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DESCONSTRUINDO VERDADES - CULTIVANDO POSSIBILIDADES: UM RELATO DE ESTÁGIO EM PSICOLOGIA ESCOLAR

Desconstruir verdades - cultivando posibilidades: un relato de pasantía en psicología

RESUMO

Este escrito tem a intenção de relatar as experiências de estágio em Psicologia Escolar do curso de Psicologia da Universidade Feevale/RS. A metodologia baseou-se em acompanhamentos semanais à escola, intervenções coletivas e individuais com todos os agentes da instituição, observações participantes, registros de imagem e áudio e registros em diários de campo. A primeira atividade foi um quebra-gelo, efetivada com todos os alunos da escola e chamava-se “o chocolate”. A segunda atividade se deu coletivamente e buscava a reflexão sobre o futuro profissional. A terceira foi sobre “falar dos sentimentos”; a quarta buscou produzir o “jardim” e a quinta foi uma interação buscando identificar o ponto de florescimento dos elementos semeados. As atividades buscavam promover discursos outros acerca da necessidade ou não de um laudo psicológico; desestabilizando tal certeza e tornando possível uma realidade entre a binariedade do saudável e do patológico, um papel fundamental para a Psicologia Escolar.

Palavras-chave:
Psicologia Escolar; fracasso escolar; intervenção psicológica

RESUMEN

En este estudio se tiene la intención de relatar las experiencias de pasantía en Psicología Escolar del curso de Psicología de la Universidad Feevale/RS. La metodología se basó en acompañamientos semanales a la escuela, intervenciones colectivas e individuales con todos los agentes de la institución, observaciones participantes, registros de imagen y audio y registros en diarios de campo. La primera actividad fue un rompe-hielo, realizada con todos los alumnos de la escuela y se llamaba “el chocolate”. La segunda actividad sucedió colectivamente y buscaba la reflexión sobre el futuro profesional. La tercera fue sobre “hablar de los sentimientos”; la cuarta buscó producir el “jardín” y la quinta fue una interacción buscando identificar el punto de florecimiento de los elementos sembrados. Las actividades buscaban promover discursos otros acerca de la necesidad o no de un laudo psicológico; desestabilizando tal certeza y tornando posible una realidad entre la binaria del saludable y del patológico, un papel fundamental para la Psicología Escolar.

Palabras clave:
Psicología Escolar; fracaso escolar; intervención psicológica

ABSTRACT

This paper aims to provide a report on the internship experiences in School Psychology of the Psychology course of Feevale University / RS. The methodology was based on weekly school visits, collective and individual interventions with all the institution’s agents, observations on participants, audio and image records and field journal records. The first activity was an icebreaker with all the students of the school. It was called “the chocolate”.The second activity took place collectively and promoted reflection on the professional future. The third activity was on “talking about feelings”.The fourth activity produced the “garden”.The fifth activity was an interaction seeking to identify the flowering points of the “planted” words.The activities aimed to promote other discussions on the need for psychological support or not; destabilizing such certainty and making possible a reality between the binary nature of the healthy and the pathological, a fundamental role for School Psychology.

Keywords:
School Psychology; academic failure; psychological intervention.

INTRODUÇÃO

Este escrito tem a intenção de relatar as experiências de estágio em Psicologia Escolar de duas graduandas do curso de Psicologia da Universidade Feevale/RS ao longo de 2014 e 2015. Apesar de a atuação das estagiárias ter se dado em anos distintos, ela ocorreu de forma processual, acompanhada pela orientação semanal da mesma professora, tendo suas atividades planejadas considerando objetivos comuns. A metodologia baseou-se em acompanhamentos semanais à escola, intervenções coletivas e individuais com todos os agentes da instituição, observações participantes, registros de imagem e áudio e registros em diários de campo.

