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem(12ª ed., pp. 223-237). São Paulo: Ícone., a falta de consciência entre motivos e fins impede que o estudo seja verdadeiramente uma atividade. Ela no máximo é uma ação, realizada para atingir o objetivo de conseguir notas nas provas e nos processos seletivos. Esse distanciamento entre motivos e fins tem impacto na postura que os adolescentes assumem em relação ao estudo e pode explicar o famoso “desinteresse” demonstrado pelos estudantes diante das atividades propostas pela escola. Isso porque a necessidade de aprender os conteúdos não se vincula à sua importância como saber, mas apenas em seu uso restrito na aprovação em exames.

Sendo assim, o que lhes motiva é, na maioria dos casos, a aprovação e não a aprendizagem. Nesse caso, o estudo não se configura como uma atividade, mas apenas como uma ação voltada a um objetivo. Portanto, o sentido de cursar o ensino médio não é se apropriar de conhecimentos e a partir deles promover uma complexificação do seu pensamento, mas sim cumprir com as tarefas exigidas pela escola e conquistar o diploma desse nível de ensino, o qual tanto pode servir para cumprir uma exigência para uma vaga de trabalho, quanto para ingressar no ensino superior.

Dos oito entrevistados, um deles enfatizou que não consegue ver utilidade prática para alguns conteúdos e, por isso considera que eles não precisariam ser trabalhados no ensino médio. Outras duas estudantes não conseguiram nem mesmo estabelecer essas relações e deram respostas vagas, dizendo novamente que o ensino médio será importante no futuro, mas sem explicar o porquê, como podemos perceber na resposta abaixo:

Qual a importância? (Pausa longa). Olha... importância... (silêncio)... Claro! Muitas coisas daqui eu vou levar pra minha vida inteira. Muitas coisas que eu aprendi aqui eu vou levar pra minha vida inteira. Igual quando eu for fazer minha faculdade eu vou lembrar de muitas coisas que eu aprendi aqui. Fora da faculdade, entendeu? (Juliana, 17 anos, 2º EMG, I1)

Alguns entrevistados expuseram com maiores detalhes o que lhes motiva a vir para as aulas. Três deles vincularam sua motivação ao desejo de alcançarem seus objetivos no futuro, como é exemplificado no excerto a seguir: “... o motivo de eu estar aqui é porque eu quero estar aqui. É porque eu gosto de estar aqui e eu quero ter um futuro... que diga, ah, você vai ter um futuro bom” (Carmen, 16 anos, EMG, I2).

Dois estudantes enfatizaram o gosto pelos estudos, a vontade de aprender como principal fator motivacional, embora um deles também tenha destacado as relações sociais com os amigos da escola e o incentivo da família como fatores geradores de motivação.

O que mais me motiva mesmo, é aprender mesmo. É aprender principalmente as coisas que eu gosto, que eu tenho bastante interesse. E... sem falar também na questão social. A questão social com certeza ajuda muito, porque vir aqui e saber que você vai estar presente com os seus... você acaba fazendo amizades, né? E aí saber que você vai estar perto de pessoas que você fez muita amizade, já tá bem íntimo, é interessante, bem interessante. É uma das coisas que eu acho que atrai muita gente, na verdade. É uma coisa que incentiva muitos alunos é a própria questão social. (Murilo, 16 anos, 2º EMG, I2)

Segundo Murilo, embora o que mais lhe motive a ir para a escola seja aprender, as relações sociais no espaço escolar, ou seja, a convivência com os colegas, é também um fator de extrema importância, de tal forma que, como ele mesmo diz, pode tanto estimular o aluno a ir para o colégio como pode conduzir à sua desistência, caso tenha dificuldades de se relacionar e de estabelecer amizades.

De acordo com Leal (2010)Leal, Z. F. R. G. (2010). Educação escolar e constituição da consciência: um estudo com adolescentes a partir da Psicologia Histórico-Cultural. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo., essa grande importância atribuída à convivência com os pares, a qual se torna para muitos como principal fator de motivação, demonstra o quanto a escola não tem conseguido desenvolver seu papel e fazer sentido para os estudantes, ou seja, ser entendida em sua função e significado central. Na pesquisa realizada pela autora com adolescentes, a convivência com os colegas no ambiente escolar foi apontada pelos participantes como a característica mais marcante e positiva da escola.

