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EXPERIMENTOS E PSICOLOGIA SOVIÉTICA: UMA ANTÍTESE METODOLÓGICA EQUIVOCADA

Experimentos y Psicología Soviética: una antítesis metodológica equivocada

RESUMO

Este trabalho apresenta-se como um ensaio teórico dedicado a enfatizar as bases ontológicas e epistemológicas da Psicologia Soviética para delimitar suas necessárias propriedades metodológicas. Acentuamos o risco anunciado para o campo da Psicologia Histórico-Cultural quando cedemos ao equívoco de esvaziar os sentidos atribuídos por Vigotski e pelos integrantes de seu Círculo ao Método Genético-Experimental à organização metodológica no campo das pesquisas em Psicologia. Por isso, propõe-se como objetivo deste trabalho o resgate da ênfase sobre as dimensões de experimentação no âmbito da organização da psicologia soviética com o intuito de desvendar seu impacto a esse respeito no campo das produções brasileiras, na interface entre a Psicologia e a Educação. Esse cuidado evita que contribuamos com a manutenção de um projeto teórico e político que anunciamos combater. Pretende-se contribuir com a compreensão de que as atividades de experimentação não se opõem às dimensões da crítica no interior do Materialismo Histórico-Dialético, ao contrário, são, muitas vezes, requeridas por ele.

Palavras-chave:
método genético-experimental; psicologia histórico-cultural; experimento

RESUMEN

Este estudio se presenta como ensayo teórico dedicado a enfatizar las bases ontológicas y epistemológicas de la Psicología Soviética para delimitar sus necesarias propriedades metodológicas. Destacamos el riesgo anunciado para el campo de la Psicología Histórico-Cultural cuando cedemos al equívoco de vaciar los sentidos atribuidos por Vygotsky y por los integrantes de su Círculo al Método Genético-Experimental a la organización metodológica en el campo de las investigaciones en Psicología. Por eso, se propone como objetivo de este estudio el rescate del énfasis sobre las dimensiones de experimentación en el ámbito de la organización de la psicología soviética con el intuito de descubrir su impacto a este respeto en el campo de las producciones brasileñas, en interfaz entre la Psicología y la Educación. Este cuidado evita que contribuyamos con la manutención de un proyecto teórico y político que anunciamos combatir. Se pretende contribuir con la comprensión de que las actividades de experimentación no se oponen a las dimensiones de la crítica en el interior del Materialismo Histórico-Dialéctico, al contrario, son, muchas veces, requeridas por él.

Palabras clave:
método genético-experimental; psicología histórico-cultural; experimento

ABSTRACT

This work presents itself as a theoretical essay dedicated to emphasizing the ontological and epistemological Soviet Psychology bases to delimit its necessary methodological properties. We accentuate the risk announced for the field of Historical-Cultural Psychology when we give in to the mistake of emptying the meanings attributed by Vigotski and by the members of his Circle to the Genetic-Experimental Method to the methodological organization in the in Psychology research field. Therefore, the aim of this work is to recover the emphasis about the dimensions of experimentation within the organization of Soviet psychology in order to unveil its impact in this regard in the Brazilian productions field, at the interface between Psychology and Education. This care prevents us from contributing to the maintenance of a theoretical and political project that we announce to be fighting. It is intended to contribute to the understanding that the experimentation activities do not oppose the dimensions of criticism within Historical-Dialectical Materialism, on the contrary, they are often required by it.

Keywords:
genetic-experimental method; historical-cultural psychology; experiment

INTRODUÇÃO

A literatura sobre a gênese e surgimento da Psicologia Escolar e Educacional no Brasil é rica e vasta. A qualidade desta produção caracteriza com esmero as nuances que delimitam a interface da Psicologia com a Medicina e com a Educação. Sabemos sobre os embates variados que absorveram os esforços da área para combater marcas positivistas equivocadas que nos levaram a tortuosas tentativas de psicologizar e estereotipar o complexo fenômeno humano. Conhecemos os dilemas que envolveram a especificidade e a possibilidade (inclusive no contexto dos trâmites legais) de atuação do psicólogo escolar, atentos ao escrutínio das suas funções como elaborador de fundamentos que deveriam ser oferecidos à Pedagogia ou à oportunidade de que ambos, psicólogos e pedagogos, colaborassem, dialeticamente, na efetivação do trabalho de escolarização no interior das instituições escolares (Patto, 1997Patto, M. H. S. (1997). Para uma crítica da razão psicométrica. Psicologia USP, 8(1).; Guzzo, 2007Guzzo, R. S. L. (2007). Escola amordaçada - compromisso do psicólogo com esse contexto. In: A. M. Martínez(Ed.), Psicologia escolar e compromisso social. (pp. 17-29). Campinas: Alínea.; Antunes, 2008Antunes, M. A. M. (2008). Psicologia Escolar e Educacional: história, compromissos e perspectivas. Psicologia Escolar e Educacional, 12(2), 469-475.; Marinho-Araújo, 2010Marinho-Araújo, C. (2010). Psicologia Escolar: Pesquisa e Intervenção. Em Aberto, 23(83), 17-35.).

