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Consultoria em Psicologia Escolar: Relato de Experiência em Curso Pré-Vestibular

Asesoría en psicología escolar: relato de experiencia en curso pre-selectividad

Resumo

Neste trabalho busca-se refletir sobre uma pesquisa/intervenção realizada em um Curso Pré-Vestibular, através de uma proposta de Consultoria Escolar vinculada a um Serviço Escola de Psicologia. A Consultoria tem como prerrogativa instrumentalizar as escolas criando dispositivos para minorar os problemas existentes, estimulando um espaço de prevenção e promoção de saúde mental descentrada de alguns dos cânones tradicionais em Psicologia Escolar e Educacional. Procurou-se, no presente estudo, elaborar tanto um movimento de intervenção como de pesquisa, seguindo como pressuposto metodológico a etnografia. Em termos de resultados vemos que um dos maiores entraves para o processo de implementação de estratégias de promoção de saúde foi a perspectiva da Psicologia enquanto sustentáculo de demandas exclusivamente clínicas. Nesse sentido, se operou tendo em vista a desconstrução dessa noção - o que envolveu confrontar tradicionais visões do aluno problema e do atendimento individual psicológico que se acoplava nessa perspectiva de setting tradicional.

Palavras chave:
psicologia escolar; psicologia educacional; saúde mental

Resumen

En este estudio se busca reflexionar sobre una investigación/intervención realizada en un Curso Pre-Selectividad, por intermedio de una propuesta de Asesoría Escolar vinculada a un Servicio Escuela de Psicología. La Asesoría tiene como prerrogativa instrumentalizar las escuelas creando dispositivos para disminuir los problemas existentes, estimulando un espacio de prevención y promoción de salud mental descentrada de algunos de los patrones tradicionales en Psicología Escolar y Educacional. De modo a elaborar un movimiento de intervención y de investigación, se eligió como presupuesto metodológico, en este estúdio, la perspectiva etnográfica. En términos de resultados se nota que uno de los mayores obstáculos para el proceso de implementación de estrategias de promoción de salud fue la perspectiva de la Psicología como sustentáculo de demandas exclusivamente clínicas. En este sentido, se actuó teniendo en vista la desconstrucción de esa noción - lo que abarcó confrontar tradicionales visiones del alumno problema y de la atención individual psicológica que se acoplaba en esa perspectiva de setting tradicional.

Palabras clave:
psicología escolar; psicología educacional; salud mental

Abstract

In this study we sought to reflect on a research/intervention carried out in a Preparation Course for College Admission Exam, through a proposal of School Consulting linked to a Psychology School Service. The Consultancy’s prerogative is to instrumentalize schools by creating devices to alleviate existing problems, stimulating a space for prevention and promotion of decentralized mental health of some of the traditional canons in School and Educational Psychology. In the present study, we sought to elaborate both an intervention and a research movement, following ethnography as a methodological assumption. In terms of results, it was possible to notice that one of the major obstacles to the process of implementing health promotion strategies was the perspective of Psychology as the basis of exclusively clinical demands. In this sense, it was operated in view of the deconstruction of this notion - which involved confronting traditional visions of the problem student and the individual psychological care that was coupled in this traditional setting perspective.

Keywords:
School psychology; educational psychology; mental health

Introdução

O objetivo deste texto é refletir sobre uma prática de pesquisa intervenção realizada em um Curso Pré Vestibular, através de uma proposta de Consultoria Escolar. Essa perspectiva foi possível, pois se trata de uma atividade vinculada a um Serviço Escola de Psicologia de uma Universidade privada na cidade de Porto Alegre, que mantém convênio com escolas públicas e privadas para inserção sistemática ininterrupta. Como prática obrigatória de Psicologia Escolar e Educacional dentro de uma organização, o estágio tem por finalidade auxiliar em propostas que favoreçam o ensino aprendizagem, por meio da inserção de graduandos em locais de educação.

A Psicologia Escolar e Educacional compreende as dimensões psicológicas conectadas com os processos educativos, considerando não só sua dimensão formal, mas também informal (Wechsler, 2001Weschler, S. M. (Org.). (2001). Psicologia Escolar: Pesquisa, Formação e Prática(2ª ed.). São Paulo: Alínea.), assim como envolve a atribuição dos(as) psicólogos(as) atuantes nesse campo em trabalhar para melhorar o processo de ensino aprendizagem de forma integral a partir de serviços oferecidos a indivíduos, famílias e organização (ABRAPEE, 1991Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional [ABRAPEE] (1991). Estatuto da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional. Campinas. São Paulo.). Tem-se por prerrogativa que nessa área de atuação deve-se escutar as demandas da escola e, a partir delas sugerir formas de modificação no espaço escolar. O processo de mudança proporcionado engloba, nesse sentido, “criar formas de reflexão dentro da escola, com todos os sujeitos (alunos, professores e especialistas) para que se possa trabalhar com suas relações e paradigmas” (Andrada, 2005Andrada, E. G. C. C. (2005). Novos paradigmas na prática do psicólogo escolar. Psicologia Reflexão Crítica, 18(2), 196-199.).

