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PSICOLOGIA ESCOLAR E PERSISTÊNCIAS DO COLONIALISMO NO COTIDIANO EDUCACIONAL

Psicología Escolar y persistencias del colonialismo en el cotidiano educacional

RESUMO

O presente artigo tem como proposta refletir sobre alguns efeitos das persistências colonialistas na educação. Colocando em questão a hegemonia cultural imposta pelo eurocentrismo, intrinsecamente racista e reproduzida nas instituições educacionais, foram analisadas algumas de suas implicações no processo de ensino/aprendizagem e sociabilidade de estudantes da educação básica da rede pública de ensino no Brasil. Para tanto, traçamos algumas das linhas de força que constituem e sustentam a lógica educacional vigente, a partir da interlocução com Gregório Baremblitt, René Lourau e Michel Foucault, assim como estudiosos dos impactos de processos violentos de colonização, como Frantz Fanon, Anibal Quijano, Catherine Walsh, Vera Candau e Paulo Freire e, ainda, autores que tratam de historiografar a educação pública no Brasil, como Gaudêncio Frigotto. Esta análise deflagra a colonialidade que constitui nossa educação escolar, contribuindo para a superação de abordagens psicológicas individualizantes no ambiente escolar.

Palavras-chave:
colonialidade; escola; psicologia escolar

RESUMEN

En el presente artículo se tiene como propuesta reflexionar sobre algunos efectos de las persistencias colonialistas en la educación. Poniéndose en cuestión la hegemonía cultural impuesta por el eurocentrismo, intrínsicamente racista, y reproducida en las instituciones educacionales, se analizaron algunas de sus implicaciones en el proceso de enseñanza/aprendizaje y sociabilidad de estudiantes de la educación primaria de la red pública de enseñanza en Brasil. Para tanto, subrayamos algunas de las líneas de fuerza que constituyen y sostienen la lógica educacional vigente, a partir de la interlocución con Gregorio Baremblitt, René Lourau y Michel Foucault, así como estudiosos de los impactos de procesos violentos de colonización, como Frantz Fanon, Anibal Quijano, Catherine Walsh, Vera Candau y Paulo Freire y, aún, autores que tratan de escribir la historia de la educación pública en Brasil, como Gaudencio Frigotto. Este análisis deflagra la colonialidad que constituye nuestra educación escolar, contribuyendo para a superación de abordajes psicológicas individualizantes en el ambiente escolar.

Palabras clave:
colinealidad; escuela; psicología escolar

ABSTRACT

This article proposes to reflect on some effects of colonialist persistence in education. Putting into question the cultural hegemony imposed by Eurocentrism, which is intrinsically racist, and reproduced in educational institutions, some of its implications in the teaching/learning process and sociability of students in basic education in public schools in Brazil were analyzed. Therefore, we trace some of the lines of force that constitute and sustain the current educational logic, from the dialogue with Gregório Baremblitt, René Lourau and Michel Foucault, as well as scholars of the impacts of violent colonization processes, such as Frantz Fanon, Anibal Quijano, Catherine Walsh, Vera Candau and Paulo Freire, and also authors who deal with the historiography of public education in Brazil, such as Gaudêncio Frigotto. This analysis triggers the coloniality that constitutes our school education, contributing to the overcoming of individualizing psychological approaches in the school environment.

Keywords:
coloniality; school; school psychology

INTRODUÇÃO

Atuando no campo da Psicologia Escolar em escolas da rede municipal de uma cidade do estado do Rio de Janeiro, observa-se a grande demanda para atuação em casos de estudantes que apresentam dificuldades na aprendizagem e/ou sociabilidade. Via de regra, são estudantes que se encontram no que se convencionou chamar “distorção idade-ano”, isto é, com a faixa etária acima da esperada para o ano escolar que cursam. Outra situação em que a Psicologia Escolar é convocada é no caso de estudantes com comportamentos desafiadores, que se recusam a seguir determinadas normas da escola.

As hipóteses diagnósticas levantadas pelas equipes técnicas para justificar tanto o “atraso” quanto o “mau comportamento” apontam quase sempre para transtornos da aprendizagem e/ou comportamentais. Tratam-se, portanto, de crianças e adolescentes que necessitariam de encaminhamentos para diversos tipos de avaliações - psicológicas, neurológicas, fonoaudiológicas, psiquiátricas - supostamente capazes de detectar o que os fazem ser pouco produtivos na vida escolar. Uma vez identificadas as possíveis causas dos “desvios”, eles devem começar um tratamento para a “correção do problema”. O psicólogo deve fazer a triagem já na escola, identificando quais avaliações são necessárias, convocando a família e fazendo os devidos encaminhamentos.

Esse tipo de demanda certamente não chega ao psicólogo apenas em escolas da rede pública. No entanto, no presente artigo, esse recorte não é arbitrário. Em uma sociedade marcada historicamente por uma grande desigualdade social e racial, espaços educacionais bastante distintos são reservados aos diferentes grupos sociais. Da mesma maneira, os modos de perceber e dar encaminhamento às dificuldades apresentadas por estudantes apresentam diferenças significativas.