No Brasil, o lastro que fundamenta essa importante compreensão tem se estabelecido a partir de um diálogo consistente com as bases da Teoria Histórico-Cultural. A crítica, emergente da epistemologia materialista-histórico-dialética, nos convocou a todos, membros daquela interface, para uma necessária reflexão destinada à relação entre aprendizagem e desenvolvimento psíquico. Uma breve análise da produção científica organizada pela área resulta na compreensão de que os fundamentos da Psicologia Soviética ou de seus desdobramentos vinculam-se, de muitas maneiras, à elaboração de práticas pedagógicas específicas em circunstâncias variadas (Patto, 1997Patto, M. H. S. (1997). Para uma crítica da razão psicométrica. Psicologia USP, 8(1).; Guzzo, 2007Guzzo, R. S. L. (2007). Escola amordaçada - compromisso do psicólogo com esse contexto. In: A. M. Martínez(Ed.), Psicologia escolar e compromisso social. (pp. 17-29). Campinas: Alínea., Antunes, 2008Antunes, M. A. M. (2008). Psicologia Escolar e Educacional: história, compromissos e perspectivas. Psicologia Escolar e Educacional, 12(2), 469-475.; Marinho-Araújo, 2010Marinho-Araújo, C. (2010). Psicologia Escolar: Pesquisa e Intervenção. Em Aberto, 23(83), 17-35.; Martins & Marsiglia, 2015Martins, L. M.; Marsiglia, A. C. G. (2015). Contribuições para a sistematização da prática pedagógica na educação infantil. Cadernos de Formação RBCE, 6(1), 15-26. Recuperado de http://revista.cbce.org.br/index.php/cadernos/article/view/2079.
http://revista.cbce.org.br/index.php/cad...
; Beatón, 2015Beatón, G. A. (2015). Los aportes del enfoque histórico cultural y la educación cubana. Revista Diálogos e Perspectivas em Educação Especial, 2(2), 23-38. https://doi.org/10.36311/2358-8845.2015.v2n02.5754
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).

A atenção sobre essa relação, assim como nos apresenta Bozhovich (2009Bozhovich, L. I. (2009). The Struggle for Concrete Psychology and the Integrated Study of Personality. Journal of Russian & East European Psychology, 47(4), 28-38.), surge por ocasião do 1º Congresso de Psicologia Pedagógica realizado em 1906. Desde esse momento até a sua segunda versão realizada em 1909 renomados autores russos envolveram-se com a análise histórica da elaboração dos fundamentos teórico-metodológicos produzidos pela Psicologia, questionando sua implicação e responsabilidade com a organização da prática pedagógica. O clamor daquelas discussões visava a delimitação de procedimentos experimentais que fossem capazes de elucidar como se constituíam as funções psicológicas desenvolvidas a partir dos processos de escolarização organizados pelas práticas pedagógicas.

Esta consideração guarda implicações cuja magnitude equivale ao risco que corremos de reduzi-la em interpretações distorcidas e superficiais e esse é, exatamente, o cerne das discussões que apresentamos como objeto deste manuscrito. É indiscutível que a obra de Vigotski e de seus colaboradores evoluiu e se aperfeiçoou ao longo dos anos que caracterizaram a elaboração do núcleo da Psicologia Histórico-Cultural. Ao mesmo tempo, é igualmente indiscutível que os principais interlocutores brasileiros da produção dos autores soviéticos posicionem-se de maneira diversa quanto à continuidade ou descontinuidade das teorias elaboradas por Vigotski, Leontiev e Luria (Toassa, 2016Toassa, G. (2016). “Atrás da consciência, está a vida”: o afastamento teórico Leontiev-Vigotski na dinâmica dos círculos vigotskianos. Educação e Sociedade Campinas, 37(135), 445-462. https://doi.org/10.1590/ES0101-73302016144457
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).

Assim, ainda que Davidov não seja considerado como membro dos círculos de Vigotski, estamos conscientes de que, do ponto de vista dos fundamentos da Psicologia Soviética, a reflexão que propomos atravessa essa conjuntura e devemos, portanto, mencioná-lo (Bovo, Kunzler, & Toassa, 2019Bovo, A. C. L.; Kunzler, A. P.; Toassa, G. (2019). Da “escola” ao “círculo” de Vigotski: uma perspectiva historiográfica crítica. Memorandum, 36, 1-23. https://doi.org/10.35699/1676-1669.2019.6842
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). Interessa-nos contribuir com o debate teórico cuja gênese repousa no âmago dessa produção apesar de suas possíveis semelhanças e divergências. Em outras palavras, insistimos em refletir sobre a síntese metodológica cuja unidade perpassa as elaborações singulares no bojo da universalidade da chamada Teoria Histórico-Cultural.

O EXPERIMENTO É A ANTÍTESE DA QUALIDADE NA PESQUISA EM PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO?

