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Sentido pessoal, atividade de estudo e educação artística: um estudo de caso

Sentido personal, actividad de estudio y educación artística: un estudio de caso

Resumo

Investigou-se o processo de atribuição de sentido pessoal à atividade de estudo, especificamente às atividades artísticas desenvolvidas na disciplina de artes. Realizou-se uma pesquisa de campo em um 5o ano de uma escola pública municipal por meio de observações das aulas e entrevistas com alunos(as). Tomou-se como unidade de análise a relação entre o motivo da atividade de estudo e as ações de estudo, categorizando-se os motivos em pragmáticos e vinculados à liberdade de expressão e as ações em ações de organização pedagógica, de ajuda, de valorização do trabalho discente e coletivas. As crianças buscavam estabelecer relações com conhecimentos aprendidos e responsabilizavam-se pelas tarefas. Constatou-se que há um processo de atribuição de sentido pessoal transformador e que a organização pedagógica das professoras produz sucesso escolar: incentivavam a colaboração entre os colegas, fomentavam o trabalho coletivo, organizavam ações de estudo, o que traz princípios didáticos para a organização do ensino desenvolvimental.

Palavras-chave:
Psicologia histórico-cultural; arte-educação; aprendizagem escolar

Resumen

Se investigó el proceso de atribución de sentido personal a la actividad de estudio, específicamente a las actividades artísticas desarrolladas en la asignatura de artes. Se realizó una investigación de campo en un 5o curso de una escuela pública municipal por intermedio de observaciones de las clases y entrevistas con alumnos/as. Se tomó como unidad de análisis la relación entre el motivo de la actividad de estudio y las acciones de estudio, categorizándose los motivos en pragmáticos y vinculados a la libertad de expresión y las acciones en acciones de organización pedagógica, de ayuda, de valoración de la labor discente y colectivas. Los niños buscaban establecer relaciones con conocimientos aprendidos y se responsabilizaban por las tareas. Se constató que hay un proceso de atribución de sentido personal transformador y que la organización pedagógica de las profesoras produce éxito escolar: incentivaban la colaboración entre los compañeros, fomentaban la labor colectiva, organizaban acciones de estudio, lo que trae principios didácticos a la organización de la enseñanza y desarrollo.

Palabras clave:
Psicología Histórico-Cultural; arte-educación; aprendizaje escolar

Abstract

The research had investigated the process of assigning personal meaning to the activity of study, specifically to the artistic activities developed in the artistic subject. The field survey had carried out in a 5th year of a municipal public school through classroom observations and interviews with students. The relationship between the motive of the study activity and the study actions had taken as a unit of analysis, categorizing the motives into pragmatics and linked to freedom of expression and the actions in actions of pedagogical organization, of aid, of valorization of the student and collective work. The children sought to establish relationships with learned knowledge and to take responsibility for their tasks. It had verified that there is a process of attribution of transforming personal meaning and that the pedagogical organization of the teachers produces scholastic success: they encouraged the collaboration among the colleagues, they fomented the collective work, and they organized study actions, which brings didactic principles for the organization of the developmental teaching.

Keywords:
Historical-Cultural Psychology; art education; school learning

Introdução

O objetivo deste trabalho é investigar como ocorre o processo de atribuição de sentido pessoal1 1 No caso deste trabalho, tomam-se como referência os conceitos de sentido pessoal e de significado social compreendido a partir da unidade dialética entre a atividade humana e a consciência (Leontiev, 1983). O sentido pessoal expressa a relação subjetiva que o sujeito estabelece com os significados sociais e com as atividades humanas. Assim, nosso ponto de partida é a compreensão de que o sentido pessoal é produzido na relação com a atividade humana e, portanto, para que os sentidos pessoais possam ser analisados torna-se essencial compreendê-los a partir da estrutura da atividade humana. Em artigo anterior (Mendonça & Asbahr, 2018), analisamos as diversas conceituações de sentido no âmbito da teoria histórico-cultural. à atividade de estudo de estudantes do ensino básico público, especificamente o sentido atribuído às atividades educativas desenvolvidas na disciplina educação artística.

Tomamos como referencial a psicologia histórico-cultural, cujos principais representantes são Vigotski, Leontiev e Luria, mas focando os conceitos da teoria da atividade (Leontiev, 1983Leontiev, A. (1983). Actividad, conciencia e personalidad. Habana: Pueblo y Educación.; Davidov, 1988Davidov, V. (1988). La enseñanza escolar y el desarrollo psíquico: investigación teórica y experimental.Moscu: Progresso.) como centrais a este trabalho2 2 Defendemos que, embora existam diferenças significativas entre as obras de Vigotski e Leontiev, há continuidade e complementaridade na proposição destes autores (Asbahr, 2011). Concordamos com Zinckenko (2006) em sua afirmação de que não podemos falar de duas escolas psicológicas, mas apenas de duas tendências investigativas. . Segundo essas concepções, a escola é um dos espaços privilegiados de humanização e tem, como especificidade, garantir que os estudantes, desde a mais tenra infância, apropriem-se das bases para desenvolvimento do pensamento teórico (Davidov, 1988Davidov, V. (1988). La enseñanza escolar y el desarrollo psíquico: investigación teórica y experimental.Moscu: Progresso.).

Nesse sentido, a entrada na escola traz profundas transformações ao desenvolvimento infantil. Davidov (1988Davidov, V. (1988). La enseñanza escolar y el desarrollo psíquico: investigación teórica y experimental.Moscu: Progresso.) postula que o ingresso na educação escolar é um momento de transformação muito grande na vida de uma criança, a começar pelo fato de que há uma mudança em seu lugar social. Destacam-se, ainda, as profundas transformações internas, pois a criança começa a assimilar as formas mais desenvolvidas da consciência social. Para que essa apropriação ocorra, é necessária a realização, pelas crianças, de um tipo específico de atividade, a atividade de estudo (Davidov, 1988Davidov, V. (1988). La enseñanza escolar y el desarrollo psíquico: investigación teórica y experimental.Moscu: Progresso.), que tem como especificidade a constituição de neoformações psicológicas tais como a consciência e o pensamento teórico.