Não raro, as demandas por “correção dos desviantes” chegam sem qualquer consideração sobre o contexto em que são identificadas. Quando muito, contam com uma análise que se reduz a culpabilizar as famílias, não raro identificadas como “desestruturadas” e, portanto, inadequadas, patológicas. A dimensão sociocultural é tida como menos importante e são apresentadas apenas soluções que giram em torno do sujeito, daquilo que é próprio de sua natureza e que o impede de se adequar à norma (Foucault, 1998Foucault, M. (1998). Microfísica do Poder(R. Machado, trad., 4ª. Ed.). Rio de Janeiro: Edições Graal. (Original publicado em 1979)., 2002Foucault, M. (2002). A Verdade e as Formas Jurídicas. (Machado R.; E. Morais, trad., 3ª ed.). Rio de Janeiro: Nau Editora. (Original publicado em 1996)., 2009Foucault, M. (2005). Em defesa da sociedade: curso dado no Collège de France (1975-1976). (M. E. Galvão, trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1997).). Ao que parece, é o seu eu, intrapsíquico, que precisa ser modificado e adequado à norma instituída.

Ao serviço de psicologia tal demanda chega como problema de um estudante, família ou mesmo uma comunidade, identificada como mais problemática. Como resultado, temos o aumento significativo da fila de espera para atendimentos especializados individuais e a chamada “evasão escolar” - alunos que deixam de frequentar a escola, adentrando precocemente ao mundo do trabalho (formal, informal ou ilegal). Enquanto isso, a escola parece blindada, não se colocando em questão.

No presente artigo, sem pretender negar possíveis comprometimentos psíquicos que interfiram no processo de aprendizagem e sociabilização, colocamos em análise o caráter eurocêntrico, intrinsecamente racista, das instituições educacionais no Brasil e suas implicações no processo de ensino/aprendizagem e sociabilidade de estudantes da educação básica. Tal análise se dá através de uma revisão teórica, mas que dialoga com um campo de experiências, que é convocado em momentos estratégicos em que o compartilhamento das experiências vividas contribui para a compreensão dos modos como os jogos de poder se dão na prática. São trazidos autores da Análise Institucional, Michel Foucault, bem como pesquisadores que refletem sobre os processos de colonização, com aspectos peculiares no modo de pensar e fazer educação, como Frantz Fanon, Anibal Quijano, Catherine Walsh, Paulo Freire e Vera Candau.

ESCOLA MODERNA E A PRODUÇÃO DE CORPOS DÓCEIS

Segundo Baremblitt (2002Baremblitt, G. (2002). Introdução à esquizoanálise (2ª Ed). Belo Horizonte: Biblioteca Instituto Félix Guattari. (Original publicado em 1992)), uma sociedade é “um tecido de instituições que se interpenetram e se articulam entre si para regular a produção e a reprodução da vida humana sobre a terra e a relação entre os homens” (p. 27). Lourau (1993Lourau, R. (1993). Análise Institucional e práticas de pesquisa. Editora UERJ: Rio de Janeiro.) afirma que as instituições não são coisas observáveis, estáveis, e sim dinâmicas contraditórias, movimentos forjados na história, no tempo social-histórico, são lógicas que regulam as atividades humanas, estabelecendo o que deve e o que não deve ser feito. Elas podem estar anunciadas de maneira formal, na forma de leis e normas ou se manifestar através de hábitos, convenções sociais e regularidades de comportamento.

Para a Análise Institucional, ao conjunto de forças que atuam nas instituições para produzir permanência denomina-se “instituído” (Lourau, 1993Lourau, R. (1993). Análise Institucional e práticas de pesquisa. Editora UERJ: Rio de Janeiro.; Baremblitt, 2002Baremblitt, G. (2002). Introdução à esquizoanálise (2ª Ed). Belo Horizonte: Biblioteca Instituto Félix Guattari. (Original publicado em 1992)). O instituído representa o status quo, aquilo que se encontra estabelecido e até naturalizado. Foucault (2002Foucault, M. (2002). A Verdade e as Formas Jurídicas. (Machado R.; E. Morais, trad., 3ª ed.). Rio de Janeiro: Nau Editora. (Original publicado em 1996).) aponta que o instituído se constitui a partir de jogos de verdades sempre articulados a estratégias de saber-poder, que fixam determinadas regras pensadas como incontestáveis, separando o legítimo do ilegítimo, o normal do anormal, o certo do errado etc.

É sendo materializadas em dispositivos concretos, em “organizações” (Baremblitt, 2002Baremblitt, G. (2002). Introdução à esquizoanálise (2ª Ed). Belo Horizonte: Biblioteca Instituto Félix Guattari. (Original publicado em 1992)), que as instituições (de dimensão abstrata) cumprem a função de regular a vida. As organizações são conjuntos de formas materiais que concretizam as opções enunciadas pelas instituições, sendo constituídas por unidades menores, como os estabelecimentos, isto é, locais onde agentes humanos protagonizam a prática, operando dispositivos técnicos de reprodução da lógica institucional.

Nessa perspectiva, a escola é um estabelecimento e tem uma base concreta, como o prédio e os equipamentos. Agenciado por professores, gestores, funcionários e suas técnicas, esse estabelecimento funciona de modo a reproduzir a lógica das instituições de educação - leis, normas e pautas que prescrevem como se deve socializar e instruir um indivíduo para que este possa integrar a sociedade.