No que concerne, especificamente, ao modelo de Consultoria, vemos que o(a) profissional que atua procura as melhores estratégias para sanar as problemáticas da organização junto à comunidade, elaborando ações para cada momento de trabalho e promovendo espaços para resolução de conflitos (Almeida, 2006Almeida, S. F. (Org.). (2006). Psicologia Escolar: Ética e Competência. Campinas, São Paulo: Alínea.). Desta forma, a Consultoria Escolar e Educacional tem como prerrogativa instrumentalizar as escolas criando dispositivos para minorar os problemas existentes, estimulando um espaço de prevenção e promoção de saúde mental. A partir da identificação das demandas de cada local, são elaborados projetos de forma singular buscando assessorar as organizações com intervenções psicossociais sistemáticas e preventivas.

Tendo em vista o caráter de pesquisa/intervenção da presente proposta, os aportes teóricos provenientes da Psicologia Escolar e Educacional foram articulados com as perspectivas provenientes da Antropologia, pela via de um olhar etnográfico. De modo a elaborar tanto um movimento de intervenção como de pesquisa, não vistos como dissociados, escolhemos como pressuposto analítico a perspectiva etnográfica, entendida como forma de tecer compreensões pela via do estranhamento do familiar (Geertz, 1989Geertz, C. (1989). A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC.). Nesse sentido, elencando um olhar etnográfico como metodologia, realizamos diários de campo nos quais foram descritas apreensões sobre as formas de socialização, de pedagogias - formais e informais - e de inscrição cultural que constituía o Curso como espaço de ensino-aprendizagem. Segundo Woods (1995Woods, P. (1995). La escuela por dentro: la etnografia en la investigación educativa. Barcelona: Paidós.), a perspectiva etnográfica é uma forma possível de aproximação da posição de ensinar e pesquisar como fazeres concomitantes de modo que, aqui, faremos uso dessa dinâmica para congregar o trabalho de Consultoria em Psicologia com o pesquisar em Psicologia.

As reflexões para a presente intervenção pautaram-se em aspectos que consideramos pertinentes para o desenvolvimento da proposta de trabalho interventivo: primeiro, buscamos conhecer o local e suas especificidades. O Curso Pré-Vestibular era de iniciativa pública, proporcionada a partir da abertura de edital em parceria com a Secretaria da Juventude, tendo por premissa acolher a população jovem que não possuía condições financeiras de acessar um curso privado. Ele foi oferecido nos turnos da tarde e da noite, e organizado de modo a atender a demanda de jovens - em sua maioria trabalhadores(as). As aulas eram ministradas em um antigo prédio no centro da cidade, com características arquitetônicas já precarizadas pelo tempo. A iluminação inadequada, a inexistência de circulação apropriada de ar e a simplicidade dos materiais oferecidos para estudo fizeram parte do cotidiano dos alunos(as) e professores(as).

O grande número de alunos(as), em torno de 200 vagas eram oferecidas no início do ano, sofria uma intensa perda, sendo a evasão escolar uma preocupação indicada pela Secretaria da Juventude. Além disso, a incerteza quanto ao pagamento dos salários dos(as) professores(as) constituía, para a equipe de trabalhadores(as), uma insegurança constante.Tendo em vista o complexo panorama do Curso, as intervenções realizadas foram elaboradas de forma a criar um espaço de expressão de sentimentos, reflexão sobre práticas, atitudes e comportamentos, construção e amadurecimento, espaço onde pudessem ser discutidas e pensadas alternativas para gerenciar essa situação de tensão e que se adequassem a possibilidade de horários destinados pela equipe a esta organização (especificamente três dias da semana durante três meses de consultoria).

