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ENTREVISTA COM PROF. DR. HERCULANO RICARDO CAMPOS

Entrevista con Prof. Dr. Herculano Ricardo Campos

RESUMO

Com atuação consolidada na área da Psicologia Escolar e Educacional, o Professor Doutor Herculano Ricardo Campos construiu significativo itinerário como pesquisador e docente, com destaque aos estudos sobre violência e práticas sociais e educacionais com crianças e adolescentes. Nosso entrevistado da Seção História da Revista Psicologia Escolar e Educacional é Coordenador Atual do Grupo de Trabalho Psicologia e Políticas Educacionais da ANPEPP - Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia, no biênio 2018-2020 e foi cedido pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte para o governo do estado do Rio Grande do Norte, para presidir a Fundação Estadual do Atendimento Socioeducativo - FUNDASE. É autor de diversas produções acadêmicas e técnicas, e orientou teses e dissertações que analisam as políticas públicas de educação, infância e adolescência no Brasil, sob a perspectiva histórico-cultural. Sua relevante contribuição para o conhecimento da área pode ser expressa nesta entrevista realizada por Fauston Negreiros.

Palavras-chave:
Psicologia Escolar; violência escolar; crianças e adolescentes

RESUMEN

Con un desempeño consolidado en el área de Psicología Escolar y Educativa, el profesor Doctor Herculano Ricardo Campos construyó un itinerario significativo como investigador y professor, con énfasis en estudios sobre violencia y prácticas sociales y educativas con niños y adolescentes. Nuestro entrevistado de la Sección de Historia de la Revista de Psicología Educativa y Educativa es el Coordinador Actual del Grupo de Trabajo de Psicología y Políticas Educativas de ANPEPP - Asociación Nacional de Investigación y Estudios de Posgrado en Psicología, en el bienio 2018-2020 y fue proporcionado por la Universidad Federal de Río Grande do Norte al gobierno del estado, para presidir la Fundación Estatal de Asistencia Social y Educativa - FUNDASE. Es autor de varias producciones académicas y técnicas, y ha dirigido tesis y disertaciones que analizan las políticas públicas sobre educación, infancia y adolescencia en Brasil, desde la perspectiva histórico-cultural. Su contribución relevante al conocimiento del área se puede expresar en esta entrevista de Fauston Negreiros.

Palabras clave:
Psicología escolar; violencia escolar; niños y adolescents

ABSTRACT

With a consolidated performance in the area of School and Educational Psychology, Herculano Ricardo Campos, PhD built a significant itinerary as a researcher and professor, with emphasis on studies on violence and social and educational practices with children and adolescents. Our interviewee from the History Section of the Educational and Educational Psychology Journal is Current Coordinator of the Psychology and Educational Policies Working Group of ANPEPP - National Association of Research and Graduate Studies in Psychology, in the biennium 2018-2020 and was provided by the Federal University of Rio Grande do Norte to the state government, to preside over the State Foundation for Social and Educational Assistance - FUNDASE. He is the author of several academic and technical productions, and has guided theses and dissertations that analyze public policies on education, childhood and adolescence in Brazil, from a historical-cultural perspective. His relevant contribution to the knowledge of the area can be expressed in this interview by Fauston Negreiros.

Keywords:
School Psychology; school violence; children and adolescents

Fauston Negreiros: Herculano, sinto-me honrado em realizar esta entrevista com você. Poderia relatar um pouco sobre seu itinerário de formação e atuação em Psicologia Escolar?

Herculano: Fauston, é motivo de grande satisfação pra mim ser entrevistado por você, para esta publicação da Revista da ABRAPEE, e poder dizer um pouco do meu percurso na Psicologia, particularmente na Psicologia Escolar. O interesse pela área se consolidou ainda durante a graduação em Psicologia, cursada em Natal, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), no período entre 1979 e 1983. Naquela época o Brasil vivia um momento muito especial da sua história, marcado pelo recuo da ditadura militar iniciada em 1964 e pelas demandas de reorganização democrática do país, com amplos setores sociais assumindo o protagonismo na construção do que se queria que fosse uma nova realidade nacional, calcada na liberdade, na participação e no crescimento. Naquele contexto os estudantes e os professores, ou melhor, a academia - com a SBPC cumprindo papel determinante no contexto nacional- exercia papel diferenciado, de modo que o engajamento na luta política se configurava complemento essencial ao que era visto nas aulas, nas salas de aulas; os diretórios de estudantes e os centros acadêmicos estavam abertos ao aprendizado e ao exercício da política, à articulação teoria-prática, como era comum dizer.