Dessa forma, o conteúdo fundamental da atividade de estudo são os conhecimentos teóricos: “... é a assimilação dos procedimentos generalizados de ação na esfera dos conceitos científicos e as mudanças qualitativas no desenvolvimento psíquico da criança que ocorre sobre esta base” (Davidov & Markova, 1987Davydov, V.; Márkova, A. (1987). La concepcion de la actividad de estudio de los escolares. In Davydov, V.; Shuare, M. (Eds.), La psicologia evolutiva y pedagogia en la URSS: antología (pp. 316-337). Moscú: Progresso., p.324, tradução nossa). Ou seja, uma das funções essenciais da escola, segundo a concepção teórica em foco, é garantir a apropriação do conhecimento teórico pelos estudantes e, graças à apropriação desse tipo de conhecimento, desenvolver o pensamento teórico. Segundo Davidov (1988)Davidov, V. (1988). La enseñanza escolar y el desarrollo psíquico: investigación teórica y experimental.Moscu: Progresso., o conteúdo do pensamento teórico é a existência mediatizada, refletida, essencial, que reproduz as formas universais das coisas3 3 Para maior compreensão acerca do desenvolvimento do pensamento teórico ver ;Rosa, Moraes e Cedro (2010). .

Dentre os diferentes tipos e áreas do conhecimento teórico, nosso foco será o desenvolvimento do pensamento estético-artístico. As capacidades de abstração e síntese desenvolvem-se de um modo específico na atividade artística. No processo de produção artístico, parte-se de uma realidade concreta e cria-se uma nova realidade, a realidade artística. Nesse movimento, o desenvolvimento do pensamento teórico é fundamental já que a síntese alcançada, ou seja, a realidade artística obtida, deve contemplar a relação essencial entre os elementos do real e não simplesmente uma representação das diversas características percebidas pelo sujeito, de forma fragmentada.

Vigotski (2001Vigotski, L. S. (2001). Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes.) compara a forma de pensamento proporcionado pela arte com o conhecimento advindo da ciência. Segundo o autor, a arte, da mesma forma que a ciência, possibilita um maior conhecimento da realidade: “A arte difere da ciência apenas pelo seu método, ou seja, pelo modo de vivenciar, vale dizer, psicologicamente” (p. 34).

Davidov (1988Davidov, V. (1988). La enseñanza escolar y el desarrollo psíquico: investigación teórica y experimental.Moscu: Progresso.), em uma análise da formação do pensamento teórico produzido nas disciplinas escolares, denomina algumas delas como pertencentes ao que chama de “ciclo estético”, entre elas a literatura, a música, as artes plásticas, pois estão potencialmente voltadas ao desenvolvimento da consciência estética dos estudantes. O conteúdo fundamental do ensino dessas disciplinas é a assimilação pelas crianças do procedimento geral de percepção e criação da forma artística. Ou, como sintetiza Vigotski (2003)Vigotsky, L.S. (2003). La imaginación y la arte en la infancia. Madrid: Akal., a constituição da atividade criadora.

Entende-se, pois, que a aprendizagem da arte é essencial à formação do pensamento teórico e da atividade criadora. Mas, por outro lado, vemos na realidade escolar um ensino artístico pouco valorizado, pautado muitas vezes no desenvolvimento da coordenação motora ou no espontaneísmo infantil (Barbosa, 1989Barbosa, A. M. (1989). Arte-Educação no Brasil: realidade hoje e expectativas futuras. Estudos Avançados ,3(7), 170-182. doi: 10.1590/S0103-40141989000300010.
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).

Método

Foi realizada uma pesquisa de campo4 4 Aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Faculdade de Ciências (UNESP-Bauru), via Plataforma Brasil. Protocolo no CAAE: 45461115.1.0000.5398. em uma turma de 5o ano de uma escola municipal de ensino fundamental I de uma escola de médio porte no interior paulista. Acompanhamos as aulas de artes ministradas pela professora Bianca5 5 Os nomes são fictícios. durante o segundo bimestre letivo e o início do terceiro bimestre de 2015, por meio de observações participantes (Ezpeleta, 1989Ezpeleta, J. (1989). Pesquisa participante. São Paulo: Cortez.), totalizando a observação de sete aulas de educação artística no 2o bimestre e duas aulas no 3o bimestre. Pudemos observar, ainda, uma aula da professora regular da turma, Angela. As observações foram registradas em diário de campo e posteriormente resultaram em registros ampliados.

Entrevistamos, também, dez estudantes da turma com os objetivos de aprofundar os temas observados em sala de aula e explorar questões particulares de cada criança. As entrevistas abarcaram perguntas sobre a relação da criança com a disciplina artes e com a escola em geral, buscando elucidar os motivos e ações da atividade de estudo e como se relacionam com a escola, com o estudo, com os colegas e com as professoras. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas.

Durante o trabalho de campo foram realizados, também, dois encontros com a professora de artes, Bianca, e a professora da turma, Angela, para que pudéssemos discutir os dados de pesquisa e o andamento do trabalho pedagógico. Nesses encontros, as professoras tiveram acesso à análise prévia dos dados de pesquisa e, de forma colaborativa, participaram das discussões que serão aqui apresentadas.

Na turma acompanhada havia 22 crianças matriculadas, com número equivalente de meninos e meninas, e idade média de 10 anos de idade. Segundo a professora da turma, todas as crianças estavam alfabetizadas e acompanhando os conteúdos do 5o ano, o que pôde ser constatado nas observações de campo: “é uma turma muito boa” (fala da professora Angela em excerto do Registro Ampliado no 4).

