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A Psicologia Escolar e o trabalho do professor: a importância do cuidado

Introdução

Este trabalho consiste no relato parcial de um projeto de extensão universitária, uma ação que contemplou práticas relativas ao trabalho do psicólogo escolar com professores, especialmente no que diz respeito ao cuidado a esses profissionais. Visamos compartilhar possibilidades de atuação do psicólogo no campo educacional, considerando todo o percurso que a Psicologia Escolar Crítica tem construído, assim como buscando a contribuição da psicanálise de D. W. Winnicott para os desafios que as questões educacionais nos impõem (Freller, 2001Freller, C. C. (2001). Histórias de indisciplina escolar: o trabalho de um psicólogo numa perspectiva winnicottiana. São Paulo: Casa do Psicólogo.; Ribeiro, 2004Ribeiro, M. J. (2004). O ensinar e o aprender em Winnicott: a teoria do amadurecimento emocional e suas contribuições à psicologia escolar. Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.).

De acordo com Meira (2000Meira, M. E. M. (2000). Psicologia escolar: pensamento crítico e práticas profissionais. In Tanamachi, E.; Proença, M.; Rocha, M. M. (Orgs.), Psicologia e educação: desafios teórico-práticos(pp. 35-71). São Paulo: Casa do Psicólogo.), para que o psicólogo escolar consiga atuar de um modo crítico na educação, precisa não apenas das diversas contribuições do campo da psicologia, como também da pedagogia, filosofia, filosofia da educação e outras áreas,

... de forma a assumir um compromisso teórico e prático com as questões da escola já que, independentemente do espaço educacional que possa estar ocupando,... ela deve constituir-se em seu foco principal de reflexão. Isto significa que é do trabalho que se desenvolve no interior das escolas que emergem as grandes questões para as quais se deve buscar os recursos explicativos e metodológicos que possam orientar a ação do psicólogo escolar. (p. 36).

Relato

As práticas aqui relatadas tiveram início após um pedido da escola, feito diretamente à coordenadora de um projeto maior, na área de psicologia escolar, já em andamento nessa escola de ensino fundamental há mais de três anos, que consistia no atendimento psicoeducacional de alunos com queixas escolares encaminhados à clínica-escola de uma universidade pública do estado de Minas Gerais. Tal projeto incluía necessariamente a convivência próxima de seus integrantes - estagiários e supervisores - com os profissionais da escola, o que favoreceu uma relação de confiança mútua, criando a possibilidade de intervenção no interior desta.

O trabalho com os professores foi considerado uma prioridade pela direção da escola e sua equipe pedagógica, pois percebiam que aqueles estavam manifestando sinais de estresse, como cansaço crônico, impaciência com os alunos, dores no corpo sem causa identificada, insatisfação no trabalho.

É fato que, quanto mais sobrecarregado estiver o profissional, menores são as possibilidades de reflexão sobre si mesmo e sobre a realidade que o cerca. Com o professor não é diferente. A baixa remuneração e o excesso de trabalho em razão de jornadas duplas e, no caso das mulheres, a sobrecarga do trabalho doméstico ainda presente em nossa sociedade resultam em consecutivas licenças, esquiva de séries mais trabalhosas ou de alunos considerados difíceis, culpabilização das famílias pelas dificuldades escolares dos alunos, principalmente os mais pobres etc. Daí a necessidade de ações que possam favorecer a sua condição de saúde de modo a manter viva a criatividade, o sentido do trabalho e o pensamento crítico em relação à realidade em que está inserido.

No projeto de extensão universitária, procuramos pensar em ações que pudessem compor a proposta de trabalho na instituição investindo na pessoa do professor, com o intuito de fortalecê-lo para o enfrentamento dos desafios cotidianos, ainda que de modo incipiente. Contudo, não seria possível disponibilizar horários curriculares para se realizar atividades com os professores, visto que a escola funcionava em vários turnos e os alunos não poderiam ser dispensados, sendo inviável reunir todos os docentes. Pensamos, então, numa alternativa que foi aproveitar o horário do intervalo de recreio dos alunos.

Embora soubéssemos que esse era o único e curto momento para o professor pausar suas atividades de ensino, também era a possibilidade de que dispúnhamos para algum trabalho naquela ocasião. Daí a importância de elaborarmos uma proposta que realmente contemplasse a demanda trazida pela direção e fizesse um verdadeiro sentido para os professores. Relataremos a seguir alguns encontros realizados com as professoras1 1 Utilizamos o termo no feminino quando se trata do projeto, pelo fato de todas as participantes serem mulheres. nessas circunstâncias e que tiveram uma grande receptividade por parte das mesmas, assim como da direção escolar. A esse trabalho, realizado semanalmente durante um semestre, denominamos intervalo cultural.