A atribuição de maior importância para a convivência do que para o processo de aprendizagem no ambiente escolar revela a ineficiência do trabalho educativo realizado. Como discutem Anjos e Duarte (2016)Anjos, R. E.; Duarte, N. (2016). A adolescência inicial: comunicação íntima pessoal, atividade de estudo e formação de conceitos. In: Martins, L. M.; Abrantes, A. A.; Facci, M. G. D. (Orgs.), Periodização histórico-cultural do desenvolvimento psíquico: do nascimento à velhice (pp. 195-219). Campinas, SP: Autores Associados., cabe à escola produzir necessidades de conhecimento sistematizados nos estudantes, recuperando assim seu papel no desenvolvimento desses estudantes como sujeitos em plena fase de formação do pensamento em conceitos, de desenvolvimento de sua consciência.

Entretanto, devemos sempre lembrar que a escola não está desvinculada da sociedade, ou melhor, não se configura como um espaço independente das condições materiais. Assim, a desvalorização do conhecimento em prol da formação de “competências” para fácil adaptação dificulta que o processo educativo consiga, por si só, produzir necessidade de verdadeira apropriação do conhecimento. Diante disso, a prática educativa fica marcada por essa cisão entre o significado da escola e o sentido que ela assume para os estudantes, em especial durante o ensino médio, uma vez que não são explicitados os vínculos entre os conteúdos trabalhados e a realidade concreta. Dessa forma, os estudantes não conseguem compreender para que devem aprender aqueles conteúdos e perceber sua importância para além de sua utilização prática e imediata.

Considerações finais

Neste estudo buscamos apreender que sentidos os estudantes possuem acerca do ensino médio. Como foi possível constatar por meio das falas dos entrevistados, o sentido para cursar o ensino médio se vincula à sua aprovação, devido à necessidade da obtenção de um diploma neste nível de ensino, para que eles tentem uma vaga de emprego ou deem continuidade aos estudos. Suas motivações se relacionam à promessa de uma vida melhor no futuro, conquistada através dos estudos, bem como à convivência com seus colegas, no presente. Nesse sentido, embora alguns estudantes tenham falado que frequentam o ensino médio para adquirir mais conhecimentos, o aprender em si não é o foco, pois a apropriação do conhecimento não é percebida como necessária ao seu desenvolvimento, já que a importância da educação é entendida a partir das demandas do mercado de trabalho, ou seja, à necessidade de adquirir mais conhecimentos para conquistar melhores chances no mercado.

A partir desses resultados, consideramos ser necessário resgatar o verdadeiro papel da escola, colocando o foco do trabalho na transmissão dos conhecimentos produzidos e sistematizados ao longo da história pela humanidade. Os conhecimentos aprendidos no espaço escolar devem ser articulados com a prática social, com o mundo real, para que a atividade de estudo se constitua de fato, pois à medida que os estudantes conseguirem compreender porque devem aprender aqueles conteúdos e qual a importância deles para o desenvolvimento de seu pensamento e de sua compreensão de mundo, o ato de estudar terá sentido. Só então, cursar o ensino médio não significará mais apenas completar um ciclo, mas significará ter a oportunidade de adquirir conhecimentos que foram construídos pelos homens e possibilitaram os incríveis avanços na maneira de produção dos meios de vida. Conhecimentos estes que precisam ser socializados, a fim de que todos tenham acesso à riqueza cultural e possam alcançar o máximo desenvolvimento de suas potencialidades humanas, para, munidos de uma nova consciência e de uma nova visão acerca do mundo, serem capazes de promover mudanças na estrutura social.

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  • Este artigo é um recorte de uma pesquisa maior intitulada “O sentido e o significado do ensino médio para os estudantes: um estudo a partir da Psicologia Histórico-Cultural”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    02 Abr 2017
  • Aceito
    29 Jan 2018
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