Resultados e discussão

Coerente com os princípios metodológicos adotados, nos baseamos no método de análise por unidades indicado por Vigotski (2000Vigotski, L. S. (2000). A construção do pensamento e da linguagem.São Paulo: Martins Fontes.) como método necessário à análise dos fenômenos psicológicos. Ao invés da decomposição em elementos, Vigotski (2000)Vigotski, L. S. (2000). A construção do pensamento e da linguagem.São Paulo: Martins Fontes. postula uma análise que decomponha a totalidade em unidades. Define a unidade como o produto da análise que possui todas as propriedades inerentes ao todo, a parte indecomponível do todo que o explica por representar sua essência.

No caso do objeto desta pesquisa, o processo de atribuição de sentido pessoal à atividade artística, tomaremos como unidade de análise a relação entre o motivo da atividade de estudo e a ação de estudo (Asbahr, 2011Asbahr, F. S. F. (2011). “Por que aprender isso, professora?” Sentido pessoal e atividade de estudo na Psicologia Histórico-Cultural. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. São Paulo.). Segundo Leontiev (1983Leontiev, A. (1983). Actividad, conciencia e personalidad. Habana: Pueblo y Educación.), o sentido é criado na relação entre o motivo da atividade e aquilo para o qual a ação do sujeito está orientada como resultado possível, ou seja, seu fim. Na ação consciente, estão integrados a gênese da atividade (motivo) e o objeto da ação (fim da ação). Na análise do processo de atribuição de sentido pessoal a qualquer atividade, é necessário encontrar os motivos dessa atividade e quais são as ações que correspondem a essa atividade. Observa-se que essa unidade de análise relaciona-se diretamente com a estrutura da atividade e da consciência.

Os motivos expressos pelos estudantes foram categorizados em dois grandes grupos: motivos pragmáticos e motivos vinculados à liberdade de expressão. Os motivos pragmáticos vinculam-se à uma utilidade prática, aprende-se arte porque esta tem alguma finalidade imediata. Segue um excerto de entrevista com as crianças que expressa este tipo de motivo que, em nossa análise, aproxima-se do que Leontiev (1988Leontiev, A. (1988). Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil. In Vigotskii, L. S.; Luria, A. R.; Leontiev, A. N. (Eds.), Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem(5a ed., pp. 59-83). São Paulo: Ícone.) chama de motivos apenas compreensíveis:

Entrevistadora: E para você, assim na sua vida, qual a importância de aprender artes? O que você acha?

Fernanda: Porque às vezes aqui na escola tem essas competições de desenho, agora do grêmio, aí é importante aprender, porque tem essas competições de desenho e pintura, aí a gente pensa e pega igual a professora ensinou aqui. (Excerto da entrevista com Fernanda6 6 Os nomes são fictícios e no caso das crianças foram escolhidos por elas. )

Nesta mesma perspectiva, chama a atenção um episódio que ocorre na 5a aula observada. Neste dia, a professora Bianca deixa uma parte do tempo para que as crianças terminem tarefas de aulas anteriores e na outra parte dá uma aula expositiva dialogada sobre esculturas. Foi uma aula diferente da rotina habitual, em que ocorrem produções artísticas a partir de conceitos artísticos ou temas. As crianças estavam agitadas:

Rodrigo comenta: “Não tem nada pra fazer”. É a segunda criança que reclama disso. Minha hipótese é que entendem a aula de artes como aula de coisas pra fazer... No final da aula, a professora conversa comigo sobre a aula de hoje e diz que as crianças preferem atividades práticas, como pintura ou desenho, mas têm dificuldades em se concentrarem nas discussões ou em aulas mais expositiva. (Excerto Registro Ampliado 5a observação)

Esta concepção utilitária da arte pode ser compreendida historicamente, como vemos em Barbosa (1989Barbosa, A. M. (1989). Arte-Educação no Brasil: realidade hoje e expectativas futuras. Estudos Avançados ,3(7), 170-182. doi: 10.1590/S0103-40141989000300010.
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), que denuncia o pouco espaço para a criação, a apreciação e a história da arte nas aulas de educação artística. Sardelich (2001Sardelich, M. E. (2001). Formação inicial e permanente do professor de arte na educação básica. Cadernos de Pesquisa ,( 114), 137-152. doi: 10.1590/S0100-15742001000300006.
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) também revela a prevalência de uma visão utilitarista sobre a disciplina, que serviria para ajudar no desenvolvimento de outras disciplinas ou vinculada à função decorativa.

Vale ressaltar que em nenhuma das aulas observadas pudemos presenciar a professora Bianca apresentando ou expressando essa concepção utilitária de artes; ao contrário, pudemos vê-la divulgando uma concepção artística vinculada ao aprendizado da fruição e da consciência estética. No entanto, sabemos que não existem sentidos pessoais puros, desvinculados da atividade e de seus significados sociais, conforme analisa Leontiev (1983Leontiev, A. (1983). Actividad, conciencia e personalidad. Habana: Pueblo y Educación.). Assim, as crianças expressam esses motivos tendo como referência os significados sociais que circulam sobre a atividade artística na própria escola, em suas famílias, no discurso social hegemônico que desvaloriza a arte, o artista e as ciências humanas, de forma geral. E esses significados seguramente participam do processo de atribuição de sentido pessoal à atividade de estudo desenvolvida na educação artística.