Resgatando o histórico dos primeiros contatos da escola com o serviço de Psicologia que a Universidade disponibilizava para a comunidade, a demanda que chegavapor meio da diretora versava acerca da preocupação frente ao fracasso escolar demonstrado pelo baixo índice de desenvolvimento escolar atingido pela escola e apontado pelo IDEB. Outro elemento presente nas queixas da diretora e percebido por ela como aspecto fundamental para a atuação das estagiárias, falava da representação social que a Psicologia assumiu por décadas dentro dos ambientes escolares: a tentativa de normatização. Diante disso, e tendo como agravante a herança da cultura higienista que ainda impregna os setores da educação e da saúde, sua maior expectativa era que pudéssemos muni-la de laudos psicológicos para, assim, ter ao seu dispor, monitoras de classe para alunos específicos na tentativa de impor um padrão de rendimento e produtividade escolar (Patto, 1990Patto, M. H. S. (1990). A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: T.A. Queiróz.).

É importante pontuar que a escola é um espaço de interação e desenvolvimento social, sendo assim, fundamental para o desenvolvimento humano que só pode ser pensado a partir dos processos de mediação, pela troca de experiências que se opera através das relações. Além da escola, muitas são as influências sobre a formação do indivíduo e estas, por sua vez, podem recair de diferentes formas sobre o sujeito. Entende-se, assim, que entre as causas possíveis para o fracasso escolar estão as relações institucionais, os familiares, as condições econômicas, geográficas entre outras. Algo que se torna bastante claro é que o discurso do fracasso escolar, como uma tecnologia de governo (Queiroga, 2005Queiroga, M. S. N. (2005). O discurso do Fracasso escolar como tecnologia de governo da infância: arqueologia de um conceito. Tese de Doutorado em Sociologia. Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa. Recuperada de http://tede.biblioteca.ufpb.br:8080/handle/tede/7313
http://tede.biblioteca.ufpb.br:8080/hand...
), determinava os discursos e movia a rotina daquela escola.

Nesse contexto, criavam-se verdades e subjetivavam-se os que, de alguma forma, mantinham contato com aquele lugar. Diante disso, surgia para o campo da Psicologia Escolar, entendida aqui como instrumento de potencialização e de prevenção que atenta para fatores históricos, sociais, políticos e econômicos, realizando uma intervenção ampla e contextualizada, o desafio de transitar pelo ambiente, auxiliando na promoção do desenvolvimento de todos os atores que compõem a cena escolar.

SOBRE O CONSTRUIR DE UMA CAMINHADA

A escola em questão situa-se em uma cidade da região metropolitana de Porto Alegre/RS, com pouco mais de 22.000 habitantes, de cultura essencialmente alemã e que de acordo com seus próprios habitantes, era resistente com aqueles que não detinham características físicas típicas dessa ascendência. Além disso, destaca-se a localização geográfica daquela instituição que, por sua vez, ocupava um território nas “margens” da cidade e mantinha uma relação de proximidadeterritorial com a vila mais pobre do município. Devido a essa localização geográfica, as crianças de tal vila eram encaminhadas para a escola em questão. Era diante desse contexto que a diretora sustentava as explicações não somente para o fracasso de seus alunos, mas também para a indisciplina, para a violência e para o descaso tanto destes como de seus pais frente à realidade escolar.

Tal discurso não subjetivava apenas a comunidade, mas de forma especial, criava verdades para os professores e para a própria diretora. Diante das circunstâncias e da precariedade cultural que a diretora enxergava no contexto familiar e social dessas crianças, a própria assumia um papel quase ditatorial, fazendo discursos todas as manhãs e apontando os caminhos que os alunos e professores deveriam seguir para tornarem-se “pessoas de bem”, para conseguirem “bons empregos” e se formarem “pais e mães de família”. Trata-se de um exemplo clássico de um tipo definido de instituição que prevê a adequação da população através da vigilância e correção que não ocorre mais nos moldes panópticos, mas se atualiza e utiliza-se do olhar e do julgamento do outro, buscando a docilização dos corpos (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Vigiar e punir: nascimento da prisão(35ª ed., Ramalhete, R., Trad.). Petrópolis: Vozes.), fomentando a desconfiança e a competição entre os envolvidos.