Relato de Atividades

O trabalho desenvolvido na organização teve como perspectiva possibilitar um mapeamento de fragilidades e potencialidades naquele contexto escolar e estabelecer, estrategicamente, eixos de intervenção. Considerando a proposta de Consultoria elaborada, atuou-se em três etapas: Reconhecimento do local e das especificidades do processo de ensino/aprendizagem; Desenvolvimento de planejamento coletivo; Desenvolvimento de grupos e acompanhamentos individuais. A primeira etapa possibilitou a compreensão de que o perfil de ensino - conteudista e verticalizado - e dos(as) alunos(as) - jovens trabalhadores(as) de classe popular - exigia um planejamento horizontalizado e uma atuação ‘rizomática’ na consultoria, de modo a contemplar as especificidades do Curso Pré-Vestibular.

Para o Reconhecimento do local o grupo de estagiários(as) frequentou, por um período de uma semana, os espaços da organização. No primeiro dia, o grupo foi recebido pela equipe de funcionários locais e pela coordenadora da Secretaria Municipal da Juventude. Foi realizada a apresentação do espaço físico, assim como uma escuta ativa sobre o funcionamento da organização. Posteriormente, sem o acompanhamento de funcionários ou da coordenadora, uma primeira apresentação foi realizada em sala de aula, explicando o intuito do trabalho de consultoria e colocando a equipe de estagiários à disposição de dúvidas. Após essa apresentação, a equipe frequentou os ambientes comuns do local (corredores e sala de espera), colocando-se em conversas com os(as) alunos(as). O intuito foi de possibilitar tanto um contato próximo com estudantes e funcionários como elaborar um processo de ‘estranhamento antropológico’ da realidade da organização, de modo a atentar para as suas especificidades e desnaturalizar os processos sociais envolvidos. Essa etapa contou com um período de duas semanas de trabalho.

Além de seguir com as observações, esses encontros esporádicos possibilitaram perceber os(as) alunos(as) disponíveis em desenvolver coletivamente um planejamento para o aprimoramento de seu processo educacional. Ficou acordado que seria construído um roteiro geral de ações prioritárias ao identificar as demandas e necessidades provindas dos alunos, professores, funcionários e demais agentes educativos. Desse movimento, algumas questões foram observadas e propostas foram formuladas. Em especial, notou-se uma forte noção da atuação da Psicologia como vinculada a problemas individualizados. Nesse sentido mostrou-se presente, nas narrativas de professores(as), a necessidade de uma intervenção psicológica em “alunos problema”, e nos(as) alunos(as) a possibilidade de atendimento clínico psicoterápico.Essas questões demandaram, primeiramente, um trabalho de instrução quanto aos objetivos e potencialidades da Psicologia Escolar e Educacional, processo que exigiu comunicação com professores(as) e funcionários(as). Considerando o fluxo de trabalhadores, assim como o caráter de conversas muitas vezes individuais com professores(as) e funcionários(as), essa etapa teve duração de duas semanas, se dando concomitante ao fluxo de acolhimento aos(as) alunos(as).

Em especial, as intervenções que constituíram essa etapa, além do caráter mais informativo, tiveram como foco: um processo de psicoeducação de funcionários(as) em termos da utilização dos espaços, sigilo nas intervenções,da sua posição de mediação na comunicação de professores (as) e alunos(as) com a equipe de psicologia e corresponsabilidade na produção de saúde mental. Discussões com professores(as) acerca dos problemas elencados procurando deslocar questões pessoalizadas em alunos como, na verdade, problemáticas transversais (pela via de uma leitura mais sistêmica de discussão de casos). Nessa leitura sistêmica, a equipe da Psicologia procurava elencar elementos que dissessem dos problemas singulares elencados pelos(as) professores(as) como possíveis diante de todo um quadro educativo e social. Além desse aspecto, a reiterada noção da Psicologia como necessariamente clínica que sustentava atuações mais tradicionais por parte de professores(as) e funcionários(as),auxiliou no trabalho posterior com alunos(as), como será abordado a seguir.

Cabe atentar que, durante todo o período de estágio, em função das problemáticas elencadas anteriormente, optou-se pela manutenção dos estagiários nas áreas de convivência (durante os momentos de intervalo, entrada e saída das aulas), ainda que se dispunha de espaço para acompanhamentos individuais e elaboração de grupos de trabalho. Essa decisão teve como perspectiva reiterar a ideia, explicitada nessas etapas interventivas, da atuação em Psicologia como necessariamente do setting tradicional, e explorar melhor as potencialidades de trabalho com os outros atores sociais na organização.

Uma das preocupações elencadas pelos(as) alunos(as), nesse primeiro momento, foi referente ao processo de comunicação. Estabelecemos, em conjunto com os(as) alunos(as), o uso de uma página do Facebook, estratégia que não foi bem sucedida e deu origem a outra alternativa: um caderno de agendamentos na recepção do local. A preocupação a respeito dos atendimentos individuais como demanda espontânea de alunos(as), fez a equipe de estágio afirmar o objetivo de um espaço de escuta descentralizado da clínica e que pudesse surgir através da formação de grupos de discussão concomitantes com os atendimentos de cunho individual.