Por outro lado, as crianças também apresentaram motivos vinculados à liberdade de expressão. Referem-se à aula de artes como um dos poucos espaços em que podem expressar-se, criar, produzir, como vemos no excerto abaixo:

Francesca: Artes eu acho muito divertido. É o dia da semana mais legal. A gente começa a rir, tipo a gente passa um tempo lá e é feliz. A gente fica mais solto, fica mais livre, a gente pode se expressar do jeito que a gente é lá. Eu gosto bastante... Eu acho que estudar artes é bem mais divertido, porque a gente aprende, ah ... vou falar ... viver melhor as vezes, a gente aprende várias coisas boas, a gente fica espontâneo, a gente acha melhor, a gente faz o que a gente quer. Não é que a gente quer, a gente faz o que a professora pede, mas quando a gente vai fazer a gente está se soltando, ficando mais livre, né? E em outras coisas a gente fica mais fechadinho e aí em artes a gente fica livre, a gente faz, sabe? É muito bom. (Excerto da entrevista com Francesca, grifos nossos).

Nas aulas observadas também pudemos presenciar a manifestação desses motivos vinculados à liberdade de expressão: “Eloisa escreve, em sua autoavaliação, que a aula de artes deixa a gente calma e relaxada” (Excerto do Registro Ampliado da 8a observação).

A professora Bianca, em algumas aulas, apresenta aos alunos uma concepção artística vinculada à liberdade de expressão e à possibilidade de criação:

Bianca explica para os alunos alguns conceitos sobre escultura: “Quem inventou esta técnica foi Amilcar de Castro, artista brasileiro. Ele usa chapas de metal. Se forem pra São Paulo, no parque Ibirapuera, tem as esculturas concretas do Hélio Oiticica, Amilcar de Castro e Lygia Clark”. Explica que esses artistas fazem parte do movimento concreto que propunha simplicidade das formas e uso de formas geométricas e diz: “A beleza da arte não está só na reprodução da perfeição da realidade e sim na criação”. (Excerto do Registro Ampliado da 5a observação)

Neste tipo de motivos, que estamos chamando de “vinculados à liberdade de expressão”, chama a atenção a relação que as crianças estabelecem entre sua produção na aula de artes e à possibilidade de expressar-se livremente.

Nossa defesa da arte como conteúdo escolar articula-se com a defesa da escola como local privilegiado de formação integral do ser humano (Saviani, 2000Saviani, D. (2000). Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações (7a ed.). Campinas, SP: Autores Associados.; Duarte & Ferreira, 2011Duarte, N.; Ferreira, N. B. P. (2011). As artes na educação integral: uma apreciação histórico-crítica. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, 6(3), 115-126.) e desenvolvimento da sensibilidade estética e, portanto, o ensino de artes pode relacionar-se intimamente com a formação da individualidade livre e universal.

Quando as crianças mencionam que na aula de artes podem expressar-se do “jeito que a gente é” (Entrevista com Francesca) revelam as potencialidades transformadoras do ensino de artes e sua relação com a necessidade humano-genérica de humanização, ou seja, “... a necessidade geral que o homem sente de humanizar tudo quanto toca, de afirmar sua essência e de se reconhecer no mundo objetivo criado por ele”. (Vazquez, 1968Vazquez, A. S. (1968). As ideias estéticas de Marx. Rio de Janeiro: Paz e Terra., p.71).

Na análise deste tipo de motivos destaca-se a contribuição que a arte tem à humanização pela sensibilidade, pois na medida em que exerce um trabalho sobre os sentidos tem um efeito direto sobre a alienação. Esses motivos articulam-se, ainda, em nossa análise, com a dimensão emocional da consciência (Vigotski, 2001Vigotski, L. S. (2001). Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes.) e as crianças relacionam diretamente a arte com emoções positivas. Segundo Vigotski, a arte tem a potencialidade de gerar emoções que ampliam a formação da consciência do indivíduo. A potencialidade na arte reside em gerar emoções não cotidianas, que podem produzir o desenvolvimento de novas formações psicológicas: “Isto é, a arte poderia provocar uma nova organização psíquica mais elaborada, por ser instrumento cultural, o qual objetiva, em sua forma e conteúdo, elevadas forças humanas como: abstração, criatividade, percepção, emoção e imaginação”. (Barroco & Superti, 2014Barroco, S. M. S.; Superti, T. (2014). Vigotski e o estudo da psicologia da arte: contribuições para o desenvolvimento humano.Psicologia & Sociedade , 26(1), 22-31.doi: 10.1590/S0102-71822014000100004.
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, p. 26).

Destacando a imaginação como função psíquica, Vigotski (2003)Vigotsky, L.S. (2003). La imaginación y la arte en la infancia. Madrid: Akal. a relaciona com a atividade criadora. Na atividade criadora, o homem reelabora e cria, com elementos da experiência passada, novas formas, que recriam e modificam o presente e constitui-se como um ser projetado para o futuro. A imaginação é justamente essa capacidade humana de criar e combinar fatos, o que é desenvolvido por meio das mediações culturais:

A atividade criadora da imaginação encontra-se em relação direta com a riqueza e a variedade da experiência acumulada pelo homem, porque essa experiência é o material com que a fantasia erige seus edifícios. Quanto mais rica for a experiência humana, tanto maior será o material que dispõe a imaginação. (Vigotski, 2003Vigotsky, L.S. (2003). La imaginación y la arte en la infancia. Madrid: Akal., p.17).

Embora nossa compreensão sobre estes motivos vinculados à liberdade de expressão seja de que esses têm potencialmente caráter humanizador, é importante destacar que o discurso da livre expressão no caso da educação artística tem gerado, por outro lado, práticas pedagógicas espontaneístas, de caráter predominantemente lúdico e descompromissadas no que diz respeito ao ensino de conteúdos de artes. Por exemplo, Sardelich (2001Sardelich, M. E. (2001). Formação inicial e permanente do professor de arte na educação básica. Cadernos de Pesquisa ,( 114), 137-152. doi: 10.1590/S0100-15742001000300006.
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) relata a prevalência de uma visão de arte como expressão pessoal dos sentimentos e de uma criação artística como produto do afeto e da emoção, o que carrega uma concepção de arte como dom natural.