No conjunto de textos organizados sob o título “Pensamento e Linguagem” e escritos em 1934, Vigotski (1934/2001Vigotski, L. S. (1934/2001). El problema y el método de investigación. In: L. S. Vigotski. Obras Escogidas, Tomo II. (pp. 15-27). Madrid: Aprendizaje y Antonio Machado Libros., p. 152) afirma sobre os procedimentos metodológicos: [há uma] “claridade que somente a análise experimental pode proporcionar” [tradução nossa]. Para ele, o método realmente efetivo para alcançar a captação do movimento do desenvolvimento psicológico que integra biologia e cultura poderia ser nomeado de “morfológico-funcional-experimental-genético” (p. 154).

Esta claridade, emergente de uma análise genético-experimental, aparece, se assim poderíamos dizer, como um critério orientador dos seus trabalhos e de seus colaboradores. O seu insistente convite por uma Psicologia concreta cujos procedimentos metodológicos fossem capazes de colocar em movimento as funções ou fenômenos psicológicos que se desejasse estudar é evidente.

Entretanto, pouco se conhece sobre a organização ou sobre o conteúdo desses experimentos aos quais o autor se remete fazendo alusão aos seus resultados. A este respeito Yasnitsky (2009Yasnitsky, A. (2009). Vygotsky Circle during the decade of 1931-1941: toward an integrative science of mind, brain, and education (PhD Thesis). University of Toronto, Canadá.) acentua que a ciência experimental de Vigotski permanece como um mistério para a maioria daqueles que se dedicaram a conhecer ou a estudar sua obra. Segundo suas palavras “esta é uma perda para a história da psicologia e é uma perda ainda maior para a psicologia como uma prática contemporânea (p. 21)” [tradução nossa].

Se, por um lado, a ciência experimental de Vigotski permanece como um mistério insistentemente agregado aos nossos esforços de compreendê-la, por outro lado, esses mesmos esforços nos aproximam da compreensão daquela que parece se configurar como uma questão ontológica para o autor soviético. Na recente publicação Routledge organizada por Yasnitsky e Van der Veer, Zavershneva (2016Zavershneva, E. (2016). The way to freedom. In: A. Yasnitsky; R. Van der Veer(Eds.), Revisionist Revolution in Vygptsky Studies. New York: Routledge.) recupera a conjuntura do que se estabeleceu como um problema psicofísico para Vigotski. Em uma de suas conferências, que trata sobre a localização das funções psíquicas superiores, Vigotski critica Pavlov e o seu entendimento de que o pensamento é uma função especificamente associada ao lobo frontal. Àquela época ele já propunha que as funções estão organizadas de uma maneira dinâmica ao longo da superfície cerebral, agregando uma série de estruturas que podem variar com o conteúdo ou o propósito da tarefa que o sujeito executa.

Importa considerar, brevemente e, sem que escapemos do escopo deste trabalho, que os estudos mais recentes elaborados pela Neurociência retomam a preocupação demonstrada por Vigotski quando, por exemplo, evidenciam que processos como a Teoria da Mente ou a elaboração da brincadeira pelas crianças dependem de conexões que envolvem uma variedade de estruturas cerebrais, ao longo de domínios ora generalizados, ora específicos, como a junção temporo-parietal e o cerebelo (Vandervert, 2017Vandervert, L. (2017). Vygotsky meets neuroscience: the cerebellum and the rise of culture through play. American Journal of Play, 9(2), 202-227. Recuperado dehttps://www.journalofplay.org/issues/9/2
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; Saxe & Baron-Cohen, 2006Saxe, R.; Baron-Cohen, S. (2006). Editorial: The neuroscience of theory of mind. Social Neuroscience, 1(3-4), 1-9.).

Isso significa que Vigotski combatia a presença de concepções dualistas para a explicação dos fenômenos psicológicos, compreendendo-os, como resultantes de uma unidade corpo-pensamento. Essa concepção dualista assenta-se nas proposições de Wundt que decidiu nomear a existência de duas psicologias: a psicologia psicofisiológica, mensurável e concreta, e aquela subjetiva, destinada ao estudo descritivo dos processos de linguagem, mitos e costumes. O lastro dessa divisão destinou à primeira psicologia o legado do experimento e à segunda as sobras da atividade interpretativa (Walsh, Teo, & Abdala, 2014Walsh, R. T. G.; Teo, T.; Abdala, A. A. (2014). Critical History and Philosophy of Psychology. Cambridge: Cambridge University Press.). Assim, mais do que a cisão metodológica, carregamos ainda hoje a crença de que uma se combate com a outra. No entanto, se os estudos de revisão nos presenteiam com as palavras do próprio Vigotski, nos aproximemos delas, por meio da apresentação de Zavershneva (2016Zavershneva, E. (2016). The way to freedom. In: A. Yasnitsky; R. Van der Veer(Eds.), Revisionist Revolution in Vygptsky Studies. New York: Routledge., p. 136): “Somente pessoas que pertencem à nossa recente cultura europeia podem separar o psicológico e o físico como nós fazemos. Uma pessoa está dançando. Nós realmente temos, de um lado, movimentos musculares e, de outro, alegria e inspiração?”

Assim, é evidente que ao longo de sua obra, em muitos momentos, Vigotski aborda essa discussão metodológica enfatizando, a um só tempo, a necessária crítica aos sentidos fragmentados do uso dos experimentos no interior da Psicologia, mas, igualmente, a urgência da superação dessa compreensão na direção de uma concepção dinâmica e dialética (Vigotski, 1931/2000aVigotski, L. S. (1931/2000a). Método de investigación. In: L. S. Vigotski. Obras Escogidas, Tomo III. (pp. 47-96). Madrid: Visor y Ministerio de Educación y Ciencia.).

