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Linguagem musical em instituições infantis: avaliação de duas propostas para formação docente

Lenguaje musical en instituciones infantiles: evaluación de dos propuestas para formación docente

Resumo

Trata-se de dois estudos visando avaliar duas propostas de intervenção utilizando a linguagem musical na formação de professores de Educação Infantil. As intervenções ocorreram em instituições infantis públicas, de cidades e metodologias distintas, porém com o objetivo de qualificar o desenvolvimento da linguagem musical das crianças, simultaneamente à complementação da formação inicial do professor com os conhecimentos pertinentes. O Estudo 1 se deu pela criação e aplicação de um material psicopedagógico, organizado num programa de formação, acrescido do acompanhamento individual das professoras. Para o Estudo 2 elaborou-se um programa baseado na Teoria da Aprendizagem Musical de Edwin Gordon, que foi trabalhado com professoras de uma escola apoiada por pesquisadores de uma instituição de ensino superior. Os resultados indicaram ligeira melhora na performance das professoras do Estudo 1 e expressivas diferenças no comportamento das professoras do Estudo 2. O trabalho lança luz sobre processos de formação em serviço em contextos infantis.

Palavras-chave:
Professores; educação musical; educação infantil

Resumen

Se trata de dos estudios visando evaluar dos propuestas de intervención utilizando el lenguaje musical en la formación de profesores de Educación Infantil. Las intervenciones sucedieron en instituciones infantiles públicas, de ciudades y metodologías distintas, sin embargo, con el objetivo de calificar el desarrollo del lenguaje musical de los niños, simultáneamente a la complementación de la formación inicial del profesor con los conocimientos pertinentes. El Estudio 1 se dio por la creación y aplicación de un material psicopedagógico, organizado en un programa de formación acrecido del acompañamiento individual de las profesoras. Para el Estudio 2, se elaboró un programa basado en la Teoría del Aprendizaje Musical de Edwin Gordon, que fue desarrollado con profesoras de una escuela apoyada por investigadores de una institución de enseñanza universitaria. Los resultados indicaron ligera mejora en el rendimiento de las profesoras del Estudio 1 y, expresivas diferencias en el comportamiento de las profesoras del Estudio 2. El estudio lanza luz sobre procesos de formación en servicio en contextos infantiles.

Palabras clave:
Maestros; educación musical; educación infantil

Abstract

This article assesses two studies evaluating two proposals of intervention employing the language of music in the formation of teachers for Child Education. The interventions took place in public institutions of child education from distinct cities and methodologies with the objective of developing musical language in children, and simultaneously complementing the initial formation of teachers by means of relevant knowledge. Study 1 was based on the creation and application of psycho-pedagogical material, organized by a formation program plus individual support for each one of the teachers. For Study 2, a program was produced based on the Music Learning Theory by Edwin Gordon, which was applied on teachers at a school supported by researchers from a university. The results pointed at a slight improvement in the performance of teachers from Study 1 in contrast with expressive differences in the behaviors of teachers in Study 2. This work sheds light on the formation processes currently employed in child education.

Key words:
Teachers; music learning; child education.

Introdução

Na atualidade, a inserção de crianças em idades cada vez mais precoces em contextos infantis tem lançado luz sobre a importância de que essas instituições ofereçam serviços de qualidade, capazes de fomentar o desenvolvimento na infância, em todos os seus aspectos. A despeito da pluralidade de interpretações que suscitam a clara definição do conceito de qualidade e suas dimensões, este pode ser entendido a partir de dois componentes fundamentais, representados pelo empenho do professor e pelo envolvimento da criança (Laevers, 1994Laevers, F. (1994). The Leuven Involvement Scale for Young Children. Belgium: Centre for Early Childhood & Primary Education.) e, em última análise, pela interação efetiva entre o educador e o aluno ou, ainda, entre o mediador e o mediado (Feuerstein, 1980Feuerstein, R. (1980). Instrumental enrichment. Baltimore, MD: University Park Press.; Klein, 1996Klein, P. S. (1996). Early intervention: Cross-cultural experiences with a mediational approach. New York: Garland Publishers.).

Na busca pela qualidade, uma das alternativas dos contextos endereçados à infância tem sido o oferecimento de uma pluralidade de atividades que possam estar a serviço do desenvolvimento e ao atendimento integral da criança pequena. Malaguzzi (1994Malaguzzi, L. (1994). Your image of the child: where teaching begins. Recuperado: 20 mai. 2018. Disponível: Disponível: https://reggioalliance.org/downloads/malaguzzi:ccie:1994.pdf .
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) ensina que a criança tem disponíveis cem linguagens para se expressar, cabendo então aos contextos dos quais participa aflorar tais manifestações. Entre essas linguagens, destacam-se o brincar, as narrativas, a música, o toque, a dança, a brincadeira, o jogo, as inúmeras formas de movimentos corporais, entre outras.

A linguagem musical, como uma das cem linguagens referidas pelo educador italiano supracitado, tem seus caminhos próprios que integram áreas do conhecimento, dentre as quais é fundamental associá-las quando se propõe alicerçar na música uma fonte de aprendizagem e desenvolvimento. Contudo, o que é a linguagem musical e como instrumentalizá-la em contextos infantis? Responder a essa questão não é tarefa fácil, haja vista a superficialidade com que a disciplina é tratada nas instituições de ensino infantil, principalmente pela falta de uma proposta pedagógico-musical com fundamentações psicológicas, que possibilite uma efetiva sequência de aprendizagem musical (Gordon, 2000Gordon, E. E. (2000). Teoria da Aprendizagem Musical Para Recém-Nascidos e Crianças em Idade Pré - Escolar. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.).