Entendemos que o ensino de artes, ligado ao livre desenvolvimento humano, deve garantir o desenvolvimento da sensibilidade artística, que não pode ser tomada de forma dicotômica, desconsiderando o desenvolvimento intelectual e moral (Duarte & Ferreira, 2011Duarte, N.; Ferreira, N. B. P. (2011). As artes na educação integral: uma apreciação histórico-crítica. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, 6(3), 115-126.). Ou seja, o desenvolvimento das emoções e da criatividade não ocorre de forma natural, deixando apenas a criança expressar-se livremente, sem amarras, de forma a renegar a intrínseca relação entre desenvolvimento intelectual e afetivo.

Tal compreensão sobre o ensino de artes tem efeito contrário ao que estamos propondo, pois esvazia a escola de conhecimento, carrega uma visão adaptacionista de educação escolar e substitui a vivência artística pela mera experimentação de materiais, cores, formas, sem a organização dessa experiência em nível teórico. Este alerta é importante se não quisermos defender uma concepção de educação escolar que pregue uma noção de liberdade tomada como sinônimo de “fazer aquilo que se quer” e que defende a livre expressão sem defender a liberdade como conceito universal (Duarte, 2004Duarte, N. (2004). A rendição pós-moderna à individualidade alienada e a perspectiva marxista da individualidade livre e universal. In Duarte, N. (Ed.), Crítica ao Fetichismo da Individualidade (pp.197-217, 2ª ed.). Campinas: Autores Associados.).

Apresentados esses dois grandes grupos de motivos, pragmáticos e vinculados à liberdade de expressão, é importante relembrar que toda atividade humana é polimotivada e a classificação aqui efetuada corresponde apenas à necessidade de exposição da análise dos dados de pesquisa. Os motivos apresentados atuam, muito provavelmente, de forma conjunta na constituição da atividade de estudo das crianças em foco, embora possam ter lugares hierárquicos diferentes para cada sujeito.

Categorizamos as ações de estudo em ações de organização pedagógica, ações de ajuda, ações de valorização do trabalho discente e ações coletivas. No primeiro grupo de ações, denominadas como ações de organização pedagógica, são destacadas as ações das professoras e dos estudantes que sinalizam como o cotidiano da sala de aula era organizado, especialmente na disciplina de artes, mas também trazendo elementos do cotidiano pedagógico deste 5o ano.

Em nossas observações, destacava-se como a organização do trabalho pedagógico era explícita e compreendida pelas crianças, tanto no que diz respeito às regras disciplinares, como no que se refere à organização das ações de estudo e de realização das tarefas propostas pelas docentes, o que nos remete ao estudo de Souza (1999Souza, D. T. R. (1999). Entendendo um pouco mais sobre o sucesso (e fracasso) escolar: ou sobre acordos de trabalho entre professores e alunos. In Aquino, J. G. (Ed.) ,Autoridade e autonomia na escola: alternativas teóricas e práticas (pp. 115-129). São Paulo: Summus., p.122) sobre a relação entre sucesso escolar e os acordos de trabalho. As palavras da autora materializavam-se em nossas observações: “... percebi certa sintonia na comunicação estabelecida entre professora e alunos”.

Nas aulas de artes, a professora Bianca apresentava uma clara organização de trabalho, compreendida e incorporada pelos estudantes: distribuição de materiais, retomada de conteúdos de aulas anteriores e articulação com o conteúdo do dia, explicação passo-a-passo da tarefa a ser realizada, auxílio e orientação às crianças que estavam com dificuldade, valorização do trabalho de cada estudante.

Quanto à disciplina, a professora de artes também apresentava regras claras de comportamento, semelhantes ao que descreve Souza (1999Souza, D. T. R. (1999). Entendendo um pouco mais sobre o sucesso (e fracasso) escolar: ou sobre acordos de trabalho entre professores e alunos. In Aquino, J. G. (Ed.) ,Autoridade e autonomia na escola: alternativas teóricas e práticas (pp. 115-129). São Paulo: Summus., p. 120): “... a ênfase à cooperação; a disciplina entendida enquanto organização para o trabalho e não só como manutenção da ordem”. Em raros momentos presenciamos a professora tentando controlar o comportamento de seus alunos de forma agressiva ou autoritária. Ao contrário, o tom de voz baixo e respeitoso predominava na comunicação entre professora e estudantes.

Na aula da professora da turma, Angela, também pudemos observar essa organização das ações pedagógicas. Angela demonstrava clareza de seus objetivos pedagógicos e orientava os alunos nesse sentido. Segue um exemplo em que a professora sinaliza aos alunos qual é sua expectativa em relação a uma atividade de avaliação:

Professora Angela para a turma: “Estudantes de 5 o ano tem que saber se virar para usar o livro didático e isso vai ser cobrado na prova. Por exemplo, na p. 28 está o mapa com a divisão das regiões”. As crianças olham o livro... A professora instrui as crianças sobre o uso do livro didático. Depois, em conversa comigo, explica que tem trabalhado este uso autônomo do livro didático, que acha fundamental a criança aprender a usar o livro, a buscar as informações que precisa.

Professora: “Aluno de 5 o ano deve procurar informações no livro. Essa é uma habilidade que precisamos desenvolver”. (Excerto de registro ampliado da 7a observação)

Essa professora criava estratégias, inclusive, para que as crianças aprendessem a organizar-se temporalmente, sinalizando em diversos momentos quanto tempo ainda tinham para realizar uma tarefa e incentivando que os alunos se organizassem neste sentido.

Essa organização das ações pedagógicas das professoras gerava ações correspondentes nas crianças que demonstravam, via de regra, estarem envolvidas nas tarefas propostas. Sabiam o que era esperado delas em cada tarefa. Discutiam e socializavam suas produções durante as aulas. Em termos de aprendizagem, todos os alunos desse quinto ano estavam bem alfabetizados e, segundo as docentes, com nível de aprendizagem compatível ao esperado para um quinto ano.