As atividades eram planejadas para as professoras, buscando percebê-las nos seus interesses, dilemas, particularidades, e proporcionar-lhes vivências que favorecessem o contato consigo mesmas e gradativamente viessem a refletir na comunicação com o outro. As atividades eram cuidadosamente preparadas2 2 Semanalmente, os integrantes do projeto de extensão se reuniam para poderem pensar, a partir dos relatos e reflexões acerca do encontro anterior, como o próximo precisaria ser alinhavado e avançar no crescimento do grupo. vislumbrando que pudessem vir a ser, em algum momento, inspiradoras para as professoras em suas aulas, com outras e novas articulações.

Como falamos, essa ação do projeto de extensão em psicologia escolar acontecia durante apenas os 15 minutos do recreio escolar, por ser esse o único tempo disponível das professoras sem a presença das crianças. Participavam não apenas as professoras que estavam no seu intervalo, mas também as que estavam no horário de Módulo, além de outras funcionárias como a bibliotecária, a secretária e as coordenadoras - que estavam sempre por perto, ainda que não conseguissem acompanhar um encontro inteiro, devido às suas inúmeras tarefas na escola. Assim, os diversos trabalhadores da escola que estivessem na sala dos professores poderiam participar, o que invariavelmente acontecia.

As atividades propostas eram diversas, precisavam ser criativas e muito proveitosas nos nossos preciosos 15 minutos. Em cada encontro partíamos de “disparadores”, que poderia ser desde uma letra de música, um poema, uma receita culinária, um trecho de filme, um jogo, até um alongamento corporal, um artesanato em grupo etc.

Todos os dias, disponibilizávamos também o lanche - tanto pelo fato de ser o momento para o professor se alimentar como por já ser uma oportunidade de interação e por vezes um recurso da própria atividade a ser desenvolvida. O lanche era, assim, pensado como parte do trabalho. Por exemplo, no primeiro dia utilizamos uma receita de bolo de maçã e uvas passas, que foi servido e se mostrou uma novidade muito apreciada por aquele grupo, uma verdadeira aprendizagem tanto pelo sabor como pelo valor nutricional. No dia em que trabalhamos o alongamento corporal - quando conversamos sobre a importância de se cuidar do próprio corpo, de ter tempo para parar e fazer uma atividade física ou uma massagem - foi preparado, como parte de nosso lanche, um chá de erva-cidreira, considerado relaxante nessa região. Houve dias, ainda, em que a atividade era a discussão de um poema ou letra de música, e sua realização acontecia enquanto uma salada de frutas era montada a várias mãos e saboreada por todos.

A seguir, relataremos vivências de dois encontros - o terceiro e o quarto -, embora cientes da impossibilidade de traduzir em palavras todos os modos de comunicação que permearam esses momentos.

No terceiro encontro com o grupo, começamos oferecendo chá de erva-cidreira e dizendo a elas que este chá ajuda a relaxar o corpo, que algumas vezes o corpo pede para descansar, lembrando sinais que o corpo apresenta. Então, as professoras passam a nos contar das dores que aparecem no corpo: falam de dores de cabeça, nos ombros, na coluna e de diversas outras que associam a um momento específico do dia, que varia entre elas, mas apresenta algo em comum: é a hora do dia em que estão mais cansadas e/ou nervosas! Ressaltamos como tais sinais do corpo são comumente ignorados, como não somos acostumados a olhá-los e ouvir o que têm a dizer-nos, inclusive sobre a sua relação com o trabalho. As professoras comentam como consideram isso uma bobagem no dia a dia e não como sinais que estão dizendo algo sobre o que está ocorrendo com elas mesmas enquanto trabalhadoras3 3 Tais relatos remeteram-nos aos estudos sobre a saúde do trabalhador, como o de Yurevna (2011) sobre a síndrome de “incineração profissional”, que se manifesta em profissionais com grande necessidade de comunicação, diariamente, por muitas horas e com muitas pessoas, dentre esses profissionais está o professor. A autora explica que a síndrome é como um stress crônico gerado pelo trabalho, e está relacionada, por exemplo, a uma grande carga emocional e à falta de habilidade para manejar essa tensão. Daí, ela propõe formas de trabalhar com esses professores, inclusive sendo algumas de “auto-observação”, no sentido mesmo de um autocuidado, entretanto ressalta que, se o caso já estiver muito grave, faz-se necessário um encaminhamento especializado. .