O termo linguagem musical é utilizado por muitos educadores e pedagogos musicais como uma das linguagens expressivas disponíveis para a humanidade (Tormin, 2014Tormin, M. C. (2014). Dubabi Du: uma proposta de formação e intervenção musical na creche. Tese de Doutorado, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo.). Gordon relaciona a aprendizagem musical à aprendizagem da língua materna, pois as crianças aprendem música de forma muito semelhante a que aprendem uma língua. Segundo o autor, “a aprendizagem da música deveria processar-se como a aprendizagem da linguagem” (Gordon, 2000Gordon, E. E. (2000). Teoria da Aprendizagem Musical Para Recém-Nascidos e Crianças em Idade Pré - Escolar. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian., p. 4).

No que respeita ao desenvolvimento musical da criança, Gordon (2000Gordon, E. E. (2000). Teoria da Aprendizagem Musical Para Recém-Nascidos e Crianças em Idade Pré - Escolar. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.) aponta a sua abrangência no fomento aos aspectos afetivos, sociais, sensório-motores, cognitivos, psicológicos, entre outros. No entanto, ao se tratar de desenvolvimento musical infantil, é importante diferenciar “interação musical” de “aprendizagem musical”. Ambas trazem desenvolvimento e aprendizagem musical à criança, mas não necessariamente o desenvolvimento de competências e habilidades musicais no domínio da linguagem musical.

Vários pesquisadores, como Gordon (2000Gordon, E. E. (2000). Teoria da Aprendizagem Musical Para Recém-Nascidos e Crianças em Idade Pré - Escolar. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian., 2011Gordon, E. E. (2011). Roots of Music Learning Theory and audiation. Chicago, USA: Gia Publications.), Sloboda (2008Sloboda, J. A. (2008). A mente musical: psicologia cognitiva da música. Londrina: EDUEL.) e Gainza (1977)Gainza, V. H. (1997). Estudos de Psicopedagogia Musical. São Paulo: Summus Editorial. priorizam a aprendizagem musical dos bebês desde o nascimento. No Brasil, destacam-se Beyer (2003Beyer, E. (2003). A interação musical em bebês: algumas concepções. Revista do Centro de Educação, 28(2), 87-98., 2008Beyer, E. (2008). A importância da interação no desenvolvimento cognitivo musical: um estudo com bebês de 0 a 24 meses. In: Medeiros, B. R.; Nogueira, M. (Orgs.), Anais do SIMCAM4 - IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais (pp. 271-276). São Paulo: USP.) e Ilari (2002Ilari, B. S. (2002). Bebês também entendem de música: a percepção e a cognição musical no primeiro ano de vida. Revista da ABEM, 7, 83-90., 2005Ilari, B. S. (2005). A música e o desenvolvimento da mente no início da vida: investigação, fatos e mitos. In: Associação Brasileira de Cognição & Artes Musicais (Org.), Anais do ISimpósio de Cognição e Artes Musicais, Curitiba: UFPR.) com estudos importantes sobre desenvolvimento cognitivo musical de bebês.

É importante esclarecer que algumas metodologias musicais dos principais pedagogos musicais do século XX, como as de Jaques-Dalcroze, Edgar Willems, Carl Orff, Zoltán Kodály, entre outros, acreditavam que antes dos três anos de idade não era viável o ensino de música, pelo fato de as crianças não terem ainda competências linguísticas, motoras, sócio-afetivas e lógico-formais suficientemente desenvolvidas (Reigado, Rocha, & Rodrigues, 2011Reigado, J. P.; Rocha, A. R.; Rodrigues, H. (2011). Vocalizations of infants (9-11 months old) in response to musical and linguistic stimuli. International Journal of Music Education,29(3), 241-255.). No entanto, as influências principalmente de Piaget, Vigotski e Bruner sobre o desenvolvimento cognitivo da criança trouxeram grande contribuição em estudos posteriores sobre o desenvolvimento musical infantil.

Dessa forma, as últimas décadas do século XX presenciaram avanços nos estudos sobre a aprendizagem de música, oriundos de áreas como a psicologia cognitiva musical, neuropsicologia, psicobiologia e neurociências. Pesquisadores como Flohre Hodges (2006Flohr, J. W.; Hodges, D. (2006). Music and Neuroscience. In: Colwell, R.; Richardson, C. (Orgs.). The new handbook of research on music teaching and learning(pp. 991-1008). New York: Oxford University Press.); Flohr (2010)Flohr, J. W. (2010). Best Practices for Young Children’s Music Education: Guidance From Brain Research. General Music Today, 23, 13-19.; Muszkat (2012Muszkat, M. (2012). Música, neurociência e desenvolvimento humano. In: Jordão, G.; Allucci, R. R.; Molina, S.; Terahata, A. M. (Orgs.), A Música na Escola. Brasília: Ministério da Cultura e Vale, 67-69.) e Schlaug, Norton, Overy e Winner (2005Schlaug, G., Norton, A.; Overy, K.; Winner, E. (2005). Effects of Music Training on the Child's Brain and Cognitive Development. Annals of the New York Academy of Sciences, 1060, 219-230.) mostraram os efeitos da música no desenvolvimento cerebral infantil a partir de mudanças cerebrais e estruturais ocasionadas pela estimulação musical na infância.