A análise das ações de organização pedagógica aproxima-se da discussão sobre os acordos de trabalho realizada por Souza (1999Souza, D. T. R. (1999). Entendendo um pouco mais sobre o sucesso (e fracasso) escolar: ou sobre acordos de trabalho entre professores e alunos. In Aquino, J. G. (Ed.) ,Autoridade e autonomia na escola: alternativas teóricas e práticas (pp. 115-129). São Paulo: Summus.). Segundo a autora, estes acordos produzem a formação de atitudes compatíveis com a aprendizagem das crianças na escola, o que pode levar a produção do sucesso escolar observada na turma em questão. No caso do objeto desta pesquisa, o sentido pessoal atribuído à atividade de estudo em artes, podemos destacar a importância de as ações de organização pedagógica fazerem sentido para os alunos:

...não são apenas os conteúdos escolares que precisam ser significativos. As relações e atitudes também precisam ser entendidas pelos alunos. A função organizadora desempenhada pelos acordos de trabalho e sua contribuição na realização de um bom trabalho pedagógico deu-nos evidência disso. (Souza, 1999Souza, D. T. R. (1999). Entendendo um pouco mais sobre o sucesso (e fracasso) escolar: ou sobre acordos de trabalho entre professores e alunos. In Aquino, J. G. (Ed.) ,Autoridade e autonomia na escola: alternativas teóricas e práticas (pp. 115-129). São Paulo: Summus., p. 128, grifos da autora).

No grupo de ações que estamos denominando de ações de ajuda destacam-se as ações produzidas pelas docentes e incorporadas pelos estudantes que evidenciam a colaboração entre os estudantes nas tarefas escolares, valorizada e incentivada pelas professoras, como vemos no excerto a seguir:

A professora pergunta se alguém está com dificuldade. Alguns levantam a mão e outros se oferecem para ajudar: “Eu ajudo, o meu está perfeito”. Essa cena me chama a atenção, pois essas situações de ajuda parecem ser corriqueiras na turma. (Excerto de registro ampliado da 3a observação).

Pudemos presenciar, inclusive, as próprias crianças oferecendo-se para ajudarem os colegas: “Cristiano Ronaldo não está conseguindo. Monta e desmonta sua escultura e dá impressão que quer desistir. Rodrigo diz que vai ajudá-lo”. (Excerto de registro ampliado da 6a observação).

A análise dessas ações reportava-nos ao conceito de Zona de Desenvolvimento Iminente proposto por Vigotski (1996)Vygotski, L. S. (1996) Obras escogidas (vol. 4).Madrid: Machado Libros.. Esse nível de desenvolvimento refere-se às funções psicológicas que estão em processo de desenvolvimento. Nesse sentido, expressa a potencialidade para aprender, pois caracteriza o desenvolvimento mental prospectivamente: “La esfera de los processos inmaturos, pero em vía de maturación, configura la zona de desarrollo próximo del niño” (p.269).

Destaca-se que as ações de ajuda realizadas pelas professoras e estudantes pareciam produzir o desenvolvimento das crianças nas tarefas realizadas. Engendraram, ainda, um clima de colaboração e cooperação entre os estudantes da turma.

Na mesma perspectiva, apontam-se as ações de valorização do trabalho discente. O clima de colaboração descrito anteriormente é produzido, também, pelas ações da professora de artes e das ações entre as crianças de valorizar e elogiar o trabalho dos colegas, como vemos no excerto a seguir:

Bianca mostra a todos o desenho de Juliana: “Ela já está com traço de artista”. Pede para que a aluna mostre seu desenho para todos e a menina, em um misto de vergonha e orgulho, mostra sua produção para os colegas. (Excerto de registro ampliado da 6a observação)

As ações de ajuda e de valorização do trabalho discente compõem uma atividade pedagógica que, em nossa análise, valoriza a formação do coletivo infantil (Pistrak, 2011Pistrak, M. M. (2011). Fundamentos da escola do trabalho. São Paulo: Expressão Popular.). Nessa perspectiva, destacam-se o que denominados de ações coletivas. Presenciamos, em diferentes aulas, tarefas propostas como ações coletivas entre as crianças. O exemplo mais emblemático refere-se ao projeto de final de semestre que envolveu a produção de conto e peça teatral em grupos de crianças. Esta proposta gerou grande envolvimento das crianças com os conteúdos que estavam trabalhando e um intenso trabalho coletivo. Uma das alunas comenta sobre esse trabalho:

Agora eu estou me divertindo bastante, eu estou lá com as minhas amigas. Eu tenho uma ideia, tipo “vamos fazer isso”, aí a outra diz “ah não, essa ideia é melhor”, aí a gente se comunica bastante. Em grupo a gente gosta mais de fazer e todo mundo se ajuda, às vezes tem umas briga, mas mesmo brigando e se entendendo, no outro dia a gente está tudo amiga de novo, é só temporária a briga. A gente sempre foi amigo e nunca vai deixar de ser amigo. (Excerto da entrevista com Francesca)

Destaca-se na fala de Francesca o papel do grupo em seu processo de desenvolvimento e aprendizagem. E isto é trabalhado de forma intencional pelas professoras, gerando uma turma que parece compreender-se como coletivo de trabalho: “A professora Angela contou que trabalha bastante a formação do grupo e a união entre os colegas. Por exemplo, há dois novos alunos na turma que rapidamente integraram-se a turma”. (Excerto de registro ampliado da 4a observação)

De acordo com Bozhovich (1985Bozhovich, L. I. (1985).La personalidad y su formación en la edad infantil. Habana: Pueblo y Educación.), a motivação social advinda do professor diminui no decorrer da escolarização, mas aumenta o papel do grupo de amigos no processo de desenvolvimento e formação dos motivos, o que pode também estar relacionado com a mudança de atividade principal, do estudo para a comunicação íntima.