Junto a amigos e amigas queridas eu vivi intensamente toda aquela ebulição, inclusive assumindo a direção de alguns órgãos estudantis etc. Não obstante toda minha Educação Fundamental ter sido cursada em uma escola privada, religiosa e burguesa, foi no interior dela que obtive meu ‘batismo de fogo’ político, possibilitado pelo encaminhamento feito por um dos padres/professores para participar de ‘grupos de jovens’ da ‘pastoral da juventude’. Para minha sorte a Pastoral desenvolvia suas ações, na época, afinada com as diretrizes da teologia da libertação, com as comunidades eclesiais de base: rezávamos, mas também analisávamos criticamente a realidade social. Assim, ao chegar à universidade e me deparar com os debates, locais e nacionais, as propostas de organização estudantil e partidária, as reivindicações estudantis, a ebulição cultural, o questionamento e a transformação de valores, eu me senti bastante atraído a participar daquilo tudo.

O clima político invadia as salas de aula da universidade, de modo que separávamos os professores que adotavam um pensamento crítico e transformador daqueles que se faziam de cegos, surdos e mudos ante a realidade social de opressão e repressão, vistos como conservadores. Do ponto de vista teórico, é dessa época a revitalização do pensamento marxista e marxiano, os quais serviam de baliza, de filtro, tanto para a leitura da dinâmica social, quanto para nortear a crítica a certas teorias no âmbito da Psicologia, que nos eram apresentadas como verdade inquestionável, sem um contraponto de caráter crítico, sem uma reflexão, levando a que assistíssemos às aulas com certo ar de enfado e resignação. Ao contrário, ecoando a importância que muitos de nós estudantes emprestávamos ao engajamento político e ao compromisso social, um grupo inesquecível de professores do nosso Curso oportunizava a reflexão crítica a respeito da Psicologia, da Educação, do conhecimento, nos fazendo pensar a diferença entre o professor policial e o professor comprometido com a qualidade de vida dos estudantes e de suas famílias, sobre o sentido de uma escola para o povo, de uma educação freiriana. Nos fascinava a descoberta dos escritos de Saviani, de Maria Helena Patto, de Sílvia Lane etc.; a crítica da teoria do capital humano, da escola dualista, do fracasso escolar, da Psicologia na escola.

Em decorrência dessa sinergia entre realidade social, engajamento político e formação crítica, notadamente na área da Educação, ainda antes de concluir a graduação eu já era professor estadual em escolas de formação de professores, ministrando as disciplinas de Psicologia e Filosofia da Educação. Pouco mais de dois anos após concluir meu Curso, eu chegava a São Paulo e à PUC para fazer Mestrado em Psicologia Escolar - o qual não foi concluído. Durante minha estada paulista atuei como orientador de estágio na área de escolar na Universidade de Guarulhos.

A opção estava dada e, não obstante os acidentes de percurso e as voltas do rio da vida, ela se consolidou ao longo dos anos e se revela até o presente momento. Posteriormente, de volta a Natal depois de oito anos, concluí o Mestrado e o Doutorado em Educação na UFRN, sendo que este último foi cursado concomitante com o exercício da docência no Curso de Psicologia da UFRN, onde passei a trabalhar depois de ser aprovado em concurso para a área de Psicologia Escolar. Ali, ministrei diferentes disciplinas e também fui orientador de estágio na área; durante muitos anos coordenei a Especialização em Psicopedagogia, finalizada em face das contradições com a atuação em Escolar. Em parceria com a Professora Rosângela Francischini criamos, no início dos anos 2000, o Núcleo de Estudos Sócio-Culturais em Infância e Adolescência, que mais recentemente, no contexto dos meus estudos de pós-doutorado com a Professora Marilda Facci, foi atualizado e reestruturado, passando a se chamar Núcleo de Estudos em Psicologia Histórico-Cultural.

Fauston Negreiros: Como ocorreu sua inserção nos estudos sobre violência e práticas sociais e educacionais com crianças e adolescentes?