Quando nos dedicamos a essa análise observamos que a literatura soviética, de muitas perspectivas, propunha a execução dos experimentos como a concretização do método genético, isto é, como a possibilidade de suscitar e, assim, acompanhar o desenvolvimento de uma situação ou, mais precisamente, o desenvolvimento do psiquismo.

É exatamente esse fundamento que também está refletido na obra de Davidov (1988aDavidov, V. (1988a). La ensenanza escolar y el desarrollo psíquico: investigación psicológica, teórica y experimental. Moscou: Editorial Progresso.) a partir da elucidação dos chamados experimentos formativos. Esse procedimento deveria servir à necessidade de se pesquisar as funções psíquicas enquanto elas são fomentadas durante a própria investigação. Nesse sentido, para o autor, o experimento formativo constituía-se como unidade entre a investigação dos processos do desenvolvimento psíquico das crianças e a organização dos elementos pedagógicos de ensino.

No entanto, no Brasil, a literatura produzida pela Psicologia fundamentada na Teoria Histórico-Cultural parece oscilar quanto à compreensão acerca da natureza dessa questão. É comum nos defrontarmos com elaborações (Ribeiro, 2012Ribeiro, J. R. (2012). Temas filosóficos nas rodas de conversa na educação infantil (Monografia de Especialização). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. Recuperado de https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/VRNS-9NBP4A
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; Paiva, Araújo, & Cruz, 2019Paiva, A. C. S. S.; Araújo, J. D. A. B.; Cruz, S. H. V. (2019). O desenvolvimento da atividade “roda de conversa” em turmas de Educação Infantil. Da Investigação às Práticas: Estudos de Natureza Educacional, 9(2), 73-88. https://doi.org/10.25757/invep.v9i2.166
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) que associam qualquer tipo de experimentação a posições reducionistas ou, frequentemente, positivistas. Nesse sentido, é como se apenas o uso da palavra positivismo fosse capaz de definir um universo de atrocidades e, portanto, devesse ser consistentemente evitado. Supõe-se que o desenvolvimento das funções psicológicas superiores seja uma sucessão de eventos que podem ser observados e descritos, nunca investigados, porque qualquer experimentação seria nefastamente positivista.

Com o intuito de refinar o argumento que vimos construindo, ao fazermos uma consulta no banco de teses e dissertações da CAPES a partir das palavras-chave “psicologia histórico-cultural” + “pesquisa qualitativa,” somente no ano 2019, encontramos 1.400 produções. Por outro lado, se utilizamos as palavras-chave “psicologia histórico-cultural” + “pesquisa quantitativa” encontramos 162 trabalhos. Ainda que este não seja um trabalho de revisão bibliográfica, esta análise oferece um indício da tendência do campo em cindir as dimensões de qualidade e quantidade no interior dos desenhos metodológicos.

Isso revela o que Martins (2009Martins, L. M. (2009). As aparências enganam: divergências entre o materialismo histórico-dialético e as abordagens qualitativas de pesquisa. Anais da 29 Reunião Anual da Anped. Recuperado de:http://29reuniao.anped.org.br/trabalhos/trabalho/GT17-2042--Int.pdf
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) explicitou ao dizer que opta-se pela abordagem qualitativa na composição de análises cujos objetos seriam complexos, a quantificação seria superficial ou a qualidade seria a única via possível para o acolhimento dos processos investigados. Neste caso, desde as formulações feitas por Godoy (1995Godoy, A. S. (1995). Introdução à pesquisa qualitativa e suas possibilidades. Revista de Administração de Empresas, 35(2), 57 - 63.), as denominadas abordagens qualitativas, supostamente, suprimem qualquer dimensão de experimentação ou quantidade como garantia de que, efetivamente, acessem o complexo fenômeno humano (Mariano, 2019Mariano, A. P. (2019). Diálogos com professores e estagiários da escola pública sobre inclusão escolar: contribuições da Teoria Histórico-Cultural(Dissertação de Mestrado). Pontífica Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. Recuperado dehttps://sapientia.pucsp.br/handle/handle/22573
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; Lemos, 2019Lemos, P. T. C. (2019). Relação família-escola: sentidos e significados atribuídos por famílias e professores de crianças de camadas populares à educação escolar (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, São Paulo. Recuperado dehttps://repositorio.unifesp.br/handle/11600/60029
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; Pereira, 2019Pereira, J. T. G. (2019). O desenvolvimento do pensamento algébrico: significações produzidas por alunos do ensino fundamental (Dissertação de Mestrado). Universidade São Francisco, Itatiba, SP. Recuperado dehttps://www.usf.edu.br/galeria/getImage/385/3742992432660818.pdf
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; Fernandes, 2019Fernandes, S. A. S. (2019). Projetos de pesquisa: a prática docente entrelaçada ao ensino de ciências e de arte a partir de temas ambientais (Dissertação de Mestrado). Instituto Federal de Educação de Goiás, Jataí, Goiás. Recuperado dehttps://repositorio.ifg.edu.br/handle/prefix/479
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; Kasper, 2019Kasper, S. A. (2019). A implementação da escola de tempo integral do programa cidadescola de Presidente Prudente: tensões no trabalho docente (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho, Presidente Prudente, São Paulo. Recuperado dehttps://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/190809/kasper_sa_me_prud.pdf?sequence=3&isAllowed=y
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).