De acordo com Candau (2011Candau, V. (2011). Diferenças Culturais, cotidiano escolar e práticas pedagógicas. Currículo sem Fronteiras, 11(2), 240-255.), o que está instituído sobre a educação escolar foi construído a partir da matriz político-social e epistemológica da modernidade, que buscava o comum, o homogêneo, o universal. Nesta lógica, institui-se um modelo que não considera os múltiplos modos de existência, desqualifica as experiências coletivas e cria normas fixas e totalizantes.

Foucault (2009Foucault, M. (2009). Vigiar e Punir (R. Ramalhete, trad., 36ª ed.). Petrópolis: Vozes. (Original publicado em 1975).) aponta que no decorrer dos séculos XVIII e XIX, as disciplinas assumem o caráter de fórmulas gerais de dominação, dando origem às sociedades disciplinares. Sob a justificativa de segurança, dispositivos disciplinares são acionados, operando uma constante divisão entre o que é normal e o que é anormal, a qual todo indivíduo é submetido. Esses são dispositivos que vão se constituir a partir da composição de técnicas de controle e correção dos considerados anormais, desenvolvidas no interior de “instituições de sequestro” (Foucault, 2009Foucault, M. (2009). Vigiar e Punir (R. Ramalhete, trad., 36ª ed.). Petrópolis: Vozes. (Original publicado em 1975)., p. 122), como escola, fábrica, prisão, hospital etc. Instituições que operam com técnicas para extrair a totalidade do tempo dos indivíduos e controlar seus corpos, transformando o corpo em força de trabalho e o tempo em tempo de trabalho.

Essas mudanças respondem aos desdobramentos das profundas transformações econômicas, políticas e sociais vividas nesse período. De acordo com Veiga-Neto e Saraiva (2011Veiga-Neto, A.; Saraiva, K. (2011). Educar como arte de governar. Currículo sem Fronteiras, 11(1), 5-13.) a escola moderna funcionou como principal dispositivo para disciplinar os corpos, possibilitando assim a consolidação do capitalismo industrial. Tornou-se, afirmam, “a mais generalizada instituição de sequestro, sendo sua ação muito mais decisiva para a constituição das sociedades disciplinares do que outras instituições” (Veiga-Neto & Saraiva, 2011Veiga-Neto, A.; Saraiva, K. (2011). Educar como arte de governar. Currículo sem Fronteiras, 11(1), 5-13., p. 6).

Dessa forma, partindo da noção de governamentalidade, trazida por Foucault (2008Foucault, M. (2008). Sociedade, Território e População. Curso dado no Collège de France (1977-1978). (E. Brandão, trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 2004).), os autores compreendem o porquê os Estados modernos tomaram a educação escolar como uma instituição privilegiada, concedendo atenção especial ao estabelecimento de seus objetivos e formas de funcionamento. Foucault (2008)Veiga-Neto, A.; Saraiva, K. (2011). Educar como arte de governar. Currículo sem Fronteiras, 11(1), 5-13. define a governamentalidade como um conjunto de práticas de governamento que tem como objeto a população, como saber mais importante a economia e como mecanismos básicos dispositivos de segurança (Machado, 1998Machado, R. (1998). Por uma genealogia do poder. In: Foucault, M. (Ed.), Microfísica do Poder(4ª ed.). Rio de Janeiro: Edições Graal.; Foucault, 2008Veiga-Neto, A.; Saraiva, K. (2011). Educar como arte de governar. Currículo sem Fronteiras, 11(1), 5-13.).

De acordo com Veiga-Neto e Saraiva (2011Veiga-Neto, A.; Saraiva, K. (2011). Educar como arte de governar. Currículo sem Fronteiras, 11(1), 5-13.), a educação escolar, afinada com a racionalidade política moderna, ao mesmo tempo totaliza e individualiza os sujeitos. Isto porque, “se por um lado a escola constitui individualidades singulares, criando subjetividades que se pensam únicas e indivisíveis, ela também cria posições de sujeito subordinadas a um todo social, fora das quais cada sujeito nem mesmo faz sentido” (Veiga-Neto & Saraiva, 2011Veiga-Neto, A.; Saraiva, K. (2011). Educar como arte de governar. Currículo sem Fronteiras, 11(1), 5-13., p. 9). Esse movimento impede que o indivíduo seja pensado ou que pense a si mesmo como um sujeito - sujeito de e assujeitado a.

Nesse sentido, a visão da educação escolar como fundamentalmente agregadora e fomentadora de pensamento crítico pode ser colocada em questão. Ela surge na modernidade tendo como fundamento a desagregação - a cesura entre o normal e o anormal, o apto e o não apto. A governamentalidade moderna cria a escola - um estabelecimento educacional cuja arquitetura, gestão e técnicas pedagógicas e educacionais adotadas têm como objetivo primeiro a disciplinarização e normatização dos corpos dos estudantes.

Nos países que sofreram a colonização, a função de governar os corpos, que funda a escola, ganha contornos ainda mais complexos. A disciplinarização e normatização objetivada e promovida pelas instituições escolares partem de um modelo de normalidade que tem a Europa como referência. Assim, um indivíduo “educado” e “inteligente” passa a ser entendido como aquele capaz de introjetar e performar ao máximo o modelo eurocêntrico de sujeito do conhecimento, ou seja, de certo modo de ser, ver e operar no mundo. Em contrapartida, sobre aqueles que não conseguem alcançar tal modelo e, mais ainda, sobre aqueles que o rejeitam, geralmente opera-se uma imposição educacional normativa violenta, baseada em controle, vigilância, punição e exclusão.