Entre as inúmeras possibilidades que o universo escolar poderia proporcionar pensando, em especial, em seu papel de educador para uma vida em sociedade e comunidade, a escola em que se desenvolveu o estágio tinha como prioridade um processo educacional que se fechava no interior das suas próprias paredes. Que sentido isso poderia produzir na educação daquelas crianças? Quais os discursos que estavam sendo reforçados?

Fizemo-nos essas perguntas por repetidas vezes e foram elas que basearam muitas das nossas ações dentro da escola. Nessa produção, em especial, descreveremos qual foi a nossa tentativa de propor outros modos de (vi)ver o processo de ensino-aprendizagem, de (vi)ver a infância, de se relacionar com alunos, com professores, direção, escola e comunidade, mas, em especial, de fazer refletir sobre a prioridade que a escola vinha dando à necessidade de diagnóstico das possíveis dificuldades de aprendizagem das crianças, no sentido de localizar o fracasso em apenas uma ponta dessa tão complexa trama de relações.

Inicialmente, e com orientação da professora e supervisora de estágio, pôs-se em prática um processo de diagnóstico, com base na proposta de Análise Institucional (Baremblitt, 1998Baremblitt, G. F. (1998). Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: Teoria e prática (4ª edição). Belo Horizonte, MG: Instituto Félix Guattari.). Percebeu-se uma dificuldade generalizada nos relacionamentos entre alunos/professores; alunos/direção e professores/direção. Após esse processo, criamos um plano de estágio, alinhando atividades e proposta de trabalho.

Durante o estágio realizaram-se reuniões, dinâmicas de grupo, entrevistas individuais, visitas domiciliares, encontros com pais, alguns encaminhamentos entre outros dispositivos úteis no desenrolar das ações em psicologia escolar. Algumas delas serão descritas a seguir:

A primeira atividade intitulava-se “o chocolate” e foi realizada com as turmas do 6º, 7º, 8º e 9º ano, atingindo, assim, a totalidade de alunos do turno da manhã (na parte da tarde, o funcionamento da escola se voltava para o atendimento das séries iniciais). Tal estratégia só se fez possível por ser essa uma escola de ensino fundamental e de proporção pequena. A partir disso, buscou-se trabalhar a necessidade de vínculo e cooperação ao longo da trajetória escolar, bem como nas demais relações sociais. Ressaltava-se naquele momento que por vezes, não é possível a concretização de todos os objetivos traçados. Destacou-se junto ao grupo a importância da família, de todos os componentes da escola e a valorização da figura do aluno.

A segunda atividade foi um processo de “reflexão profissional”. Esta atividade se deu com o sexto e nono ano (um total de 18 alunos), respectivamente as turmas com as quais as professoras encontravam maiores dificuldades de interação, onde os índices de agressividade eram mais altos, bem como a incidência de faltas e evasões. A intenção primeira era fazer refletir acerca das possibilidades profissionais, sem padrões pré-estabelecidos, sem expectativas ou qualquer outra forma de intenção apriori a não ser conhecer as expectativas deles para o futuro. A participação dos alunos surpreendeu as professoras presentes. Esse foi um momento de troca de expectativas, de contorno de novas possibilidades, da produção de discursos de encorajamento, de fortalecimento e de cooperação. Mas outro valor se somou a este encontro e dizia respeito ao modo como essas professoras passaram a olhar seus alunos. Nenhuma delas se permitia imaginar que eles investissem em si mesmos e em suas futuras carreiras profissionais. Conversamos sobre a imagem que fazemos dos alunos e sobre o pouco espaço que se oferece a eles para refletir sobre o futuro profissional.