Assim, tais compreensões culminam na explicitação da Teoria Histórico-Cultural como uma espécie de arcabouço missionário cujo objetivo é opor-se a qualquer processo de experimentação ou empiria, reduzindo a robustez da proposta teórica dos autores soviéticos a um amálgama de práticas que confundem a característica intra-interpsíquica do desenvolvimento das funções psíquicas superiores como um conjunto de práticas destinadas à organização de atividades que devem ser desenvolvidas em grupo ou à utilização das chamadas metodologias ativas. Logo, da dimensão coletiva do processo de elaboração do psiquismo destitui-se seu rigoroso valor materialista histórico e dialético. Portanto, desta compreensão resultam equívocos ou incompreensões teóricas aparentemente inócuas, mas cujas consequências desembocam, por exemplo, em confusões sobre o conceito de mediação ao tomá-lo a partir da noção daquilo que se interpõem entre dois objetos ou situações e não a partir do seu valor instrumental capaz de organizar, internamente, o fluxo do desenvolvimento (Miranda, 2005Miranda, M. I. (2005). Conceitos centrais da teoria de Vygotsky e a prática pedagógica. Ensino em Re-Vista, 13(1), 7-28.; Navarro & Prodócimo, 2012Navarro, M. S.; Prodócimo, E. (2012). Brincar e mediação na escola. Revista Brasileira de Ciência do Esporte, 34(3), 633-648.; Martim & Martins, 2018Martim, M. G. M. B.; Martins, L. P. R. (2018). A sala de aula invertida e sua relação com a teoria de mediação de Vygotski. Anais do Colóquio Luso-Brasileiro de Educação - COLBEDUCA. Recuperado dehttps://www.revistas.udesc.br/index.php/colbeduca/article/view/11462
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).

Com essa análise, desvelamos o que parece instituir-se como uma contradição. A necessária crítica ao impacto liberal que impunha à Psicologia a exigência de metodologias de experimentação assépticas capazes de garantir sua cientificidade (Patto, 1997Patto, M. H. S. (1997). Para uma crítica da razão psicométrica. Psicologia USP, 8(1).) parece ter culminado, para alguns pesquisadores, no imperativo de rechaçar qualquer dimensão de quantidade do âmbito das pesquisas nesse cenário (Freitas, 2002Freitas, M. T. A. (2002). A abordagem sócio-histórica como orientadora da pesquisa qualitativa. Cadernos de Pesquisa, 116, 21-39.; Rhoden & Zancan, 2020Rhoden, J. L. M.; Zancan, S. (2020). A perspectiva da abordagem qualitativa narrativa de cunho sociocultural: possibilidade metodológica na pesquisa em educação. Revista Educação, 45. https://doi.org/10.5902/1984644436687
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) .

Por outro lado, é preciso considerar que observamos a emergência de um movimento na direção contrária. Ainda que a realização de uma análise do estado da arte sobre as pesquisas dedicadas à investigação da relação entre Psicologia Histórico-Cultural e metodologias de experimentação no bojo do materialismo histórico-dialético não seja o principal objetivo desse trabalho, dedicamo-nos a uma breve revisão cujos resultados nos revelam uma recente ênfase sobre esta especificidade.

Assim, uma consulta à plataforma Google Acadêmico orientada pelas palavras-chave “Vigotski”+ “Experimentos Formativos”, considerando os últimos 20 anos, resulta em um total de 319 artigos. Por outro lado, ao elegermos como palavras-chave os termos “Vigotski” + “Zona de Desenvolvimento Proximal4 4 Neste momento, não nos deteremos sobre as importantes questões que dizem respeito à tradução do termo ZDP na obra de Vigotski. Tampouco, à necessária discussão sobre as diferentes formas de grafia que envolvem o nome de Vigotski. Sabemos que essa discussão é solidamente efetuada na obra valorosa da Dra. Zoia Prestes. ” a busca alcança 15.800 produções. A enorme diferença que aqui se desenha constitui-se como indício significativo do problema que anunciamos.