RACISMO, COLONIALIDADE E BIOPOLÍTICA

Fanon (1980Fanon, F. (1980). Em Defesa da Revolução Africana(Pascoal, I., trad.). Lisboa: Sá da Costa. (Original publicado em 1969).), psiquiatra e anticolonialista radical martinicano, compreende o racismo como uma consequência da forma específica de exploração capitalista que foi o colonialismo. Ele faz parte do conjunto de estratégias de poder que atuam na opressão sistematizada do povo.

O conceito de colonialidade foi criado por Quijano (1997Quijano, A. (1997). Colonialidad del Poder, Cultura y Conocimiento en América Latina. Anuário Mariateguiano , 9(9), 113-121.), sociólogo peruano, para explicitar a continuidade das formas coloniais de dominação após o fim das administrações coloniais, não se extinguindo com a independência ou descolonização. Há na criação desse conceito uma tentativa de explicar a modernidade como um processo profundamente ligado à experiência colonial.

Walsh (2009Walsh, C. (2009). Interculturalidade crítica e pedagogia decolonial: in-surgir, re-existir e re-viver. In: Candau, V. (Ed.), Educação intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas(pp. 12-42.). Rio de Janeiro: 7 Letras.) aponta que a matriz da colonialidade tem a raça, o racismo e a racialização como pontos centrais, constitutivos e fundantes das relações de dominação. O marco central para a contextualização da diversidade cultural encontra-se na articulação histórica entre a ideia de raça como instrumento de classificação e controle social e o desenvolvimento do capitalismo mundial - moderno, colonial, patriarcal e eurocêntrico.

Para Quijano (1997Quijano, A. (1997). Colonialidad del Poder, Cultura y Conocimiento en América Latina. Anuário Mariateguiano , 9(9), 113-121.) uma “colonialidade de poder” estabelece e fixa uma hierarquia racializada, onde brancos (europeus) ocupam o topo, seguidos por “mestiços”, “índios” e “negros” tidos como identidades comuns e negativas. Nesse contexto, categorias binárias como oriente-ocidente, primitivo-civilizado, místico-científico, tradicional-moderno servem para “justificar a superioridade e a inferioridade, racionalidade e irracionalidade, humanização e desumanização (colonialidade do ser) e pressupõem o eurocentrismo como perspectiva hegemônica (colonialidade do saber)” (Walsh, 2009Walsh, C. (2009). Interculturalidade crítica e pedagogia decolonial: in-surgir, re-existir e re-viver. In: Candau, V. (Ed.), Educação intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas(pp. 12-42.). Rio de Janeiro: 7 Letras., p. 15).

Foucault (2005Foucault, M. (2005). Em defesa da sociedade: curso dado no Collège de France (1975-1976). (M. E. Galvão, trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1997).), em seus estudos sobre o poder, aponta que o século XVIII marca o processo de entrada dos fenômenos próprios à vida humana nos cálculos do poder. Nesse momento os processos relacionados à vida humana passam a ser considerados pelos mecanismos de poder e de saber, inaugurando uma forma de poder por ele denominada como biopoder, que se desenvolve nos séculos posteriores. Ao investir no corpo vivo, ao valorizá-lo, gerindo de modo distributivo suas forças, o biopoder o inclui de forma controlada nos aparelhos de produção e consumo e é de grande importância no desenvolvimento do capitalismo.

O que se produz na atuação do biopoder não é somente o indivíduo dócil e útil aos interesses capitalistas, mas a própria gestão calculada da vida do corpo social, o que Foucault (2005Foucault, M. (2005). Em defesa da sociedade: curso dado no Collège de France (1975-1976). (M. E. Galvão, trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1997).) chamou de biopolítica. A população é vista como um problema ao mesmo tempo científico e político, biológico e de poder, devendo ser tratada por meio de mecanismos globais para que estados globais de regularidade sejam atingidos.

Na biopolítica, a comunidade é vista como um conjunto biologicamente homogêneo que, para ser mantido, precisa ser regulado através de políticas não apenas de organização e proliferação da vida, mas também de saneamento, que cumpram a função de livrar o corpo da população de suas infecções internas, suas anomalias e seus contágios. Nesse processo, aponta Foucault, o racismo é mecanismo fundamental do poder, pois é ele que vai definir “um corte entre o que deve viver e o que deve morrer” (2005, p. 304). A organização e qualificação hierarquizada dos indivíduos em raças fragmenta o campo do biológico de que o poder se incumbiu, defasando, no interior da população, uns grupos em relação aos outros (Foucault, 2005Souza, N. S. (1983). Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal.).