Nesse sentido, destaca-se que a aprendizagem musical deve ocorrer precocemente, em especial na Educação Infantil, período de maior oportunidade de desenvolvimento cognitivo musical de uma criança (Tormin, 2014Tormin, M. C. (2014). Dubabi Du: uma proposta de formação e intervenção musical na creche. Tese de Doutorado, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo.). Beyer (2003Beyer, E. (2003). A interação musical em bebês: algumas concepções. Revista do Centro de Educação, 28(2), 87-98., 2008Beyer, E. (2008). A importância da interação no desenvolvimento cognitivo musical: um estudo com bebês de 0 a 24 meses. In: Medeiros, B. R.; Nogueira, M. (Orgs.), Anais do SIMCAM4 - IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais (pp. 271-276). São Paulo: USP.) enfatiza a importância de o bebê ser exposto às atividades musicais de forma organizada e recorrente, o que possibilita o desenvolvimento em seu todo, quer seja nas habilidades psicomotoras, cognitivas (memória e atenção), quanto afetivas.

No entanto, a prática de uma musicalização infantil está muito aquém do que se poderia ter em contextos infantis, principalmente pela falta de formação musical do educador que atua nesses espaços escolares. Nogueira (2005Nogueira, M. A. (2005). Música e Educação Infantil: possibilidades de trabalho na perspectiva de uma Pedagogia da Infância. In: Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação (Org.), Anais da 28ª Reunião Anual da Anped. Caxambu/MG.) e Godoi (2011Godoi, L. R. (2011). A importância da Música na Educação Infantil. Trabalho de Conclusão do Curso de Pedagogia, Universidade Estadual de Londrina, Londrina/PR.) apontam que a pesquisa e a inserção da música nos ambientes de educação básica e nos contextos infantis ainda é incipiente devido ao fato da Educação Musical, normalmente, ter um sentido ornamental, pouco substantivo ou tratada de forma pouco científica, nos meios acadêmicos. Isso reflete a carência ou ausência de formação musical dos professores de Educação Infantil oriundos dos cursos de Pedagogia, bem como da falta de planejamento pedagógico musical para as atividades musicais realizadas nos espaços de Educação Infantil.

Contudo, Broock (2007Broock, A. M. V. (2007). A influência da música no comportamento de crianças participantes do projeto de musicalização para bebês na UFBA. In: Santiago, D.; Bordini, R. (Orgs.), Anais do 3º SIMCAM. III Simpósio de Cognição e Artes Musicais, Salvador(pp. 651-656). Salvador: EDUFBA.), Reigado et al. (2011Reigado, J. P.; Rocha, A. R.; Rodrigues, H. (2011). Vocalizations of infants (9-11 months old) in response to musical and linguistic stimuli. International Journal of Music Education,29(3), 241-255.) evidenciam as mudanças efetivadas nas últimas décadas em relação aos rumos da aprendizagem musical na primeira infância, graças a investigadores como Jonh Sloboda, Sandra Trehub, Laurel Trainor, W. Jay Dowling, David Hargreaves e Edwin Gordon, que têm fomentado novos recursos pedagógicos para a formação de educadores, por meio de atividades musicais no âmbito da orientação musical para bebês e crianças pré-escolares. Em acréscimo, Ilari e Broock (2013Ilari, B.; Broock, A. (2013).Música e educação infantil. Campinas: Papirus.) argumentam que as atividades de desenvolvimento musical na primeira infância têm repercussões positivas nas práticas pedagógicas em Instituições Infantis, o que pode ser observado pela maior preocupação de professores de música e de educadores em desenvolverem projetos que incluam a música na Educação Infantil.

Considerando a importância da linguagem musical para o desenvolvimento da criança, deve-se vislumbrar como o ensino de música tem se apresentado nos contextos educacionais brasileiros. Os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN (Brasil, 1998aBrasil. Secretaria de Educação Fundamental (1998a). Parâmetros Curriculares Nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Brasília: MEC/SEF.) mencionam a importância da música sempre estar associada às tradições e às culturas de cada época. Por outro lado, o Referencial Curricular Nacional de Educação Infantil (Brasil, 1998bBrasil. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental (1998b). Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Brasília: MEC/SEF .), recomenda a Iniciação Musical e dá ênfase à escolha do repertório, que se constitui numa das possibilidades do professor para ampliar a visão (e a audição) do mundo do aluno. Ressalta-se que a música deve ser de boa qualidade, variando desde Música Popular Brasileira, músicas folclóricas, cantigas de roda, regionais até eruditas. O trabalho com música na educação infantil tem como objetivos gerais despertar a sensibilidade, o raciocínio lógico, a expressão corporal das crianças; a linguagem musical organiza o som e o silêncio, permitindo à criança conseguir ouvir e diferenciar sons, ritmos e alturas, identificando que um som pode ser grave ou agudo, curto ou longo, forte ou suave.