Em um segundo momento desse mesmo encontro, convidamos o grupo a fazer algumas atividades de alongamento corporal, muito bem recebidas pela maioria. Em tal ocasião, um episódio nos chamou a atenção. Uma professora, ao ver algumas crianças espiando pela janela e imitando os alongamentos que os adultos faziam, dirige-se aos alunos, fecha a porta e diz enfaticamente: isso aqui é só para os professores! Essa fala da professora pode produzir diversos ecos, mas pareceu-nos que ela queria reservar aquele momento exclusivamente para si. As crianças, embora a nós não parecessem atrapalhar, foram percebidas pelas professoras como invasivas, tão raras são as oportunidades de receberem algum cuidado no contexto do trabalho e o quão valioso se mostrou aquele momento a elas reservado.

No quarto encontro, conversamos sobre o recesso que coincidiu com o intervalo cultural da semana anterior. O interessante é que a maioria do grupo, espontaneamente, deu sequência ao assunto, relatando que tinham aproveitado o recesso para cuidar um pouco de si mesmas, lembrando-se dos sinais de que havíamos falado. Disseram ter aproveitado o recesso tanto para relaxar, dormir, como até para ir ao médico. Ou até cansaram-se, mas de coisas diferentes da rotina escolar.

Nesse encontro, o disparador utilizado foi um vídeo de aproximadamente um minuto, trecho de um filme de animação infantil apreciado por crianças pequenas. Em tal episódio, sem falas, um garotinho era protegido e cuidado por seu amigo elefante ao caminhar de volta para casa. Após assistirmos ao vídeo, o grupo conversou entre si e surgiram muitas falas que mostraram que a maioria dos professores se identificou com a criança que estava sendo cuidada e não com o seu cuidador: “Ah, mas eu queria ter alguém pra quem correr sempre”, “Gostei! Vou arrumar um desse pra mim!” - referindo-se ao amigo elefante. Ao final desse encontro, uma professora, pela primeira vez, trouxe a escola para a discussão: “na educação eu vejo assim, não é que a gente protege, mas às vezes a gente [é que] precisa de um apoio.” Tal fala nos chamou a atenção tanto por ter aparecido um primeiro comentário sobre a escola como por mostrar explicitamente a necessidade de apoio - o trabalho do professor requer atenção contínua relativa ao seu desenvolvimento profissional, o que inclui o cuidado à pessoa que ele é4 4 Num texto chamado A cura, em que Winnicott dirige-se a médicos e enfermeiros, ao autor assinala: “acredito que cura, em suas raízes, signifique cuidado” (1999, p. 105), e discorre de modo muito interessante sobre essa premissa. .

Sabemos que para um professor ensinar crianças, ele precisa se identificar com as necessidades infantis e assim poder organizar o ensino de modo que alcance o aluno. Caso o professor esteja numa condição pessoal muito desfavorável, isso certamente vai interferir na sua possibilidade de comunicação com os estudantes. Consequentemente, o processo de ensino-aprendizado será afetado de algum modo, e os seus prejuízos serão proporcionais às dificuldades de adaptação do professor às necessidades dos alunos.

Ao término do projeto, avaliamos que o seu êxito deveu-se principalmente às experiências proporcionadas aos educadores por meio de um trabalho que teve uma simplicidade, com atividades comuns, mas pensadas para e a partir das pessoas que participavam dos encontros, o que foi a tônica do nosso planejamento e o que garantiu a participação do grupo. Os encontros, de baixo custo financeiro e realizados no curto tempo disponível naquela ocasião, propiciaram vivências significativas, discussões ricas e reflexões importantes, que apontam para o valor desse tipo de intervenção do psicólogo na escola.

Tanamachi e Meira (2003Tanamachi, E. R.; Meira, M. E. M. (2003). A atuação do psicólogo como expressão do pensamento crítico em psicologia e educação. In Antunes, M. A. M.; Meira, M. E. M. (Orgs.), Psicologia escolar: práticas críticas (pp.11-62). São Paulo: Casa do Psicólogo.) destacam as relações entre o sujeito e a educação como objeto do psicólogo que trabalhe em qualquer tipo de instituição educacional colocando como função deste contribuir, por meio de seus conhecimentos, para que a escola chegue mais perto de cumprir sua função social, ajudando não apenas que os estudantes aprendam o conteúdo, mas contribuindo para que a instituição seja capaz de formar cidadãos e desenvolver o pensamento crítico dos que passam por ela.