Se levada em conta como uma categoria analítica, a raça/racismo é capaz de revelar “muitas formas de exercício de poder opressivo e de favorecer nosso entendimento da sociedade e da subjetividade que produz” (Zamora, 2012Zamora, M. H. R. N. (2012). Desigualdade racial, racismo e seus efeitos.Fractal Revista de Psicologia, 24(3), 563-578. https://doi.org/10.1590/S1984-02922012000300009
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, p. 564). A “raça” segue produzindo percepções sobre supostas características morais dos indivíduos considerados como não pertencentes à “raça” branca. Seus corpos são também vistos de modo pejorativo em relação ao branco, sendo desfavoravelmente comparados aos ideais estéticos etnocêntricos. Esse olhar incide sobre a relação que os sujeitos estabelecem com os corpos, que se constituem a partir da insatisfação, incompletude, gerando um esforço constante em encobrir as características que o tornam destoante do modelo imposto (Souza, 1983Souza, N. S. (1983). Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal.).

Para Guattari e Rolnik (2007Guattari, F.; Rolnik, S. (2007). Micropolítica: cartografias do desejo(8ª ed.). Petrópolis: Vozes.), os mecanismos de segregação, infantilização e culpabilização atuam produzindo sentimentos de inferioridade, solidão, dependência, incapacidade e culpa sobre aqueles que experimentam outras formas de se expressar e sentir o mundo. Em relação às culturas inferiorizadas ao longo da história isso é especialmente verdadeiro. Assim, espera-se que eles permaneçam em posições subalternizadas, sem resistir e demonstrando gratidão. Sua história como potencial de revolta e resistência é apagada; seus líderes e forças inspiradoras são eliminados.

Assim, a colonialidade continua a operar, atravessando todas as instituições. O racismo se atualiza, ganha novas formas de expressão, aparentemente mais sutis, mas não menos perversas.

ESCOLA PÚBLICA, GRATUITA E OBRIGATÓRIA NO BRASIL

Candau (2011Candau, V. (2011). Diferenças Culturais, cotidiano escolar e práticas pedagógicas. Currículo sem Fronteiras, 11(2), 240-255.) aponta que, no processo de homogeneização cultural que precedeu a construção dos estados nacionais latino-americanos, a educação escolar teve um papel de destaque. Ela foi uma das principais vias de difusão e consolidação da cultura comum de base eurocêntrica, adotando estratégias pedagógicas que contribuíram para o silenciamento e/ou invisibilização de vozes, saberes, cores, crenças e sensibilidades.

Frigotto (2005Frigotto, G. (2005). Escola pública na atualidade: lições da história. In: Lombardi, J. C.; Saviani, D.; Nascimento, M. I. M. (Eds.), Educação Pública no Brasil: História e Historiografia. (pp. 221-239) Campinas: Autores Associados.) afirma que no Brasil, mesmo com a constituição do regime republicano, as práticas políticas das elites, que reiteram formas de subalternidade e partilha associada, não foram apagadas. De acordo com o autor, dominam até a década de 1930 as forças da república velha, centrada em oligarquias agrárias, entre as quais a educação era um privilégio de poucos. Dessa maneira, as classes populares, em especial os negros, seguiram relegadas ao analfabetismo ou, em alguns casos, ao ensino primário.

De acordo com Frigotto (2005Frigotto, G. (2005). Escola pública na atualidade: lições da história. In: Lombardi, J. C.; Saviani, D.; Nascimento, M. I. M. (Eds.), Educação Pública no Brasil: História e Historiografia. (pp. 221-239) Campinas: Autores Associados.), em 1920, no plano contraditório das lutas da burguesia industrial emergente e da burguesia agrária, a diminuição do analfabetismo começa a interessar à indústria, abrindo espaço para o acesso à escola pública. É a partir dessa abertura que, em meados do século XX, constituem-se os chamados “sistemas nacionais de ensino”, que têm sua organização inspirada no princípio de que a educação é direito de todos e dever do Estado.

Para a nova ordem que se instala, o marginalizado é aquele que não teve acesso aos saberes desejáveis em um contexto escolar formal. Neste contexto, a escola é eleita como o instrumento para transformar todos em cidadãos, “redimindo os homens de seu duplo pecado histórico: a ignorância, miséria moral e a opressão, miséria política” (Zanotti, 1972, citado por Saviani, 1999Saviani, D. (1999). Escola e democracia: Polêmicas do nosso tempo(32ª ed.). Campinas: Autores Associados., p. 18). A educação, vista como um instrumento de equalização social e, portanto, de superação da marginalidade - um fenômeno acidental que afetava individualmente certo número de membros da sociedade - assume assim uma função bastante coercitiva. Uma força homogeneizadora, cujo papel é o de coesão, garantindo a integração de todos no corpo social. Para Ferreiro (2001, citado por Candau, 2011Candau, V. (2011). Diferenças Culturais, cotidiano escolar e práticas pedagógicas. Currículo sem Fronteiras, 11(2), 240-255.), a escola pública, gratuita e obrigatória do século XX, é herdeira desse movimento, cabendo a ela

criar um único povo, uma única nação, anulando as diferenças entre os cidadãos, considerados como iguais diante da lei. Se os cidadãos eram iguais diante da lei, a escola devia contribuir para gerar estes cidadãos, homogeneizando as crianças, independentemente de suas diferentes origens. Encarregada de homogeneizar, de igualar, esta escola mal podia apreciar as diferenças (Ferreiro, 2001, citado por Candau, 2011Candau, V. (2011). Diferenças Culturais, cotidiano escolar e práticas pedagógicas. Currículo sem Fronteiras, 11(2), 240-255., p. 242).