Ainda em termos de legislação relativa à Educação Musical, tem-se a Lei 11.769 (2008Brasil. (2008). Lei nº11. 769, de 18 de agosto de 2008. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação, para dispor sobre a obrigatoriedade do ensino da música na educação básica. Brasília/DF.), que dispõe sobre a obrigatoriedade do ensino da música na educação básica. Nesse sentido, é importante pontuar o grande espaço e as possibilidades de expansão desse ensino, nos diferentes níveis de escolarização nacional. Segundo Souza (2010Souza, J. (2010). Arte no Ensino Fundamental. Anais do I Seminário Nacional: Currículo em Movimento - Perspectivas Atuais (pp. 1-19). Belo Horizonte, MG: MEC.), a lei a supracitada não é exclusiva do ensino curricular de Arte, quando altera o Artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Brasil, 2008Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica (2018). Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC.). Tal alteração foi de difícil tramitação e sua aprovação foi considerada por muitos educadores musicais como um avanço, devido à possibilidade de implantação efetiva do ensino de música nas escolas, de modo abrangente para crianças e adolescentes. Entretanto, a autora aponta a necessidade de formação dos professores, o que demanda, entre outros, esforços governamentais e das universidades para o oferecimento de novas modalidades de formação.

Recentemente, as novas orientações da Base Nacional Comum Curricular (BNCC/2018Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica (2018). Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC.) abrem possibilidades para novas ações, planejamentos curriculares e formação de professores, ao considerar a importância da musicalização no Campo da Experiência “Traços, Sons, Cores e Formas”, bem como do movimento no Campo da Experiência “Corpo, Gestos e Movimentos” (Brasil, 2018Broock, A. M. V. (2007). A influência da música no comportamento de crianças participantes do projeto de musicalização para bebês na UFBA. In: Santiago, D.; Bordini, R. (Orgs.), Anais do 3º SIMCAM. III Simpósio de Cognição e Artes Musicais, Salvador(pp. 651-656). Salvador: EDUFBA., pp. 45-46). Todavia, apesar das exigências legais, há muito a se fazer em relação à formação musical do profissional que atua na Educação Infantil.

Sabe-se da fragilidade desse profissional em termos de formação musical, o que o que acarreta a inserção da música como uma forma de recreação e de cunho superficial. Portanto, os problemas oriundos da não formação musical das professoras que atuam na educação infantil são relevantes, devido ao desconhecimento do processo como se dá a aprendizagem e desenvolvimento musical infantil, principalmente em suas fundamentações metodológicas e científicas.

Desse modo, o objetivo do presente estudo é avaliar duas alternativas de formação de professores da educação infantil, a partir da elaboração de duas propostas de diferentes concepções teórico-metodológicas. Para a avaliação foi utilizada a Escala de Empenho do Educador (Laevers, 1994Laevers, F. (1994). The Leuven Involvement Scale for Young Children. Belgium: Centre for Early Childhood & Primary Education.), em dois contextos geográficos distintos, em Uberlândia/MG e São Paulo/SP. O estudo se justificou pela importância da capacitação em serviço dos profissionais atuantes em contextos infantis, no que respeita à compreensão e possibilidades de uso da educação musical infantil para o desenvolvimento das crianças pequenas.

Método

O trabalho ora relatado envolveu dois procedimentos metodológicos distintos, embora os instrumentos de coleta tenham sido os mesmos nos estudos identificados como Estudo 1 e Estudo 2.

Estudo 1

Participantes

O Estudo 1 foi realizado em quatro instituições infantis que atendem crianças de estratos econômicos desfavorecidos e são administradas por uma organização não governamental-ONG, localizadas em Uberlândia, Minas Gerais. Participaram da pesquisa cinco professoras sem formação específica ou conhecimentos sobre a linguagem musical e atuantes com crianças na faixa etária de três a cinco anos de idade.

Instrumentos

  • Escala de Empenho do Educador (Laevers, 1994Laevers, F. (1994). The Leuven Involvement Scale for Young Children. Belgium: Centre for Early Childhood & Primary Education.), que avalia a qualidade da interação do educador junto às crianças. Para tanto, se fundamenta em três conceitos identificados por sensibilidade, estimulação e autonomia, que são elencados numa escala de cinco pontos, que deve ser preenchida pelo pesquisador; o ponto 5 (cinco) representa um estilo de empenho total e o ponto 1 (um) representa a ausência total de empenho (Pascal & Bertram, 2009Pascal, C.; Bertram, T. (2009). Listening to young citizens: the struggle to make real a participatory paradigm in research with young children. European Early Childhood Education Research Journal, 17(2), 249-262.). De maneira resumida, sensibilidade se relaciona às atitudes de encorajamento do adulto no seu contato com a criança; a estimulação refere-se ao modo como estimula o diálogo, a atividade ou o pensamento da criança e, autonomia se consolida no encorajamento para a solução de conflitos e outras tomadas de decisão pela criança.

  • CDs gravados com sons e músicas instrumentais e vocais, instrumentos musicais infantis e bandinha rítmica.

  • Materiais lúdicos confeccionados para a capacitação dos professores.

  • Doze oficinas de capacitação, no formato de um curso de extensão de 100 horas, para a formação dos professores.

  • Vídeo gravações dos comportamentos dos professores antes e após a intervenção. As vídeo gravações foram transcritas com o fim de avaliação e comparação dos comportamentos de empenho emitidos pelas professoras, conforme descrito na Ficha de Observação de Empenho abaixo (Bertram e Pascal, 2009Bertram, T.; Pascal, C. (2009). Manual DQP- Desenvolvendo a Qualidade em Parcerias. Lisboa: Ministério da Educação/Direcção-Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular., p. 148).