O fato de que as crianças ocupem-se na escola de uma atividade comum, extraordinariamente importante - o estudo - conduz ao surgimento de determinadas relações: nas crianças origina-se o desejo de estarem juntas, de brincar juntas, de trabalhar, de cumprir as tarefas sociais encomendadas; nelas surge o interesse pela opinião dos colegas, querem gozar de sua simpatia e que reconheçam seus méritos... Assim, a valorização dos companheiros, a opinião do coletivo infantil, converte-se paulatinamente em motivos fundamentais da conduta do escolar. (Bozhovich, 1985Bozhovich, L. I. (1985).La personalidad y su formación en la edad infantil. Habana: Pueblo y Educación., p.211, tradução nossa).

Entende-se que um dos papéis do professor na organização do ensino é orientar as ações de estudo de forma coletiva, como vemos no trabalho pedagógico analisado. A atividade de estudo desenvolvida a partir da interação entre as crianças tem demonstrado melhores resultados no que diz respeito ao processo de assimilação do conhecimento, por exemplo, em situações de discussão sobre a origem de determinado conceito (Rubtsov, 1996Rubtsov, V. V. (1996). A atividade de aprendizado e os problemas referentes à formação do pensamento teórico dos escolares. In Garnier, C.; Bernarz, N.; Ulanovskaya, I. (Eds.), Após Vygotsky e Piaget: perspectivas social e construtivista - escolas russa e ocidental (pp. 129-137). Porto Alegre, RS: Artes Médicas.). A experiência pedagógica acompanhada nessa pesquisa coloca em evidência estes conceitos teóricos: o papel do coletivo na produção da aprendizagem e do desenvolvimento dos estudantes.

Ressalta-se aqui o papel do professor na organização de atividades coletivas a partir da compreensão do caráter coletivo da aprendizagem humana. Bozhovich (1985Bozhovich, L. I. (1985).La personalidad y su formación en la edad infantil. Habana: Pueblo y Educación.) destaca que a correta organização do coletivo poderia criar as condições para a plena formação das particularidades psíquico-morais da personalidade da criança.

Voltando para a atividade de estudo, na relação com o coletivo o estudante pode criar novos motivos para o estudo, que encontram ressonância no grupo, já que o social é a referência. É na unidade entre os motivos da atividade de estudo e as ações de estudo que o sentido pessoal desenvolve-se e podemos antever, no caso dessa pesquisa, dois desdobramentos psicopedagógicos: a produção do sucesso escolar (Souza, 1999Souza, D. T. R. (1999). Entendendo um pouco mais sobre o sucesso (e fracasso) escolar: ou sobre acordos de trabalho entre professores e alunos. In Aquino, J. G. (Ed.) ,Autoridade e autonomia na escola: alternativas teóricas e práticas (pp. 115-129). São Paulo: Summus.) e a formação em curso de uma postura de estudante (Bozhovich, 1985Bozhovich, L. I. (1985).La personalidad y su formación en la edad infantil. Habana: Pueblo y Educación.).

Mesmo entre as crianças que declaravam motivos pragmáticos as ações pedagógicas desenvolvidas parecem alterar o sentido geral que atribuem ao estudo de artes: envolvem-se com as tarefas propostas, querem aprender.

Na análise dos dados podemos observar que há um processo de atribuição de sentido pessoal transformador em curso. As crianças (e as professoras) buscam estabelecer relações com conhecimentos aprendidos anteriormente e de outras áreas, o que é elemento essencial para a formação do pensamento teórico. Responsabilizam-se pelas tarefas propostas em sala de aula, o que demonstra o desenvolvimento de uma postura de estudante necessária à consolidação da atividade de estudo como atividade principal. Constata-se, ainda, a formação embrionária de um coletivo infantil, mediado pela atuação das professoras, o que, como vimos, é fundamental na produção da aprendizagem dos estudantes em foco e na constituição de uma ética do coletivo.

Sobre a formação do pensamento teórico, neoformação esperada na atividade de estudo, a pesquisa realizada permite apenas que tracemos hipóteses. Os dados obtidos não possibilitam afirmar se esta formação ocorreu ou não e experimentos formativos (Davidov, 1988Davidov, V. (1988). La enseñanza escolar y el desarrollo psíquico: investigación teórica y experimental.Moscu: Progresso.) com este foco seriam necessários.

Uma das aulas sobre escultura traz elementos para pensarmos o desenvolvimento do pensamento estético-artístico das crianças em questão:

Na lousa Bianca escreve: Leitura visual e reinterpretação de esculturas. Cola diversas imagens de esculturas na lousa, pede que as crianças observem e começa um diálogo sobre as figuras. Pergunta para Daniel: O que as imagens têm em comum?

Francesca: Eu sei, são esculturas.

B: O que são esculturas?

Aluno não identificado: É uma coisa de pedra.

B: Caio, como acha que uma escultura é feita?

Caio: É um monte de pedra e vai quebrando.

Madara: Pode ser de argila.

B: Marta, qual é a mais antiga?

Marta aponta para esculturas egípcias.

B: Olha para o estilo do desenho.

Bia chama Davi: Qual é a mais moderna?

Laura: É a mais esquisita.

Davi analisa, olha e aponta uma imagem de Adélio Sarro.

B: Juliana, qual é a mais moderna?

Juliana também aponta uma escultura de Adélio Sarro.

B. para Alice: Qual é a mais esquisita?

Alice, de olhos fechados, aponta Davi de Michelangelo: Não quero nem olhar (referindo-se à nudez).

Bianca para Francesca: Qual gostou mais?

Alice: Com certeza foi aquela (aponta Davi com tom irônico).

B. para Laura: O que entendeu desta imagem (aponta imagem de escultura de Vaccarini)?

Laura: Ficou preso, tentou quebrar as amarras.

B. diz que suas perguntas acabaram e pergunta se alguém quer comentar alguma coisa. Caio comenta sobre uma escultura. As crianças estão agitadas, levantam a mão para falar.