Os estudos de Paulo Freire (1979Freire, P. (1979). Educação e Mudança(12ªed.). Rio de Janeiro: Paz e Terra., 1987Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido(17ªed.). Rio de Janeiro, Paz e Terra.) no campo da educação nos permitem compreender que as elites das sociedades que se constituíram a partir de um processo de colonização reproduzem sua lógica, pois é esta que garante a manutenção de seus privilégios. Nesse sentido, pode-se considerar que a criação de estabelecimentos de educação pública, gratuita e obrigatória, se dá fundamentalmente a partir da necessidade de dominar e ocupar indivíduos oriundos das camadas mais pobres, consideradas um risco moral para o projeto de nação que a elite branca desenvolvia no final do século XIX, com o objetivo de manter seus privilégios (Nascimento, 2005Nascimento, M. L. (2005). Internação de Jovens pobres: Prática que atravesssa a história. In: Menegat, M.; Neri, R. (Eds.), Criminologia e Subjetividade (pp. 149-156). Rio de Janeiro: Lumen Juris.; Coimbra, 2000Coimbra, C. M. B. (2000). Classes Perigosas: uma pequena genealogia. In: Ferreira, G.; Fonseca, P. (Eds.), Conversando em casa(pp. 56-65). Rio de Janeiro: 7Letras.). Tendo como base a lógica colonial racista, a proposta educacional para as classes subalternizadas se constitui como um dos principais eixos que compõem a gestão biopolítica do território nacional.

Ao mesmo tempo, não podemos desconsiderar, ao longo da história, contrapoderes e resistências presentes no cotidiano escolar. Como afirma Nilma Lino Gomes (2017)Gomes. N. L. (2017). O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis: Vozes.:

A educação não é um campo fixo e nem somente conservadora. Ao longo dos tempos é possível observar como o campo educacional se configura como um espaço-tempo inquieto, que é ao mesmo tempo indagador e indagado pelos coletivos sociais diversos. Enquanto espaço de formação humana e pelo qual passam as mais diferentes gerações, grupos étnicos-raciais, pessoas de origens socioeconômicas diferentes, credos e religiões, é possível refletir tanto os processos institucionais de educação (escola de educação básica e universidades) quanto experiências de educação popular, social, de jovens e adultos, diferenciada e antirracista, construídas no cotidiano e nos processos de luta sociais, são repletos, ao mesmo tempo, de um dinamismo incrível e de uma tensão conservadora (p. 25).

No entanto, observamos ainda que a perspectiva colonial fundante das instituições de ensino persiste e opera constantes capturas em movimentos que busquem produzir rupturas com os sistemas de dominação. Via de regra, no cotidiano da escola, vemos, por exemplo, uma constante neutralização das discussões e ações propostas pelas políticas afirmativas. Muitas vezes são as/os professoras/es que politicamente sustentam sozinhas/os essas discussões e práticas em suas salas de aula, sem apoio e até sob ameaças das equipes diretivas e secretarias de educação.

Walsh (2009Walsh, C. (2009). Interculturalidade crítica e pedagogia decolonial: in-surgir, re-existir e re-viver. In: Candau, V. (Ed.), Educação intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas(pp. 12-42.). Rio de Janeiro: 7 Letras.) aponta que, se foi a partir de padrões de poder fundados na exclusão, negação e subordinação que a modernidade/colonialidade funcionou historicamente, na contemporaneidade ela se dá sob um discurso neoliberal multiculturalista. No contexto escolar, tal discurso pode ser entendido como um modo de captura operado pela persistente lógica colonial, que atravessa e constitui os sistemas educacionais ainda hoje.

Candau (2008Candau, V. (2008). Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre igualdade e diferença. Revista Brasileira de Educação, 13(37), 45-56. https://doi.org/10.1590/S1413-24782008000100005
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) traz três perspectivas consideradas por ela como bases das diversas abordagens sobre o multiculturalismo. A primeira delas é o multiculturalismo assimilacionista, que considera a sociedade multicultural no sentido descritivo. Admite a existência de desigualdade de oportunidades, mas a partir disso, adota uma política assimilacionista, que favorece todos a se integrarem na sociedade, sendo incorporados à cultura hegemônica. Uma política de universalização da escolarização é promovida, mas o caráter monocultural presente na sua dinâmica não é questionado, seja no que se refere ao currículo, seja no âmbito das relações entre os diferentes atores.

A segunda abordagem é a do multiculturalismo diferencialista. Nela enfatiza-se o reconhecimento das diferenças, garantindo espaços em que estas possam se expressar como única maneira de os diferentes grupos socioculturais manterem suas matrizes culturais de base. O acesso a direitos sociais e econômicos é posto em pauta, mas, ao mesmo tempo, privilegia-se a formação de comunidades culturais homogêneas que tenham suas próprias organizações (escolas, igrejas, clubes, associações, bairros). Na visão da autora Candau (2008Candau, V. (2008). Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre igualdade e diferença. Revista Brasileira de Educação, 13(37), 45-56. https://doi.org/10.1590/S1413-24782008000100005
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), em muitas sociedades atuais, na prática, acabou-se favorecendo a criação de apartheids socioculturais.