Procedimentos

O projeto foi submetido à aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de Uberlândia e obteve parecer favorável para a sua realização, por meio do protocolo 129/10. A proposta envolveu os seguintes procedimentos metodológicos:

  • Seleção das instituições participantes. A seguir, foi realizada reunião com os diretores, professores para a seleção dos participantes (professores), além do esclarecimento sobre a proposta e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

  • Aplicação da Escala de Empenho do Adulto.

  • Elaboração e execução de um curso de formação inicial em Música para os professores, com 100 horas de duração.

  • Após o curso, os professores foram acompanhados pela equipe de pesquisadores durante cerca de dois meses, num total de cinco sessões de 90 minutos cada, com vistas a auxiliar na fixação dos conceitos trabalhados no curso e no planejamento da inserção de atividades musicais nas rotinas educacionais.

  • Reaplicação da Escala de Empenho do Adulto.

Estudo 2

Participantes

O Estudo 2 foi realizado em uma instituição infantil pública, localizada em São Paulo, capital, que é apoiada academicamente por um grupo de estudos já consolidado de uma Instituição de Ensino Superior pública paulista. Participaram da pesquisa quatro professoras sem formação específica ou conhecimentos sobre linguagem musical e atuantes com crianças na faixa etária de seis meses a cinco anos de idade.

Instrumentos

Os mesmos utilizados no Estudo 1.

Procedimentos

  • Aplicação das Escalas de Empenho do Educador.

  • Elaboração e execução de um curso de formação inicial em Música para os professores, com 60 horas de duração; o curso foi fundamentado na etapa de audiação preparatória da Teoria de Aprendizagem Musical - MLT de Gordon (2000Gordon, E. E. (2000). Teoria da Aprendizagem Musical Para Recém-Nascidos e Crianças em Idade Pré - Escolar. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.), com ênfase na compreensão do processo de aprendizagem musical.

  • Reaplicação das Escalas de Empenho do Adulto.

Resultados

Estudo 1

Os resultados foram avaliados de acordo com os escores que variam entre os níveis de 1 a 5 e se referem aos indicadores de qualidade da interação expressos nos comportamentos de sensibilidade, estimulação e autonomia. Conforme orientação de Laevers (1994Laevers, F. (1994). The Leuven Involvement Scale for Young Children. Belgium: Centre for Early Childhood & Primary Education.), cada nível tem características diferenciadas, de acordo com a tabela1, a seguir.

Tabela 1
Caracterização do Empenho do Professor, segundo Laevers (1994) Laevers, F. (1994). The Leuven Involvement Scale for Young Children. Belgium: Centre for Early Childhood & Primary Education.

No Estudo 1, os dados oriundos da aplicação da Escala de Empenho nas professoras antes e após a intervenção estão expressos na tabela 2, a seguir.

Tabela 2
Empenho das professoras A, B, C, D e E antes e após a intervenção observada nas categorias sensibilidade, estimulação e autonomia

Desse modo, se observa que antes da intervenção as professoras A, B e C tiveram nível 1, o que representa comportamentos de muito baixo empenho e estes foram ausentes após a intervenção. Em quatro professoras houve uma melhora na performance, no sentido de alcançar níveis mais altos de empenho, com exceção da professora E, que relatou estar bastante desmotivada com o seu trabalho, lançando várias críticas à rigidez da rotina institucional, em especial a de ter o planejamento sempre atrelado às datas comemorativas.

Em relação à intervenção, embora tenha havido a confecção de vários materiais e se priorizado a importância do conhecimento de alguns elementos presentes na linguagem musical, como as propriedades do som, além de formas de se implementar tais conteúdos junto às crianças e também de se oferecer um apoio após o curso, no sentido de planejar junto às pesquisadoras, as atividades que poderiam ser inseridas para fomentar a música, os dados mostram que foram tímidas as mudanças no empenho das professoras. Provavelmente, por não terem internalizado efetivamente os conteúdos trabalhados e por não se sentirem plenamente apoiadas para efetuarem alterações no cotidiano de suas práticas junto às crianças, haja vista as contínuas queixas acerca das rotinas pouco flexíveis a que se submetem.

Vale mencionar que embora o curso tenha sido organizado com uma multiplicidade de materiais, não se fundamentou em nenhuma abordagem acerca do desenvolvimento musical, como por exemplo, a Teoria de Aprendizagem Musical - MLT de Gordon (2000Gordon, E. E. (2000). Teoria da Aprendizagem Musical Para Recém-Nascidos e Crianças em Idade Pré - Escolar. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.). Tal abordagem foi explorada no Estudo 2.

Estudo 2

No que respeita ao empenho das professoras A, B, C e D relativos ao Estudo 2, a tabela 3mostra a performance destas antes da intervenção, tendo os dados sido colhidos por meio da aplicação da Escala de Empenho do Educador de Laevers (1994Laevers, F. (1994). The Leuven Involvement Scale for Young Children. Belgium: Centre for Early Childhood & Primary Education.), que avalia os parâmetros sensibilidade, estimulação e autonomia.