Herculano: Bem, a esse respeito há dois aspectos a considerar. Primeiro, é importante esclarecer que minha atuação no campo da infância e da adolescência pobres teve início bem antes de eu tratar o tema no contexto da academia. Durante minha estada de quase oito anos em São Paulo, inicialmente para fazer o Mestrado na PUC/SP, tive a oportunidade de compor a gestão de duas creches, a primeira das quais a Creche Itaquera II, administrada pela Secretaria do Menor - gestão de Alda Marco Antônio-, na qual fui vice-diretor. Depois de ser demitido no contexto de uma greve liderada pelo SITRAEMFA, da qual participei mesmo tendo cargo de gestão, fui trabalhar na cidade de Santo André/SP, dirigindo a Creche Cata Preta, que na oportunidade era conveniada com a prefeitura - primeira gestão de Celso Daniel-, embora administrada pelo Rotary Clube.

De Santo André somente saí para assumir - depois de um processo seletivo - a direção do Centro de Convivência da Praça, em São Paulo, no bairro de Santo Amaro, durante a gestão de Luíza Erundina na prefeitura e de Rosalina Santa Cruz na Secretaria do Bem Estar Social. O Centro era um equipamento municipal aberto ao público, mas com foco na infância e na adolescência pobres que morava e que circulava pelo bairro. O insucesso da campanha para eleger Eduardo Suplicy como sucessor de Erundina e uma proposta de trabalho em Natal resultou no meu retorno a esta cidade, no início de 1993. Foi então que me engajei em diferentes iniciativas voltadas a esse público de crianças e adolescentes: no Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, desenvolvendo trabalho enquanto educador de rua; na Casa Renascer, como parceiro orientador do trabalho junto a adolescentes do sexo feminino vítimas de abuso ou exploração sexual; no Fórum de Erradicação do Trabalho Infantil, sob a orientação da então Delegacia Regional do Trabalho; no SOS-Criança, programa governamental dirigido pelo Pe. Sabino Gentili - que fora meu professor no Colégio Salesiano e que me levara para a Pastoral de Juventude -, de atenção à violação de direitos de crianças e adolescentes; e em entidades da sociedade civil, no campo da defesa de direitos de crianças e adolescentes.

O segundo aspecto tem a ver com meu contexto de trabalho na UFRN. Pesquisei e discuti o fenômeno do trabalho infantil no doutorado em Educação, na UFRN, sob a orientação do Prof. Oswaldo YamamotoYamamoto, O. H.; Campos, H. R. (1997). Novos espaços, práticas emergentes: um novo horizonte para a psicologia brasileira?Psicologia em Estudo, 2 (2), 89-111.. Nessa oportunidade acessei a produção de Irene e de Irma Rizzini sobre infância no Brasil, depois de conversar com a primeira na Universidade Santa Úrsula - USU -, no Rio, em Botafogo. Também li muita análise histórica sobre o trabalho no Brasil, inclusive a organização social; além das análises sobre a constituição do Brasil, do seu povo e da constituição da estrutura de dominação. Na sede da OIT, em Brasília, adquiri amplo material sobre a realidade da exploração do trabalho infantil em diferentes regiões do globo. O professor Oswaldo me municiava de literatura lançada na Europa, em países como França e Inglaterra. Após o curso, optei pela ampliação da pesquisa na área da infância e da adolescência, uma das razões que me fez engajar na criação do Nescia, com Rosângela.