O multiculturalismo interativo ou interculturalidade é definida por Candau (2008Candau, V. (2008). Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre igualdade e diferença. Revista Brasileira de Educação, 13(37), 45-56. https://doi.org/10.1590/S1413-24782008000100005
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) como multiculturalismo crítico e de resistência, que se situa a partir de uma agenda política de transformação. Essa abordagem compreende as representações étnicas, sexuais e de classe como produto das lutas sociais sobre signos e significações, privilegiando a transformação das relações sociais, culturais e institucionais em que os significados são gerados. Concebe as culturas como movimentos contínuos de construção e reconstrução, cujas raízes são históricas e dinâmicas, não estanques. A cultura assume um caráter conflitivo, onde a diferença deve ser afirmada dentro de uma política crítica e compromissada com a justiça social.

No contexto escolar que conhecemos, o multiculturalismo assimilacionista é predominante. A multiplicidade é tratada como sinônimo de diferença hierárquica e, desta maneira, como adversidades a serem superadas. Um olhar que reafirma a colonialidade do sistema, tendo efeitos importantes nas formações subjetivas e traçando, assim, caminhos para o fracasso.

PSICOLOGIA ESCOLAR E OS “DESVIANTES”

No cotidiano de uma psicóloga escolar, é comum receber dos membros das equipes escolares a queixa de que grande parte dos estudantes fracassam na vida escolar por “não quererem nada”, “serem preguiçosos” ou terem alguma deficiência cognitiva. No entanto, não são raros os casos de estudantes que enfrentam uma longa e cansativa jornada até chegarem à escola, sendo difícil que de fato sejam indolentes. Então por que eles estão desinteressados? O que vem sendo oferecido a essa juventude pela sociedade e especificamente pela escola, para que “nada queiram”?

Como profissional, em encontros com os estudantes realizados para compreender tais demandas, foi possível perceber o desânimo destes em relação à escola, mas não em todos os seus aspectos. Uma queixa frequente é sobre os conteúdos - sobre o porquê e para que aprendê-los. Essa falta de sentido é frequentemente apontada como razão do não interesse nas aulas e denuncia, em grande medida, o abismo existente entre esses conteúdos e as experiências vividas pelas/os estudante nos seus diversos contextos.

Outra queixa comum é sobre o formato da escola. “Chatice”, “inferno”, “porcaria”, “obrigação”, “preguiça”, são termos utilizados pelas/os estudantes adolescente quando indagadas/os em grupo sobre o que a escola representa para elas/es. Quando aprofundada a discussão, explicam que entendem que a função da escola é ensinar, mas identificam a sala de aula como o lugar da “mesmice”, monotonia e passividade. Parece que não se sentem ativos no processo de aprendizagem e sinalizam insatisfação com a objetificação que esse espaço lhes impõe.

A psicóloga Maria Helena Souza Patto (1988Patto, M. H. S. (1988). O fracasso escolar como objeto de estudo: anotações sobre as características de um discurso. Cadernos de Pesquisa, n. 65, p. 72-77.) observava que, ainda que houvesse avanços nas pesquisas sobre a situação da escola e do ensino, atribuir a culpa pelo “fracasso escolar” ao aluno ainda era uma forte tendência. O saber psicológico se somava à visão médica organicista da educação para explicar que, além de déficits no estudante, as dificuldades escolares seriam fruto do ambiente em que as crianças viviam.

Como aponta Candau (2011Candau, V. (2011). Diferenças Culturais, cotidiano escolar e práticas pedagógicas. Currículo sem Fronteiras, 11(2), 240-255.), ao longo da história da educação identificamos alguns marcos do discurso sobre a diferença no campo pedagógico, dentre os quais o referencial psicológico, das teorias da aprendizagem e psicologia do desenvolvimento. No entanto, o fato de tais teorias focarem em aspectos individuais de caráter psicoafetivo, acabam por apresentar uma concepção de sujeito da aprendizagem bastante limitada, praticamente desconsiderando as dimensões sócio-histórica e cultural.

Hecket e Barros (2007Hecket, A. L. C.; Barros, M. E. B. de. (2007). Fracasso escolar: do que se trata? Psicologia e educação, debates “possíveis”. Aletheia, 25, 109-122.) lembram que as políticas educacionais nos anos 60 e 70 foram elaboradas a partir de pressupostos da teoria do capital humano, aliados às explicações advindas das teorias da marginalidade e carência cultural. Esses também se constituíram em ferramentas estratégicas na elaboração das políticas sociais de cunho compensatório, que tinham como objetivo conter conflitos sociais. As autoras ressaltam que as teorias da carência ou deficiência cultural, forjadas nos EUA, na década de 40 - e fomentadas em 60, a partir dos movimentos contestatórios das minorias raciais - foram transplantadas para o Brasil na década de 70. Esse movimento instituiu, a partir de diagnósticos psicológicos e pedagógicos que apontavam as famílias das camadas populares como pouco capazes de criar seus filhos, programas cujo objetivo era substituí-las.

De acordo com as autoras, algumas das produções no campo da Psicologia contribuíram para a individualização do desempenho escolar e das desigualdades sociais, já que desenvolveram pesquisas cujo objetivo era a caracterização psicológica dos grupos em desvantagem. Caracterizações que tinham como parâmetro “comportamentos, atitudes, hábitos, estilo linguístico, modos de sociabilidade, entre outras categorias encontradas em grupos sociais de maior poder aquisitivo” (Hecket & Barros, 2007Hecket, A. L. C.; Barros, M. E. B. de. (2007). Fracasso escolar: do que se trata? Psicologia e educação, debates “possíveis”. Aletheia, 25, 109-122., p. 114).