Tabela 3
Empenho das professoras A, B, C, D antes e após a intervenção observada nas categorias sensibilidade, estimulação e autonomia

Os dados indicaram que antes da intervenção o empenho das professoras nas três categorias se deu, predominantemente, nos níveis 3, 4 e 5. Entretanto, houve atividades nos níveis 1 e 2 que indicam baixa sensibilidade, estimulação e autonomia do professor. Em termos de atividades musicais rotineiras tem-se que, embora presentes, os dados obtidos pela observação e análise das filmagens indicam que foram abordadas de modo desarticulado, sem sequenciamento e planejamento. Nesse sentido, a utilização da música se deu como pano de fundo de outras atividades. Portanto, apesar dos bons resultados, esse tipo de prática sugere não apresentar fatores que levem a uma aprendizagem musical em termos de desenvolvimento de habilidades e competências musicais, conforme orientações de Gordon na etapa de audiação preparatória. Entre esses fatores se destacam: respostas musicais (rítmicas ou tonais) das crianças por meio dos movimentos coordenados com a respiração; pela consciência do que ouve e responde musicalmente, demonstrando os conteúdos musicais já internalizados, além de fatores não verbais que demonstram estar ou não a criança envolvida e movida por uma expressão musical, como gestos, o olhar, o movimento corporal, o fluxo, a respiração, a atenção e envolvimento.

A intervenção contemplou a formação musical das professoras, com ênfase no conhecimento das fases do desenvolvimento musical infantil, segundo a MLT de Gordon, que vai desde (e mesmo antes) do nascimento e, gradativamente, avança pelos estágios de audiação preparatória, dados pelas etapas de aculturação, imitação e assimilação. A partir dos pressupostos de Gordon (2000), que relaciona o aprendizado de música com o da língua materna, sendo esta análoga ao modo como se aprende a linguagem musical, foi possível estabelecer um ponto de partida compreensível no processo de alfabetização musical.

O curso foi estruturado na modalidade presencial e a distância totalizando 60 horas. O curso presencial foi realizado semanalmente em 10 módulos de 3h30min na Instituição de Ensino Superior, em São Paulo. Na modalidade à distância, as orientações musicais foram complementadas com atividades enviadas e respondidas por e-mail, semanalmente e tinham como objetivo dar sustentação e reforço aos encontros presenciais, complementando-os.

Após a intervenção, a escala de Empenho do Educador (Laevers, 1994Laevers, F. (1994). The Leuven Involvement Scale for Young Children. Belgium: Centre for Early Childhood & Primary Education.) foi reaplicada, com vistas a avaliar o impacto nos resultados após o curso de formação musical às professoras. A tabela 3 mostra que as professoras alcançaram, em todos as categorias de empenho, resultados a partir do nível 3, condizentes com padrões mais positivos, sendo inexistentes, nesta etapa, indicadores relativos ao baixo empenho, representados pelos níveis 1 e 2. Tais dados indicam mudanças na prática das professoras em compreender o processo de aprendizagem musical e principalmente, no modo como integrar as atividades musicais continuamente, considerando o planejamento da instituição infantil em questão.

Discussão

Os dois estudos aqui relatados apresentaram metodologias aparentemente semelhantes, ou seja, durante as atividades musicais, antes e depois da intervenção, foram observados aspectos semelhantes nas duas propostas, como: o uso dos elementos musicais (ritmo, melodia), explorando as propriedades do som - duração sonora, altura (grave e agudo), intensidade (fraco e forte), timbre (diferenciação sonora); audição e imitação de músicas infantis e folclóricas; cantar e se movimentar com a música, canções e jogos infantis, jogos e brincadeiras musicais, entre outras. Todas essas atividades utilizam os elementos musicais e estão contidas nas metodologias de ensino de música infantil, principalmente dos pedagogos musicais mais conhecidos e divulgados nos meios de educação musical infantil, como Dalcroze (metodologia com foco no movimento), Zoltán Kodály (ênfase no uso da voz); Willems (ênfase na educação auditiva), Carl Orff (uso dos instrumentos musicais, dos sons e voz em movimento, ritmos com gestos corporais); Suzuki (ênfase na repetição e memorização) (Reigado, Rocha, & Rodrigues, 2011Reigado, J. P.; Rocha, A. R.; Rodrigues, H. (2011). Vocalizations of infants (9-11 months old) in response to musical and linguistic stimuli. International Journal of Music Education,29(3), 241-255.), entre outros grandes educadores musicais do século XX que trazem sugestões de atividades musicais, bem como materiais pedagógicos musicais (impressos e em mídia) para serem utilizados com as crianças.

Fazendo um paralelo entre os dois estudos, o Estudo 1 utilizou várias dessas atividades citadas acima para a formação das professoras durante as oficinas. Não especificamente determinado método, mas atividades musicais contidas nessas metodologias. O Estudo 2 não utilizou especificamente nenhuma metodologia, mas os princípios de uma teoria de aprendizagem musical (Gordon, 2000Gordon, E. E. (2000). Teoria da Aprendizagem Musical Para Recém-Nascidos e Crianças em Idade Pré - Escolar. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.) na fase preparatória, destinada aos recém-nascidos e crianças pré-escolares, com bases psicológicas e sequencial dos processos envolvidos no ato de ouvir e desenvolvimento infantil, sustentados em estudos neuropsicológicos.

No Estudo 2, a orientação e formação das professoras não foram direcionadas à utilização de atividades prontas que se aprende no curso e depois são feitas com as crianças, já que se acredita que esse tipo de formação não leva à transformação da prática do professor, pois apenas informa sobre outras possibilidades de atividades musicais com as crianças, mas que logo caem no esquecimento. Muitos cursos de formação continuada têm ainda esse perfil, mas que parece ser insuficiente para provocar mudanças qualitativas, necessitando ser revistos pelos órgãos responsáveis por esse tipo de programa educacional.