Não raro, esses estudos recentes apresentam a perspectiva dos experimentos formativos elaborada por Davidov (1988aDavidov, V. (1988a). La ensenanza escolar y el desarrollo psíquico: investigación psicológica, teórica y experimental. Moscou: Editorial Progresso.) e dedicam-se à organização de pesquisas que investigam a relação entre a estrutura didática, a intencionalidade como característica da atividade docente e o processo de desenvolvimento das funções psíquicas superiores (Longarezi, 2017Longarezi, A. M. (2017). Para uma didática desenvolvimental e dialética da formação-desenvolvimento do professor e do estudante no contexto da educação pública brasileira. Revista Obutchénie, 1(1). https://orcid.org/0000-0002-5651-9333
https://doi.org/0000-0002-5651-9333...
; Kravtsov & Kravtsova, 2019Kravtsov, G. G.; Kravtsova, E. E. (2019). O objeto e o método da psicologia histórico-cultural.Teoria E Prática Da Educação,22(1), 25-31. https://doi.org/10.4025/tpe.v22i1.47426
https://doi.org/10.4025/tpe.v22i1.47426...
; Ferracioli, Trindade, & Magalhães, 2020Ferracioli, M. B.; Trindade, R. G.; Magalhães, G. M. (2020). O estudo concreto da atenção e seu desenvolvimento em contexto escolar. Interação em Psicologia, 24(3), 364 - 374. http://dx.doi.org/10.5380/riep.v24i3.72815
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)

Por isso, delimitamos a delicadeza do anúncio que fazemos porque, ao mesmo tempo em que revela-se o crescimento das pesquisas que tomam a noção de experimentação no interior da Psicologia Histórico-Cultural, especialmente no campo da educação, nota-se que a apropriação dessa noção, por vezes, não a insere no âmbito das discussões metodológicas que parecem cindir experimentos e reflexões qualitativas.

Este ensaio, pelo qual nos aventuramos, cumpre a tarefa de acolher essa delicadeza. É como um desvelar da contradição capaz de nos fazer avançar para além do dilema que parece associar a possibilidade de crítica ao que se delimita como intervenção qualitativa. Nesse sentido, retomamos e nos somamos às pesquisas que já estabeleceram as diferenças entre as epistemologias qualitativas e o materialismo histórico-dialético (Martins, 2009Martins, L. M. (2009). As aparências enganam: divergências entre o materialismo histórico-dialético e as abordagens qualitativas de pesquisa. Anais da 29 Reunião Anual da Anped. Recuperado de:http://29reuniao.anped.org.br/trabalhos/trabalho/GT17-2042--Int.pdf
http://29reuniao.anped.org.br/trabalhos/...
; Marsiglia, Martins, & Lavoura, 2019Marsiglia, A. C. G.; Martins, L. M.; Lavoura, T. N. (2019). Rumo à outra didática histórico-crítica: superando imediatismos, logicismos formais e outros reducionismos do método dialético. Revista HISTEDBR On-line, 19. https://doi.org/10.20396/rho.v19i0.8653380
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).

De todo modo, está evidente que esta não é uma defesa do positivismo ou de suas (também) apropriações significativamente superficiais. Essas palavras organizam-se, apenas, no sentido de um clamor pela utilização da lógica dialética que tanto nos inspira. É bem verdade que o movimento positivista não pode ser negligenciado como posição filosófica que fundou as bases da organização científica do conhecimento, assim como é igualmente verdade que ele se distancia dos pressupostos do Materialismo Histórico-Dialético. Ora, cabe a nós a compreensão de que posturas reducionistas, ao contrário de fazer avançar nossos esforços de estudo e pesquisa, acabam por nos afastar do compromisso que já foi assumido pela área há algum tempo desde o anúncio da importância dos fundamentos materialistas para a organização da pesquisa e da atuação em Psicologia e Educação no Brasil (Patto, 1997Patto, M. H. S. (1997). Para uma crítica da razão psicométrica. Psicologia USP, 8(1).).

Não nos afastamos dessa história e reconhecemos seu valor teórico e político. Se a história avança e produz, por incorporação, saltos na qualidade da compreensão de determinados fenômenos, não podemos nos furtar dos novos e diferentes problemas que passam a se constituir a partir daí, bem como do redimensionamento de algumas questões antigas que, historicamente, nos trouxeram para essa posição dicotômica no que diz respeito ao entendimento do papel dos experimentos no interior da pesquisa em Psicologia Histórico-Cultural.

Do interior desta conjuntura, é que insistimos sobre a importância da constatação do aumento de estudos e pesquisas cujo objetivo é a recuperação e reprodução dos modelos experimentais sugeridos pelos autores soviéticos, especialmente por Vigotski. Aqueles que o fazem parecem apontar para dimensões importantes acerca do estudo do desenvolvimento das funções psíquicas superiores a partir dos critérios do método genético, principalmente, para a necessidade de que essas funções sejam investigadas ao longo do seu processo de estabelecimento, utilização ou reconfiguração (Martins, Abrantes, & Facci, 2020Martins, L. M.; Abrantes, A. A.; Facci, M. G. D. (2020). Periodização Histórico-Cultural do Desenvolvimento Psíquico: do nascimento à velhice. Campinas: Autores Associados.).

Estes trabalhos, especialmente, quando referendados no lastro da organização cubana sobre os procedimentos de ensino e didática, nos confrontam com a afirmação de que não podemos mais nos furtar da organização de pesquisas dessa natureza caso queiramos alcançar a efetiva reestruturação do ensino a partir dos fundamentos da Teoria Histórico-Cultural (Aquino, 2017Aquino, O. F. (2017). O Experimento Didático-Formativo: contribuições de L. S. Vigotski, L. V. Zankov e V. V. Davídov. In: A. M. Longazarezi; R. V. Puentes (Eds.), Fundamentos psicológicos e didáticos do Ensino Desenvolvimental (pp. 323 - 350). Uberlândia: EDUFU.). É absolutamente equivocado imaginar que esses fundamentos possam orientar a didática cotidiana nas salas de aula sem que experimentos educativos sejam realizados. Para que esse equívoco não surpreenda nossas ações, contudo, é necessário sabermos que nem todo experimento pretende-se positivista, tampouco neutro.