Sob uma pretensa neutralidade, normas de comportamento foram sendo estabelecidas, de modo que um perfil psicológico das famílias e das crianças das camadas populares - fixadas em lugar de carência e falta - foi traçado. Tudo que escapasse ao modelo de normalidade instituído era desqualificado, devendo ser mantido sobre atenta vigilância, corrigido e/ou silenciado.

Observamos que essa perspectiva ainda está na base da produção do fracasso escolar. A partir dela que se constroem explicações individualizantes e preconceituosas acerca dos processos de aprendizagem e sociabilidade de determinados estudantes, pautando-as ora em fenômenos biológicos (transtornos de aprendizagem e/ou comportamentais de origem intrapsíquica ou neurológica) ora em fenômenos sociais (como as “famílias desestruturadas”, a pobreza, as culturas tidas como inferiores), vistos como doenças que ameaçam o ser coletivo (Batista, 2005Batista, V. M. (2005). A Nomeação do Mal. In: Menegat, M.; Neri, R. (Orgs.) Criminologia e Subjetividade(pp. 123-133). Rio de Janeiro: Lumen Juris.).

Essas práticas revelam o modo como a colonialidade se faz presente nos discursos e abordagens educacionais até hoje. Patto já apontava para essa presença quando concluía que a produção do fracasso escolar se encontra calcada no preconceito racial e social, na “força da ideologia num país marcado pelo colonialismo, pela escravidão, pelo modo capitalista de produção e pelas artimanhas culturais que os justificam” (1988Patto, M. H. S. (1988). O fracasso escolar como objeto de estudo: anotações sobre as características de um discurso. Cadernos de Pesquisa, n. 65, p. 72-77., p. 77).

Para Arroyo (2012Arroyo, M. G. (2012). Corpos-infância precarizados que interrogam nossa ética profissional. In: Arroyo, M. G.; Silva, M. R. da, (Eds.), Corpo-Infância. Exercícios tensos de ser criança. Por outras pedagogias dos corpos(pp. 23-54) Editora Vozes: Petrópolis.), há uma história antipedagógica que persiste e se atualiza desde a empreitada colonizadora. Em sua visão, essa antipedagogia se revela pelos corpos-vidas das infâncias não reconhecidas como parte da história oficial, econômica, cultural e pedagógica. Infâncias apagadas por pertencerem a coletivos sociais raciais inferiorizados e/ou excluídos por essa narrativa, construída pelo grupo que se autodefine superior: o grupo branco da elite. Corpos que desde tenra idade são pensados como não educáveis, não humanos. “A visão e os tratos, até os medos de seus corpos revelam que são vistos como bárbaros, sem limites, agressivos, instintivos. Violentos. Corpos mais do que precarizados, sub-humanos” (p. 40).

Esse processo atinge com golpes severos o desenvolvimento de crianças e adolescentes. Não levando em conta as tensões que atravessam toda a trajetória cultural, histórica e política do estudante, a instituição educacional o coloca em uma posição de “fracasso” muito difícil de ser ultrapassada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O modelo educacional escolar instituído tem como base preceitos colonialistas racistas que estão longe de serem superados. Essa constatação incita a questionamentos necessários. Como pode atuar o psicólogo no campo da educação escolar sem conhecer os jogos de poder que o atravessam e constituem? Com o que compactua ao tratar dos problemas de aprendizagem e sociabilidade dos estudantes através de abordagens que focalizam somente o indivíduo? Como contribuir para a construção de uma sociedade onde as diferenças não sejam tratadas como desvios a serem corrigidos e sim como modos de existir igualmente dignos?

Martín-Baró (2017Martín-Baró, I. (2017). Crítica e libertação na Psicologia. Petrópolis: Editora Vozes.) afirma que para construir novos horizontes é necessário considerar e assumir as perspectivas das maiorias oprimidas. No entanto, é preciso descolonizar nossas práticas, teorias, instituições, olhares, afetos, relações. Assim como, é fundamental ampliar nossas perspectivas, conhecer e difundir narrativas históricas e sociais construídas a partir de referências contra-hegemônicas.

Desconstruir a lógica colonial naturalizada em nós e em nossas práticas é o que nos permitirá avançar, como sugere Arroyo (2012Arroyo, M. G. (2012). Corpos-infância precarizados que interrogam nossa ética profissional. In: Arroyo, M. G.; Silva, M. R. da, (Eds.), Corpo-Infância. Exercícios tensos de ser criança. Por outras pedagogias dos corpos(pp. 23-54) Editora Vozes: Petrópolis.), na construção de uma epistemologia e ética dos corpos, emancipatória de tantas inferiorizações e ocultamentos. Essa construção só é possível a partir de uma escuta atenta às tantas vozes que compõem nossas histórias, rompendo com estruturas que as organizam em graus de importância verticalizados.

REFERÊNCIAS

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  • Este artigo constitui parte de uma pesquisa de doutorado em desenvolvimento, realizada no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, financiada pela CAPES.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2019
  • Aceito
    25 Maio 2021
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