Considerações Finais

O psicólogo escolar pode estar numa posição privilegiada para o trabalho com professores, pelo fato de transitar por diversos campos do conhecimento, tendo em vista a complexidade da realidade educacional. Destacamos a utilidade da teoria de D. W. Winnicott sobre o amadurecimento humano para a área de psicologia escolar, lembrando a importância conferida por ele à “influência ambiental... determinando se a pessoa, ao buscar uma confirmação de que a vida vale a pena, irá partir à procura de experiências, ou se retrairá fugindo do mundo” (Winnicott, 1990, p. 149). O ambiente escolar, cuja provisão é de responsabilidade também do professor, da sua condição de trabalho, pode ser facilitador no sentido da integração das experiências pelas quais o aluno passa no contexto da escola, ou apresentar-se como invasivo, quando está desajustado ao aluno, dificultando o seu processo de crescimento.

Acreditamos que, à medida que os professores sentirem-se apoiados em seu trabalho, que também implica uma formação em muitos aspectos fundamentais não contemplados nessa ocasião, como os pedagógicos e políticos, os estudantes, pelos quais as instituições educacionais são responsáveis, serão os maiores beneficiários.

Referências

  • Freller, C. C. (2001). Histórias de indisciplina escolar: o trabalho de um psicólogo numa perspectiva winnicottiana São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Meira, M. E. M. (2000). Psicologia escolar: pensamento crítico e práticas profissionais. In Tanamachi, E.; Proença, M.; Rocha, M. M. (Orgs.), Psicologia e educação: desafios teórico-práticos(pp. 35-71). São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Ribeiro, M. J. (2004). O ensinar e o aprender em Winnicott: a teoria do amadurecimento emocional e suas contribuições à psicologia escolar Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
  • Tanamachi, E. R.; Meira, M. E. M. (2003). A atuação do psicólogo como expressão do pensamento crítico em psicologia e educação. In Antunes, M. A. M.; Meira, M. E. M. (Orgs.), Psicologia escolar: práticas críticas (pp.11-62). São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Yurevna, S. I. (2011). Ayuda psicológica al pedagogo en la superación del síndrome de “incineración profesional”. Psicologia Escolar e Educacional, 15(1), 161-167. Recuperado:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=1413-8557&nrm=iso& rep=&lng=pt
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=1413-8557&nrm=iso& rep=&lng=pt
  • Winnicott, D. W. (1990). Natureza humana Rio de Janeiro: Imago.
  • 1
    Utilizamos o termo no feminino quando se trata do projeto, pelo fato de todas as participantes serem mulheres.
  • 2
    Semanalmente, os integrantes do projeto de extensão se reuniam para poderem pensar, a partir dos relatos e reflexões acerca do encontro anterior, como o próximo precisaria ser alinhavado e avançar no crescimento do grupo.
  • 3
    Tais relatos remeteram-nos aos estudos sobre a saúde do trabalhador, como o de Yurevna (2011Yurevna, S. I. (2011). Ayuda psicológica al pedagogo en la superación del síndrome de “incineración profesional”. Psicologia Escolar e Educacional, 15(1), 161-167. Recuperado:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=1413-8557&nrm=iso& rep=&lng=pt.
    http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
    ) sobre a síndrome de “incineração profissional”, que se manifesta em profissionais com grande necessidade de comunicação, diariamente, por muitas horas e com muitas pessoas, dentre esses profissionais está o professor. A autora explica que a síndrome é como um stress crônico gerado pelo trabalho, e está relacionada, por exemplo, a uma grande carga emocional e à falta de habilidade para manejar essa tensão. Daí, ela propõe formas de trabalhar com esses professores, inclusive sendo algumas de “auto-observação”, no sentido mesmo de um autocuidado, entretanto ressalta que, se o caso já estiver muito grave, faz-se necessário um encaminhamento especializado.
  • 4
    Num texto chamado A cura, em que Winnicott dirige-se a médicos e enfermeiros, ao autor assinala: “acredito que cura, em suas raízes, signifique cuidado” (1999, p. 105), e discorre de modo muito interessante sobre essa premissa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    9 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    17 Fev 2018
  • Aceito
    10 Maio 2018
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