Era um momento de grandes apostas nas políticas sociais em torno ao Estatuto da Criança e do Adolescente, de modo que alguns encontros/aulas do Núcleo são memoráveis, com estudantes nos corredores, querendo participar. Muitas pesquisas surgiram e houve diversificação de temáticas. Uma que se consolidou, notadamente em face da grande polêmica que tomava conta da sociedade, na época, inclusive sendo muito explorada pela mídia, foi o tema da violência nas escolas. Foi estruturada uma pesquisa e um projeto de extensão, com estudantes da iniciação científica e outros voluntários, que ao mesmo tempo em que obtinha informações sobre o tema junto à comunidade de diferentes escolas, fazia grupos de escuta, rodas de conversas com pais, professores e estudantes de escolas afastadas do centro da cidade de Natal/RN. Os encontros eram realizados aos sábados, pela manhã, para permitir a presença dos pais trabalhadores. Nosso grupo se dividia, de modo que alguns estudantes desenvolviam atividades com as crianças que eram levadas pelos familiares, outros coletavam as respostas aos questionários e eu com mais alguns fazíamos a escuta nas rodas de conversa. Obtivemos relatos impressionantes, que revelavam uma dimensão muito ampla da violência, bem além do que se observava no foco midiático. A orientação teórica teve seu partis pris na Sociologia, na reflexão de Debarbieux sobre a constituição do conceito de ‘violência na escola’ em face de uma série de eventos de depredação, nas escolas francesas. Aqui em Natal, onde diferentes setores da sociedade falavam de uma violência nas escolas, queríamos saber, primeiro, se ela existia, e depois, qual sua feição. Nesse contexto também se discutiu o bullying, uma relação mediada por sentimentos opostos, de submissão e de opressão, em geral marcada pela violência e que tem na escola um locus privilegiado de ocorrência. Autores como Dan Olweus, Cléo Fante e muitos outros orientavam a reflexão, que via de regra caracterizava os personagens da relação e apontava para a necessidade de se informar os atores educacionais para que ficassem atentos, preparados para lidarem com os personagens e com os efeitos de tais práticas: era aos psicólogos escolares que se dirigia a demanda formativa e a construção das estratégias de atendimento.

Tal diversificação de foco em torno ao tema inicialmente configurado, da criança e do adolescente pobres, foi em muito devida às demandas dos mestrandos, por um lado, e dos alunos da especialização em psicopedagogia, por outro, que precisavam escrever sua monografia como condição para obter o título de especialista. No meu entender, a abordagem da temática inicialmente posta foi significativamente ampliada, e a respeito desse processo muito ficou registrado na produção desenvolvida com o GT Psicologia Escolar e Educacional, da ANPEPP. Naquele contexto, foram muito significativas as parcerias entre a universidade, o movimento social e organizações governamentais e não-governamentais, que tivemos a sorte de oportunizar. Como exemplo cito uma, desenvolvida junto com o Ministério Público do RN, que foi a criação de uma especialização na área da infância e adolescência, voltada aos operadores dessa área, como juízes, promotores, delegados, conselheiros etc. Enfim, como não poderia deixar de ser, a inserção nessa área e o foco dado aos temas a ela relacionados têm sido fruto da relação com atores diversos; constitui um processo cuja vitalidade se revela no fato de hoje me encontrar cedido pela UFRN para o governo do estado, para presidir a Fundação Estadual do Atendimento Socioeducativo - FUNDASE.

Fauston Negreiros: Como você avalia atualmente as políticas de atendimento socioeducativo no Brasil?

Herculano: A política que dá as diretrizes desse atendimento é o SINASE, referenciado no ECA. A proposição legal é excelente, chegando a minúcias inclusive arquitetônicas com vistas ao atendimento do adolescente em conflito com a lei. Porém, ainda se observa um hiato muito grande entre o texto da lei e a realidade da sua aplicação, entre o que é previsto e o que é efetivamente disponibilizado pela estrutura do estado. Sob o meu ponto de vista, uma melhor e mais ampla compreensão dessa realidade requer a adoção de dois partis prix teóricos: primeiro, o entendimento de que a realidade do adolescente em conflito com a lei constitui uma expressão da questão social, demandando do estado o atendimento via política de assistência - não obstante a diretriz para que esse atendimento tome uma feição intersetorial, transversalizado pela educação. E segundo, olhar para as políticas públicas sob o capitalismo como sendo elas um instrumento no enfrentamento da questão social, de modo a ressaltar que a previsão legal está sempre sujeita aos efeitos da correlação das forças de diferentes atores e interesses que disputam o fundo público, levando a que em certas conjunturas a política se expanda, e em outros se retraia. No que trata da socioeducação como política, enquanto sua expansão acena com a consolidação da intersetorialidade e da perspectiva educativa em diferentes modalidades e níveis, sua retração somente possibilita a contenção, a ênfase no elemento ‘segurança’, disciplina etc. Como o adolescente em conflito com a lei é um efeito da forma como é organizada a produção e distribuída a riqueza na nossa sociedade, se por um lado ele se constituirá fenômeno enquanto subsistirem esses modelos, por outro lado a atenção a ele dispensada depende essencialmente de fatores extrínsecos à sua pessoa e à sua condição, mas intrínsecos às características econômico-políticas com que se apresenta a estrutura social em conjunturas específicas.