Assim, a formação musical no Estudo 2 deu ênfase em como utilizar os elementos musicais ou as atividades sugeridas nas várias metodologias, de uma forma consciente que mobilizou as professoras a compreenderem como as crianças aprendem música e como se dá o processo sequencial em cada fase do desenvolvimento. Por exemplo, saber lidar com o balbucio do bebê ou as respostas musicais das crianças a partir da estimulação musical consciente e planejada das professoras e reconhecer nessa etapa uma sequência de aprendizagem. No entanto, para que isso ocorra, é preciso compreender como conduzir a aprendizagem musical com constância e continuidade do processo (Rodrigues, 2005Rodrigues, H. (2005). A festa da Música na iniciação à vida: da musicalidade das primeiras interacções humanas às canções de embalar.Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas , 17, 61-81., 2009Rodrigues, H. (2009). Investigação, Formação, Criação Artística e Serviço à Comunidade no estudo do desenvolvimento musical na infância e primeira infância. Cadernos de Educação de Infância, 87, 17-24.).

É possível que a forma de se conceber a aprendizagem musical como um processo sequencial, dinâmico, interativo e mediático, por parte dos pais e professores de educação infantil seja um dos entraves e desafios a serem enfrentados. Saber como uma criança aprende música está bem próximo de como uma criança aprende a língua materna (Gordon, 2000Gordon, E. E. (2000). Teoria da Aprendizagem Musical Para Recém-Nascidos e Crianças em Idade Pré - Escolar. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian., 2011Gordon, E. E. (2011). Roots of Music Learning Theory and audiation. Chicago, USA: Gia Publications.).

Além da própria organização do curso ministrado às professoras, vale reforçar, conforme já foi anteriormente mencionado, que a instituição do Estudo 2mantém uma efetiva parceria com uma universidade pública paulista, participando de um grupo fortemente estruturado, com pesquisadores nacionais e internacionais e que tem nesse projeto de extensão, o objetivo de avaliar e difundir novas metodologias para a qualidade do ensino infantil.

Isso posto, é importante destacar que no Estudo 1, embora tenha se dado ênfase ao empenho do adulto nas atividades a serem desenvolvidas junto às crianças, além da própria inserção do conteúdo de música, houve comentários positivos acerca do curso, conforme se depreende da fala da professora B: “Com certeza, me tornei uma pessoa com uma visão mais ampla em relação à musicalização na sala de aula. Estou aprendendo a contar história, coisa que não gostava antes... Aprendi a gostar mais de minha profissão.”

Entretanto, foi possível constatar entre as professoras do Estudo 1 uma dificuldade de compreensão do que poderia ser feito no dia a dia com as crianças, que atrelada a uma aparente falta de recursos internos (conhecimento sobre o tema) e externos (falta de apoio institucional), acabam por manter a rigidez das rotinas institucionais. Desse modo, é importante questionar em até que ponto formatos de capacitações isoladas, mesmo que bem cuidadas do ponto de vista didático e de conteúdo, são eficientes para alterações no dia a dia da instituição infantil.

Em contrapartida, no Estudo 2, antes de ser finalizado o curso de formação musical, houve uma importante ação realizada na instituição, que indicou mudanças na rotina das crianças e na forma de conceber a importância da linguagem musical no desenvolvimento infantil. Foi criada uma sala de música destinada apenas ao trabalho de musicalização que teve a participação de toda comunidade escolar. Essa iniciativa trouxe novas possibilidades de oferecer às crianças uma maior gama de atividades com música, favorecendo e ampliando o seu enriquecimento musical.

Nesse sentido, quando a música é oferecida na linguagem própria da criança, como, por exemplo, um bebê que balbucia ou uma criança que canta, respeitando sua forma de conhecer o mundo, os sons, dando oportunidade para que ela responda a tais convites de expressões musicais, esta terá condições de dispor de estruturas musicais para criar e não apenas imitar, conforme alertam Bruner (1976Bruner, J. A. (1976). O processo da educação. São Paulo: Nacional.) e Gordon (2000Gordon, E. E. (2000). Teoria da Aprendizagem Musical Para Recém-Nascidos e Crianças em Idade Pré - Escolar. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.) sobre a construção de estruturas cognitivas de aprendizagem.

Além disso, foi possível observar no Estudo 2 que as atividades musicais intensificaram-se em número e qualidade após a intervenção, tendo passado da simples exploração de objetos sonoros e de músicas colocadas na hora de dormir para atividades melhor planejadas em sua função musical, como: estimulação do balbucio musical, uso da voz cantada, comunicação não verbal (olhar, gesto, toques); cantar para os bebês e crianças pequenas com uso das canções sem palavras (sílaba neutra); cantos rítmicos e entoados; audição diferenciada de estilos de músicas contrastantes, fragmentos musicais com variedade tímbrica; períodos de som e silêncio, tom de repouso; uso semanal da sala de música para a realização dessas atividades, entre outras. Todas essas atividades citadas estão presentes na orientação dada por Gordon, destinada principalmente aos pais e professoras de educação infantil, que são os primeiros mediadores musicais das crianças.