A terceira atividade chamada de “O Cultivo” foi realizada com todos os professores e alunos da escola (turno da manhã). O objetivo principal era o resgate de sentimentos ou atitudes que já não se encontravam presentes no âmbito escolar. Cada um deles ganhou um papel em branco e uma caneta, escrevendo então os sentimentos que deveriam ser cultivados, entre eles: segurança, alegria, respeito, amor, tranquilidade, diálogo, organização, bom senso, flexibilidade, comunicação, ética, entre outras. Após o recolhimento dos papeis, sem identificação, debatemos o porquê destas palavras que traziam tanto significado.

A partir disso, surgiu a ideia da quarta atividade: a criação de um jardim. Escolhemos juntamente com todos os atores da cena escolar o espaço para a jardinagem; flores coloridas foram plantadas e as palavras ditas e debatidas na atividade anterior se transformaram em placas que todos os dias eram vistas por quem ali passava, ao lado do jardim.

A quinta e última atividade foi efetuada somente com os professores e equipe diretiva (11 pessoas). Ela ocorreu na penúltima semana de participação das estagiárias na escola e teve a intenção de resgatar algumas discussões com as quais o grupo já havia se confrontado. Iniciamos com a retomada das palavras que haviam sido “semeadas” no jardim. Dando sequência, explicou-se que a proposta era identificar qual era o ponto de “florescimento” de cada uma delas. Como o encontro se deu em uma sala de aula, pregou-se um grande quadro na frente de todos os participantes. Nesse quadro havia uma árvore com suas raízes, caules, galhos, folhas e flores expostos. Os professores eram convidados a sortear uma palavra e posicioná-la no quadro explicando os motivos da escolha. Todos participaram e, além de apontarem de forma madura as dificuldades, enriqueceram a discussão com aspectos positivos dos colegas, fortalecendo o vínculo e o sentimento de pertencimento ao coletivo. Essa característica era impensada no início do trabalho quando os encontros e reuniões acabavam em acusações, julgamento do trabalho alheio e alguns constrangimentos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foram dois anos de um trabalho cheio de dúvidas, receios, erros, mas também, de orientações incansáveis, apoio mútuo e com isso, acertos e construções que não caberiam nessas páginas. Com o resgate feito de toda a trajetória, percebe-se que movimentos importantes foram acontecendo apartir da presença da Psicologia Escolar no ambiente descrito. Como elementos fundamentais, podem-se citar o vínculo criado entre professores, o fortalecimento da confiança entre equipe diretiva e grupo de professores, e as novas possibilidades que toda a comunidade escolar passou a perceber nos alunos. Consideramos que nossa maior contribuição para com os agentes envolvidos no contexto relatado foi a promoção de discursos outros acerca da necessidade ou não de um laudo psicológico; desestabilizando tal certeza e tornando possível uma realidade entre a binariedade do saudável e do patológico. O fato de dar luz às capacidades de cada aluno, bem como de suas peculiaridades, individualidades, do peso da realidade social tenha não apenas amenizado a queixa inicial daquela diretora, mas, em especial, proporcionado outros caminhos para o processo de ensino aprendizagem.

REFERÊNCIAS

  • Baremblitt, G. F. (1998). Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: Teoria e prática (4ª edição). Belo Horizonte, MG: Instituto Félix Guattari.
  • Foucault, M. (2008). Vigiar e punir: nascimento da prisão(35ª ed., Ramalhete, R., Trad.). Petrópolis: Vozes.
  • Patto, M. H. S. (1990). A Produção do Fracasso Escolar: histórias de submissão e rebeldia São Paulo: T.A. Queiróz.
  • Queiroga, M. S. N. (2005). O discurso do Fracasso escolar como tecnologia de governo da infância: arqueologia de um conceito Tese de Doutorado em Sociologia. Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa. Recuperada de http://tede.biblioteca.ufpb.br:8080/handle/tede/7313
    » http://tede.biblioteca.ufpb.br:8080/handle/tede/7313

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    03 Jun 2018
  • Aceito
    06 Jun 2019
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