Marta mostra o Faraó: É de ouro, é criativo.

Peço para a professora se posso fazer perguntas. Ela permite: O que caracteriza uma escultura?

Os alunos falam sobre várias coisas que compõe uma escultura, os materiais que são feitas, por exemplo, pedra, argila, mármore, sobre os objetos que podem ser esculpidos, madeira, pedra, sobre o que a escultura representa: símbolos, memórias, pessoas importantes...

B: Esqueci de fazer uma pergunta, o que as esculturas têm a ver com o que a gente está estudando?

Laura responde que escultura é a arte em 3D. (Excerto de registro ampliado da 5a observação).

No excerto, embora circunscrito a uma aula em particular, chama a atenção como as conexões que as crianças estabelecem restringem-se ao nível empírico do conteúdo e não fazem a relação com os conceitos que estavam aprendendo anteriormente, as três dimensões em arte. Ressaltam características externas da escultura, como os materiais usados na confecção das esculturas e o que está sendo representado, mas não chegam a um conceito, a uma generalização. As perguntas da professora não conduzem, por outro lado, a esta generalização conceitual e apenas no final da aula relaciona as imagens com o conteúdo anterior, a produção artística em três dimensões: “O que as esculturas têm a ver com o que a gente está estudando?”. E uma das alunas responde que escultura é a arte em 3D, aproximando-se de uma formulação conceitual.

O excerto permite levantar apenas como hipótese os limites à formação do pensamento teórico na organização de ensino em foco. No entanto, reiteramos a necessidade de experimentos formativos (Davidov, 1988Davidov, V. (1988). La enseñanza escolar y el desarrollo psíquico: investigación teórica y experimental.Moscu: Progresso.) que tenham como objetivo específico propor situações didáticas desenhadas com a finalidade de produzir e analisar a formação do pensamento teórico.

Considerações finais

Buscamos explicar, tomando como unidade de análise a relação entre os motivos da atividade de estudo e as ações de estudo, como ocorre o processo de atribuição de sentido pessoal às atividades artísticas desenvolvidas na disciplina educação artística, por estudantes de um quinto ano de uma escola pública. Trouxemos dados e análises advindos dessa singularidade, mas que não ficam circunscritos a ela, pois trazem elementos para pensarmos desdobramentos à organização de ensino em outras realidades escolares.

Pudemos apreender como a organização pedagógica de duas professoras traz resultados interessantes na produção do sucesso escolar de uma turma de alunos, que tem também desenvolvido uma postura como estudantes. Suas formas de organizar as ações pedagógicas, de incentivar a colaboração entre os colegas e de fomentar o trabalho da turma como coletivo traz princípios didáticos para a organização de um ensino que promova o desenvolvimento (Davidov, 1988Davidov, V. (1988). La enseñanza escolar y el desarrollo psíquico: investigación teórica y experimental.Moscu: Progresso.).

Torna-se necessário aprofundar os estudos e pesquisas que estabeleçam relações entre a psicologia histórico-cultural e suas possíveis contribuições à organização do ensino, focando, por exemplo, experimentos sobre a formação do pensamento teórico.

Referências

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  • 1
    No caso deste trabalho, tomam-se como referência os conceitos de sentido pessoal e de significado social compreendido a partir da unidade dialética entre a atividade humana e a consciência (Leontiev, 1983). O sentido pessoal expressa a relação subjetiva que o sujeito estabelece com os significados sociais e com as atividades humanas. Assim, nosso ponto de partida é a compreensão de que o sentido pessoal é produzido na relação com a atividade humana e, portanto, para que os sentidos pessoais possam ser analisados torna-se essencial compreendê-los a partir da estrutura da atividade humana. Em artigo anterior (Mendonça & Asbahr, 2018Mendonça, A. B. J.; Asbahr, F. S. F. (2018). Atividade de Estudo e Sentido Pessoal: Uma revisão teórica. Revista Obutchénie. Revista de Didática e Psicologia Pedagógica (UFU). 3(7), 780-800. doi:10.14393/OBv2n3a2018-10
    https://doi.org/10.14393/OBv2n3a2018-10...
    ), analisamos as diversas conceituações de sentido no âmbito da teoria histórico-cultural.
  • 2
    Defendemos que, embora existam diferenças significativas entre as obras de Vigotski e Leontiev, há continuidade e complementaridade na proposição destes autores (Asbahr, 2011). Concordamos com Zinckenko (2006)Zinckenko, V. P. (2006). La psicologia sociocultural y la teoria de la actividad: revisión y proyección hacia el futuro. In Wertsch,J.; Del Rio, P.; Álvarez, A. (Eds), La mente sociocultural. Aproximaciones teóricas y aplicadas. (pp.35-47). Madrid: Fundación Infancia y aprendizaje. em sua afirmação de que não podemos falar de duas escolas psicológicas, mas apenas de duas tendências investigativas.
  • 3
    Para maior compreensão acerca do desenvolvimento do pensamento teórico ver ;Rosa, Moraes e Cedro (2010)Rosa, J. E.; Moraes, S. P. G.; Cedro, W. L. (2010). As particularidades do pensamento empírico e do pensamento teórico na organização do ensino. In Moura, M. O. (Org.), A atividade pedagógica na teoria histórico-cultural (pp. 67-71). Brasília: Liber livros..
  • 4
    Aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Faculdade de Ciências (UNESP-Bauru), via Plataforma Brasil. Protocolo no CAAE: 45461115.1.0000.5398.
  • 5
    Os nomes são fictícios.
  • 6
    Os nomes são fictícios e no caso das crianças foram escolhidos por elas.
  • Apoio: Pró-reitoria de pesquisa da Unesp (PROPE-UNESP), Edital Primeiros Projetos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    9 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 2018
  • Aceito
    07 Nov 2018
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