Não obstante a pretensão expressamente pedagógica, educacional, a realidade social atual contribui para que a socioeducação lide com um público que transita entre a necessidade de cuidado e a de contenção, da assistência e da segurança. Crescentemente, parcela dos filhos da pobreza é levada à transgressão do regime jurídico, inclusive pelo papel exercido pelo crime organizado nos territórios, onde ao mesmo tempo em que alicia, oportuniza trabalho e renda. Em geral invisível aos olhos da sociedade e padecendo da ausência de cobertura de políticas básicas, como saúde e educação, reza a lei que quando entra no sistema socioeducativo o/a adolescente deve ser alvo de um conjunto intersetorial de ações visando seu desenvolvimento digno, inclusive de formação para o trabalho, como se a realidade a ser construída a partir daí de certa forma se revestisse de um caráter compensatório em face da sua desassistência histórica. Portanto, esses meninos e meninas contraditoriamente adquirem status de cidadão justamente quando têm restringida ou suprimida sua liberdade, e é sob tal condição que se efetiva a grande aposta dos atores da socioeducação, de que a educação, caráter do qual deve se revestir todo trabalho nesse contexto, possibilite aos adolescentes sob medida socioeducativa uma avaliação e uma crítica das ações de transgressão pelas quais está sendo punido, e oriente no sentido da reformulação do seu projeto de vida, na perspectiva do reordenamento dos valores, do aprendizado de estratégias produtivas, da valorização da escolarização como caminho de inserção social.

Se por um lado a socioeducação é trabalho para educadores, para formadores imbuídos de nobres princípios de respeito ao indivíduo e de valorização do humano que se desenvolve nos adolescentes, o fato destes se encontrarem sob medida socioeducativa porque transgrediram o regime jurídico burguês requer dos trabalhadores, da mesma forma, um perfil e uma prática condizentes com a estrutura de segurança em que estão inseridos - educadores e adolescentes. Assim, a dimensão educativa da socioeducação encontra significativo obstáculo ao seu exercício, quanto mais em um contexto sócio-político como o atual, em que se observa expressiva regressão dos investimentos na assistência, na educação, na cultura e mesmo no trabalho etc., e por outro lado uma crescente ênfase na segurança, na censura, na contenção, em valores conservadores etc. Cada vez mais, se observa o distanciamento entre a essência do previsto no texto legal e a realidade do cotidiano do sistema socioeducativo em cada estado. Ressaltam experiências isoladas, de sucesso pontual em um ou outro aspecto.

Enfim, também tendo em vista a contradição que se embute nas políticas de estado, que por um lado se constituem importante instrumento com vistas a amaciar as demandas dos trabalhadores frente o capital, escondendo as características dele e disfarçando seus efeitos, e por outro lado representam conquistas efetivas desses mesmos trabalhadores na perspectiva de vida mais digna, a política da socioeducação requer negociação e trabalho permanente pela sua efetivação e pela sua qualificação.Fundamental, ao nosso ver, é compreender e inserir essa luta no contexto mais amplo das ações por uma sociedade mais justa, mais igualitária, sem se iludir com o mero aperfeiçoamento legal, a exemplo de roupa nova em corpo degradado.

Fauston Negreiros: Em sua trajetória enquanto pesquisador, professor de Psicologia que investiga sobre o tema, quais contribuições a área pode trazer à temática da violência escolar?

Herculano: Acredito que discutir essa temática tendo em vista a área de escolar e educacional requer explicitar, antes de mais nada, o que entendo ser a contribuição que deve ser dada ao contexto educativo, notadamente o formal, pelo psicólogo que atua nessa interface. Com base na reflexão de Vigotski a respeito da relação entre os processos de desenvolvimento e a escolarização formal, entendo que cabe à área contribuir com a qualificação das mediações construídas no processo ensino-aprendizagem, visando o desenvolvimento, o aperfeiçoamento dos processos de pensamento. Assim, dado o contexto em que atua, entendo ser necessário ao psicólogo considerar os sentidos que assumem as violências no interior desse contexto, de modo que a prevenção e o enfrentamento delas configurem mais uma estratégia pedagógica, educacional, em face da qual os diferentes atores da comunidade escolar precisam se envolver, participar.