Portanto, mudanças foram perceptíveis na condução e planejamento das atividades musicais na instituição, que passaram a compor um novo quadro de possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento musical, analisadas com a perspectiva da MLT de Gordon, em especial na etapa de audiação preparatória. É importante ressaltar que isto só foi possível pela colaboração e participação não só das professoras, mas também da gestora e supervisora pedagógica. Houve um envolvimento e mobilização de todos propiciando mudanças significativas.

Em termos das diferenças observadas entre os dois estudos pode-se dizer que se deram prioritariamente pela concepção sobre a aprendizagem e desenvolvimento musical infantil e não pela utilização dos elementos musicais, atividades ou metodologias do ensino de música. Nesse sentido, o primeiro estudo está mais voltado a uma interação musical, que é uma prática comum nas Instituições de Educação Infantil, assumindo um caráter de recreação, em que a música se constitui apenas como pano de fundo para outras atividades, como por exemplo, em datas comemorativas etc. Já no segundo estudo a interação musical existe, mas tem como ênfase a aprendizagem e desenvolvimento musical, a partir de uma sequência e orientação musical preconizadas na MLT de Gordon (2000Gordon, E. E. (2000). Teoria da Aprendizagem Musical Para Recém-Nascidos e Crianças em Idade Pré - Escolar. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.).

É importante destacar que esse processo de formação de modo contínuo e colaborativo pareceu habilitar as professoras do Estudo 2 a serem mais autônomas em suas ações musicais com as crianças, provavelmente por se sentirem apoiadas e não apenas cumprindo atividades previamente definidas pelo calendário de datas comemorativas, algo que era rotineiro no contexto das professoras do Estudo 1. Vale realçar que, apesar da ênfase dada nas oficinas e nas reuniões de acompanhamento com as professoras do Estudo 1 sobre a importância de se agregar a música aos conteúdos pedagógicos, percebeu-se certa teatralidade na forma como conduziram com as crianças as atividades observadas após as oficinas, cujas vídeogravações demonstram que inseriam conteúdos musicais previamente ensaiados e, muitas vezes, totalmente descontextualizados com o desenvolvimento musical das crianças.

Os resultados do Estudo 1 corroboram as ideias de Joly (1998Joly, I. Z. L. (1998). Musicalização infantil na formação do professor: uma experiência no curso de Pedagogia da UFSCAR. Associação Brasileira de Educação Musical, Série Fundamentos, 4, 158-161.), Figueiredo (2005Figueiredo, S. L. (2005). Educação musical nos anos iniciais da escola: identidade e políticas educacionais. Revista da Abem,12, 21-29.), entre outros, que evidenciam o uso da música, principalmente, para comemorações de dias festivos, aprendizagem de outras disciplinas e como forma de manter comportamentos rotineiros. Além disso, os elementos apontados por Nogueira (2005Nogueira, M. A. (2005). Música e Educação Infantil: possibilidades de trabalho na perspectiva de uma Pedagogia da Infância. In: Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação (Org.), Anais da 28ª Reunião Anual da Anped. Caxambu/MG.), que desencadeariam a desvalorização do ensino da música nos contextos escolares, também foram encontrados, como: tradicional depreciação das expressões artísticas no ambiente escolar, a incipiente formação e o despreparo dos docentes, a falta de espaço e de materiais adequados, entre outras.

É possível sugerir que uma formação musical inicial ou continuada trata-se de um processo de construção. Tal processo envolve a parceria e colaboração entre as instituições envolvidas, cuja finalidade é assegurar uma melhor qualidade no ensino e aprendizagem musical na infância.

Considerações Finais

Por meio deste estudo foi possível apresentar duas possibilidades distintas de formação musical continuada para o professor que atua na Educação Infantil, principalmente da rede pública. A partir dos resultados, acredita-se que a primeira, contida no Estudo 1, está voltada a uma formação que utiliza a interação musical como forma de inserção da linguagem musical nos contextos infantis, mas sem o foco na aprendizagem musical. Por outro lado, o Estudo 2 está direcionado a uma formação musical que utiliza aspectos da MLT de Gordon (2000Gordon, E. E. (2000). Teoria da Aprendizagem Musical Para Recém-Nascidos e Crianças em Idade Pré - Escolar. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.) que traz uma sequência de atividades organizadas para cada fase do desenvolvimento infantil.

Nesse sentido, a despeito de todo o trabalho envolvido na elaboração das atividades e no acompanhamento das professoras tem-se que o Estudo 1 se constitui numa prática mais comum e difundida em cursos e oficinas musicais esporádicas. O Estudo 2 apresenta uma proposta ainda pouco difundida no Brasil, porém com possibilidade de contribuir efetivamente para a formação musical de professores atuantes na Educação Infantil (Tormin, 2014Tormin, M. C. (2014). Dubabi Du: uma proposta de formação e intervenção musical na creche. Tese de Doutorado, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo.; Mariano, 2015Mariano, F. L. R. (2015). Música no berçário: Formação de professores e a Teoria da Aprendizagem Musical de Edwin Gordon. Tese de Doutorado, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Contudo, novos estudos são necessários para validar a adequação de uma ou outra proposta nos contextos pertinentes.

Um dos entraves para que as crianças possam ter o direito de ter uma aprendizagem musical efetiva está principalmente no fato do despreparo do professor. Espera-se que este trabalho, aliado às legislações vigentes e às novas orientações da BNCC/18 para a Educação Infantil, possa contribuir com subsídios para novas ações de natureza formativa.

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  • Apoio: FAPEMIG

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    04 Jan 2018
  • Aceito
    01 Maio 2018
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