Com as dificuldades no estabelecimento de horários propícios para a formação de grupos - considerando as demandas de tempo dos(as) alunos(as) e a ansiedade gerada pela proximidade com o vestibular - o primeiro grupo de trabalho somente foi possível quando do acontecimento de uma greve de professores(as). Com um grupo composto por 10 alunos(as), foi possível iniciar um processo de reflexão acerca dos anseios da aproximação com o vestibular, expectativas profissionais e projetos de vida. Além disto, através desse tipo de intervenção possibilitou-se uma maior aproximação da noção de Psicologia descentrada dos cânones da clínica e da noção de aluno problema. Esse aspecto é importante de ser reiterado, pois a despeito da ideia de que a posição de aluno problema é só tomada pela via dos profissionais da educação, foi possível observar que entre alunos e alunas existia um elencar de alguns colegas que tomava a posição desse “outro” - como que uma figura naturalizada do que é um campo de convívio escolar.

Essa naturalização foi, aos poucos, relativizada. Através de encontros semanais de 60 minutos, no qual discutíamos trajetórias pessoais, marcadores sociais de diferença (como local de origem, gênero e dimensões étnico-raciais), projetos de vida e outros aspectos, foi possível produzir aproximações entre os(as) alunos(as) e potencializar um espaço de “borramento” da figura aluno problema. O projeto de desconstrução dessa figura, compreendida como forma de esquiva do contexto de competitividade entre estudantes e das dificuldades de trabalho entre profissionais da educação (diante da demanda de “sucesso” do curso), foi, portanto, tomado como transversal entre essas três dimensões relacionais: funcionários(as), professores(as) e alunos(as).

Conclusões

A intervenção realizada se operou, não sem grande desconforto e alguns conflitos, de maneira a possibilitar um processo de consultoria horizontalizado. Foi possível perceber como um dos primeiros entraves para esse processo a perspectiva de alunos(as) e professores(as) da Psicologia enquanto sustentáculo para demandas exclusivamente clínicas. Nesse sentido, tendo em vista a necessidade de construção conjunta da equipe de intervenção com professores(as) e alunos(as), se operou numa desconstrução dessa noção - o que envolveu confrontar tradicionais visões do aluno problema e do atendimento individual psicológico que se acoplava nessa perspectiva. Nesse sentido, consideramos que foi parte primordial da Consultoria estabelecer um vínculo no qual as práticas da Psicologia Escolar e Educacional fossem mais bem articuladas com todos(as), saindo de uma lógica de cuidado/cuidador para de corresponsabilidade na produção de saúde.

Um dos pontos nodais no processo foi justamente a manutenção de uma relação de comunicação apropriada. Apesar de ser um meio tradicional, o processo de comunicação de forma presencial representou para o grande grupo de alunos(as) a possibilidade de diálogo - associações, compartilhamento de desejos, medos, intenções comuns - mais de acordo com as possibilidades da configuração no Curso. Compreendemos que essa identificação atenuou uma postura competitiva entre os mesmos e facilitou nossa construção de vínculo. Partindo do princípio de que não eram todos os(as) alunos(as) que possuíam acesso a mídias sociais, o dispositivo online pode desfavorecer pessoas ou grupos. Foi possível concluir que grande parte dos(as) alunos(as) não conhecia um ao outro, inabilitando a construção de uma rede de apoio entre eles(as) e de uma aprendizagem colaborativa, indicando um campo necessário de intervenção no grupo.

Referências

  • Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional [ABRAPEE] (1991). Estatuto da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional Campinas. São Paulo.
  • Almeida, S. F. (Org.). (2006). Psicologia Escolar: Ética e Competência Campinas, São Paulo: Alínea.
  • Andrada, E. G. C. C. (2005). Novos paradigmas na prática do psicólogo escolar. Psicologia Reflexão Crítica, 18(2), 196-199.
  • Geertz, C. (1989). A interpretação das Culturas Rio de Janeiro: LTC.
  • Weschler, S. M. (Org.). (2001). Psicologia Escolar: Pesquisa, Formação e Prática(2ª ed.). São Paulo: Alínea.
  • Woods, P. (1995). La escuela por dentro: la etnografia en la investigación educativa Barcelona: Paidós.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    01 Dez 2017
  • Aceito
    01 Jun 2018
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