A violência que se manifesta na escola, dita violência escolar, que pode ser institucional, proveniente de atores externos ao contexto educacional, ou mesmo fruto dos membros da comunidade escolar, precisa ser entendida como um epifenômeno da violência que permeia as relações sociais de forma mais ampla. Sob esse ponto de vista, o foco prioritário da atenção precisa ser essa dinâmica geradora, sem o que o cuidado no âmbito da escola se configurará extremamente parcial. Não obstante, tendo em vista que o contexto escolar se diferencia pela função do ensino e da aprendizagem e pela grande concentração de crianças e adolescentes no seu interior, é a partir da função social da educação escolar e da forma como se organiza a instituição escolar que precisam ser pensadas as estratégias para enfrentamento da violência na escola. Ou seja, a violência é uma só, entrando em simbiose e assumindo a feição do contexto em que se manifesta, por isso fazendo crer que é diversa, bem como que seu combate localizado pode levar ao seu fim.

No projeto de extensão antes referido, a escuta junto a diferentes atores da comunidade escolar revelou, por exemplo, que muito do que era provocado por professores e entendido como manifestação de violência traduzia vivências pessoais traumáticas, padrões de comportamento consolidados no decorrer de anos de convívio com os membros da família. Os familiares, por seu turno, apontavam as manifestações de violência que envolviam seus filhos como fruto, por exemplo, do tempo livre de que dispunham, inclusive em decorrência do cancelamento de aulas, da falta de professores etc., que os levavam ao convívio com indesejados personagens das ruas. Em que pese depoimentos dessa ordem se referirem a situações que não necessariamente dizem respeito ao contexto escolar, entendo que é sua relação com esse contexto que demanda dos educadores, como o psicólogo escolar, a necessidade de intervenção

Assim, não obstante o trabalho do psicólogo escolar ser muito limitado para fazer frente às condições sociais geradoras de violência, ainda que sua atuação seja de fato parcial, não resta dúvida quanto a que uma estratégia necessária, por exemplo, seja a imersão na realidade social e familiar dos estudantes, o conhecimento dos desafios a que estão sujeitos cotidianamente, daquilo que constitui violência para eles. A escuta dos diferentes atores da comunidade escolar e a reflexão coletiva sobre estratégias possíveis de enfrentamento das violências que os afligem é uma importante demanda para o psicólogo. A oportunização de reflexão sobre padrões de relação interpessoal é outra demanda importante, visto que muitos desses padrões, mesmo quando permeados pela violência, são vivenciados pelas pessoas de forma naturalizada, como se fossem a melhor e a única forma de relação; e muitas outras ações dessa natureza. Todas elas, ressalto, precisam ser discutidas com professores, gestores, orientadores pedagógicos e pais, tendo em vista sua necessária articulação com o processo ensino-aprendizagem e o desenvolvimento dos estudantes.

Fauston Negreiros: Para você, quais desafios ainda precisam ser enfrentados diante da temática?

Herculano: Espero ter deixado claro que o psicólogo que atua na interface da educação tem um objetivo a cumprir, qual seja contribuir para a qualificação dos processos de pensamento dos estudantes, notadamente via a qualificação das mediações pedagógicas. Assim, questões ou desafios como a violência somente fazem sentido ser enfrentados tendo em vista essa função educativa do psicólogo, diretamente articulada com função de mesma ordem que é assumida pelos demais atores do contexto escolar. Esse aspecto acena com o desafio da construção de uma efetiva prática educacional pelo psicólogo, significativamente diferente da prática clínica que parece resumir o fazer psicológico e que ainda encontra grande aceitação no interior das escolas. As discussões que apontam a importância da educação formal para o desenvolvimento constituem o lastro teórico a ser trabalhado na formação acadêmica, de modo a se possibilitar um exercício profissional seguro e consequente para os psicólogos que atuam na interface da educação.

Fauston Negreiros: Como um dos pioneiros em Psicologia Escolar no Nordeste e referência na área, como compreende a expansão desse campo na região?