Felizmente, a constatação da necessidade de enfrentamento desses problemas - que, de alguma maneira, dizem respeito ao modo como compreendemos e utilizamos os fundamentos da Psicologia Histórico-Cultural nas sua relações com a Pedagogia Histórico-Crítica - tem sido anunciada no interior da área (Tuleski, 2004Tuleski, S. C. (2004). Reflexões sobre a gênese da psicologia científica. In: N. Duarte(Ed.), Crítica ao fetichismo da individualidade(pp. 121-143). Campinas: Autores Associados.; Martins & Marsiglia, 2015Martins, L. M.; Marsiglia, A. C. G. (2015). Contribuições para a sistematização da prática pedagógica na educação infantil. Cadernos de Formação RBCE, 6(1), 15-26. Recuperado de http://revista.cbce.org.br/index.php/cadernos/article/view/2079.
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). Além disso, alguns estudos têm se dedicado, especialmente, à organização de propostas ou modelos de intervenção que delimitam a atuação do psicólogo escolar. Essas pesquisas anunciam, de alguma maneira, a característica da experimentação para a própria definição do trabalho dos profissionais na interface Psicologia e Educação (Magalhães, 2016Magalhães, G. M. (2016). Análise da atividade guia da criança na primeira infância: contribuições do materialismo histórico-dialético para avaliação do desenvolvimento infantil dentro de instituições de ensino (Tese de Doutorado). Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho”, Araraquara, São Paulo. Recuperado de https://repositorio.unesp.br/handle/11449/143796
https://repositorio.unesp.br/handle/1144...
).

Assim, se há algum tempo Patto (1997Patto, M. H. S. (1997). Para uma crítica da razão psicométrica. Psicologia USP, 8(1).) realizou a crítica da razão psicométrica, convém que não desperdicemos seus argumentos relegando-os ao limbo dualista que ela intencionava criticar. Dessa forma, pode nos inspirar, neste caminho que precisamos trilhar, o lúcido posicionamento de Pedrinho Guareschi (1998Guareschi, P. (1998). Quantitativo versus qualitativo: uma falsa dicotomia. Revista Psico, 29(1). 165-174.) também de há algum tempo, sobre a falsa dicotomia quantitativo versus qualitativo. Nesse sentido, eis a síntese que defendemos: qualidade e quantidade não são dimensões opostas na constituição de nenhum fenômeno psicológico e, por isso, a realização de experimentos nas pesquisas em Psicologia, especialmente na interface com a Educação, não é algo que se deva combater em nome de uma distorcida compreensão que os iguala à superficialidade ou à inadequação metodológica.

O CAMINHO MONISTA PARA OS DESENHOS METODOLÓGICOS EM PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO

Para o engodo dualista, o remédio já existe e repousa na compreensão monista das situações sociais de desenvolvimento e dos seus necessários e consequentes processos de pesquisa. Nikolai Veresov, um dos importantes interlocutores sobre essa temática no cenário contemporâneo, publicou recentemente, um conteúdo que diz respeito, exatamente, ao objeto deste debate que propomos. Veresov (2014)Veresov, N. (2014). Refocusing the Lens on Development: Towards Genetic Research Methodology. In M. Fleer; A. Ridgway (Eds.), Visual Methodologies and Digital Tools for Researching with Young Children. (pp. 129-149). Springer: Cham. https://doi.org/10.1007/978-3-319-01469-2_8
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defende a consistência dos fundamentos teóricos do Método Genético Experimental. A sua compreensão é a de que uma nova proposta de experimentação, capaz de envolver os aspectos quantitativos e qualitativos de qualquer fenômeno psicológico, deve ser estruturada a partir desse Método. Há que se desenvolver experimentos que sejam capazes de acessar a empiria dos fenômenos agregando-os, todavia, às necessárias análises qualitativas que lhe dizem respeito. Nas palavras do autor:

Todavia, uma teoria, mesmo aquela altamente desenvolvida, sem o recurso de um método experimental não é nada além de palavras. A teoria sem experimentos é jogo mental voluntário; e o experimento sem teoria é uma faca sem o cabo. O pesquisador precisa, não apenas dos conceitos como instrumentos teóricos de análise, mas também de um método experimental apropriado cujos instrumentos sejam igualmente adequados (p. 133).

Quando nos debruçamos sobre os textos de Vigotski (1930/2000Vigotski, L. S. (1930/2000). El método instrumental en psicología. In: L. S. Vigotski. Obras Escogidas, Tomo I. (pp. 65-70). Madrid: Visor y Ministerio de Educación y Ciencia.) dedicados ao estudo das elaborações metodológicas notamos sua insistência em delimitar que o Método Experimental não reflete de modo especular o processo real de desenvolvimento, mas, sim, sua essência genética, ao longo do processo de formação. Essa estrutura experimental faz com que Vigotski e os membros do seu Círculo alcancem, neste caso, a possibilidade de estudar a gênese das funções psíquicas superiores e não apenas seu aspecto descritivo.

Todavia, esta característica premente na obra de Vigotski parece, por vezes, diluída em uma espécie de compreensão equivocada dos seus principais fundamentos. Ao dedicar-se à elaboração de dimensões dessa conjuntura, Toassa (2014Toassa, G. (2014). Vigotski: notas para uma psicologia geral e concreta das emoções/afetos. Cadernos Espinosanos, 1(30), 49-66. https://doi.org/10.11606/issn.2447-9012.espinosa.2014.83774
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) anuncia a “persistência de uma leitura superficial e insatisfatória do que há de marxista no autor […] porque ora Vigotski é ingrediente para as misturas do construtivismo ora para a ortodoxia do marxismo-leninismo” (p. 49).

Assim, parece-nos cada vez mais importante enfatizar o princípio monista que sustenta a produção teórica de Vigotski a partir de uma conexão íntima com dimensões da filosofia e das ciências sociais. Ora, não é raro que nos deparemos com circunstâncias variadas em que se assume o fundamento da Psicologia Histórico-Cultural como uma necessidade de organização física dos ambientes em espaços grupais ou coletivos. O grupo em si é tomado como ferramenta potencializadora de aprendizagem e a brincadeira é tomada como oposição à “desagradável” atividade de ensino (Guarda, Luz, Rodrigues, & Beltrame, 2017Guarda, G. N.; Luz, T. N.; Rodrigues, T.; Beltrame, L. M. (2017). A roda de conversa como metodologia educativa: o diálogo e o brincar oportunizando o protagonismo infantil na sala de aula. Anais do XIV Congresso nacional de Educação - EDUCERE 12886 - 12899. Recuperado dehttps://educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2017/26991_13947.pdf
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).

Esta espécie de distorção equivocada parece ser resultado de uma apropriação apressada que seus interlocutores fazem do conteúdo da obra do autor. Tem-se reiterado que a intenção de Vigotski dizia respeito à elaboração de um projeto de Psicologia geral, particular e concreta. A ele interessava que as chamadas psicologias particulares, como os estudos sobre as crianças, se elevassem por meio de abstrações úteis à compreensão do “humano geral”. E, ali, entre as particularidades e as abstrações universais possíveis está a necessidade de análise da formação das conexões inter-intrapsíquicas, no movimento de constituição da concretude da humanidade (Toassa, 2014Toassa, G. (2014). Vigotski: notas para uma psicologia geral e concreta das emoções/afetos. Cadernos Espinosanos, 1(30), 49-66. https://doi.org/10.11606/issn.2447-9012.espinosa.2014.83774
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).

A metodologia que seja capaz de acessar a dinâmica de constituição das funções psicológicas superiores pode alcançar o movimento que se estabelece ao longo das conexões entre a sociedade e o sujeito enquanto acontece seu processo de individuação. Ali estão contidos elementos biológicos, políticos e sociológicos que engendram personalidades possíveis. A Psicologia, para se dedicar a esse tipo de estudo, carece de uma proposta metodológica que não admite ser relegada às apropriações reducionistas da lógica dialética.

As palavras de Davidov (1988bDavidov, V. (1988b). Problemas do ensino desenvolvimental. A experiência da pesquisa teórica e experimental na psicologia. (J. C. Libâneo; R. A. M. Da M. Freitas, Trad.) Moscou: Editorial Moscú.), ao explicitar a constituição do experimento formativo, certamente, nos ajudam a compreender como processos de experimentação não se igualam a avaliações estáticas e superficiais:

O método do experimento formativo tem como característica a intervenção ativa do pesquisador nos processos mentais que ele estuda. Neste aspecto, difere substantivamente do experimento de constatação que enfoca só o estado, já formado e presente de uma formação mental particular. A realização do experimento formativo pressupõe a projeção e modelação do conteúdo de novas formações mentais a serem constituídas, dos meios psicológicos e pedagógicos e das vias de sua formação (p.187)

A determinação monista constitutiva do arcabouço teórico da Psicologia Histórico-Cultural deve nos conduzir a uma compreensão mais rigorosa do que sejam os desenhos metodológicos das pesquisas às quais dedicamos nossos esforços de realização. Não podemos admitir que as ideias de experimento, diagnóstico e avaliação caibam apenas interpretações carregadas de acepções inferiorizantes. É preciso que nos salvemos dessa emboscada, porque a ela se vincula um projeto teórico e político oposto ao que os autores soviéticos professavam. E, assim, desavisados, podemos colaborar com o oposto daquilo que almejamos construir.

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  • 4
    Neste momento, não nos deteremos sobre as importantes questões que dizem respeito à tradução do termo ZDP na obra de Vigotski. Tampouco, à necessária discussão sobre as diferentes formas de grafia que envolvem o nome de Vigotski. Sabemos que essa discussão é solidamente efetuada na obra valorosa da Dra. Zoia Prestes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    02 Set 2019
  • Aceito
    08 Maio 2021
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