Herculano: Na verdade, me faltam dados consistentes que possibilitem dizer dessa expansão. Creio que um levantamento a respeito traria significativa contribuição para a área: quem atua como psicólogo escolar, em que tipo de instituição, desenvolvendo quais atividades, onde fez a formação etc. Não obstante, merecem reflexão duas conquistas a respeito do exercício profissional do psicólogo escolar, seja pelo indicativo do quanto ainda temos que avançar, seja pela forte sinalização positiva no sentido do quanto temos avançado e angariado reconhecimento com nosso diferencial de trabalho.

Primeiro, me refiro à forte inserção de profissionais dessa área nos Institutos Federais - Ifs -, como é revelado na série de publicações em que você, Fauston, é um dos organizadores. Por um lado, merece destaque o grande número de profissionais concursados para atuar com o espectro educacional - e não apenas no nordeste -, o que é uma evidência da importância atribuída à psicologia por esses centros de formação, e mesmo uma aposta no sentido de que a expertise dos psicólogos possa contribuir com o aperfeiçoamento dos processos vividos no interior daquelas instituições. A ampliação dos níveis de formação, com a correlata abertura para contingentes populacionais que tradicionalmente não se caracterizavam como clientela desses Institutos, levou a um investimento na perspectiva de obter suporte para os novos desafios que se apresentaram. Por outro lado, contudo, merece atenção o fato de que muitos dos profissionais que foram trabalhar nessas instituições de caráter educativo ainda continuam a desenvolver uma prática marcada pelas características da clínica, tanto revelando uma inadequada seleção dos candidatos nos concursos, quanto uma falta de clareza sobre a real contribuição que a Psicologia pode oferecer ao processo ensino-aprendizagem na sua diversidade, bem como uma incipiente formação profissional no que toca à peculiar realidade dos contextos educacionais - notadamente os contextos formais.

Em segundo lugar, quero dizer da grata satisfação que foi acompanhar o primeiro concurso na UFRN para psicólogo escolar - não docente -, cuja expertise apontada desde os conteúdos da prova escrita sinalizava claramente para um profissional conhecedor dos processos de desenvolvimento dos estudantes, por meio das ações educacionais; e depois, quando da prática desse profissional, observar seu trabalho envolvendo professores, coordenadores, famílias, no desafio de contribuir com a dinâmica de sala de aula, o ensino e a aprendizagem. Entendo que a diretriz adotada nesse concurso revela, por um lado, a frustração do setor - a escola de aplicação - com o trabalho de um outro profissional da Psicologia que lá atuou, de feição notadamente clínica. E por outro, a inserção que a concepção de psicólogo escolar educador vem conquistando, fruto da formação na graduação e do estágio desenvolvido em diferentes contextos da universidade, por meio do que se revelam as potencialidades da área e se ajuda a configurar o perfil de um profissional afeto às questões de desenvolvimento, de aprendizagem, de ensino.

Enfim, essas são duas experiências a partir das quais é possível falar em expansão do campo de escolar. Em que pese sua aparente contradição, sua essência é complementar, constituindo o que entendo ser a característica do avanço da área. Alguns indicadores dispersos e assistemáticos parecem corroborar com minha opinião, ainda que eu selecione esses indicadores. Primeiro, a concentração em um pequeno número de programas de pós graduação da região as teses e dissertações que tratam de políticas educacionais, como revelado na pesquisa levada a cabo pelo nosso GT/ANPEPP, Psicologia e Políticas Educacionais. Segundo, o escasso número de profissionais da região nos GTs da ANPEPP que pesquisam no campo de escolar e educacional - ainda que eu não disponha de dados para confirmar essa informação. Terceiro, tomando como referência o principal congresso brasileiro na área de escolar e educacional, o da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional - ABRAPEE -, mais uma vez a concentração em um número reduzido de estados dos pesquisadores e mesmo estudantes que apresentam trabalhos etc. E ainda, o limitadíssimo número de estados da região que contam com uma Representação da ABRAPEE. Como ressaltei antes, a falta de pesquisas de caráter regional a respeito da inserção etc. do psicólogo escolar pode estar comprometendo minha impressão, que é de que a expansão da área no nordeste ainda carece de muito esforço. Quem sabe a gente se anima a fazer uma pesquisa interinstitucional para tratar do tema!?

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    26 Fev 2020
  • Aceito
    11 Maio 2020
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