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EDITORIAL - Tempos desafiadores para a Psicologia Escolar frente à implementação da Lei 13.935/19 e à defesa da democracia

PELA ALEGRIA NA ESCOLA EM TEMPOS TÃO SISUDOS

Há um menino, há um moleque Morando sempre no meu coração Toda vez que o adulto balança ele vem pra me dar a mão Há um passado no meu presente (Milton Nascimento & Fernando Brant, 1988Nascimento, M., & Brant, F. (1988). Bola de meia, bola de gude. In: Nascimento, M. Álbum: Miltons. Formato: LP. Gravadora: CBS.)

Esta poesia em forma de canção remete às vivências dos meninos que os autores outrora foram, mas, também, aos brinquedos e às brincadeiras de infância que fizeram parte da vida de muitas/muitos de nós. Resgatar esta e tantas outras obras artísticas ou de outra natureza, tantos fatos e feitos que trazem à memória momentos lúdicos, singelos - ou nem tanto, mas sempre carregados de afetividade - constitui-se em uma estratégia de sobrevivência de nossa humanidade e da humanidade em nós.

Esse resgate do já vivido e do já vivenciado se faz necessário para termos dimensão de quem somos e como chegamos a sê-lo, sob o risco de perdermos a dimensão da nossa sociabilidade e do nosso processo formativo. A atenção a isto ganha ainda mais importância diante de tempos emblemáticos como os desses últimos anos. Neles, por exemplo, temos celebrado o quanto a inteligência artificial e a alta tecnologia como um todo podem tornar a vida mais ágil e desafiadora, produzindo conhecimentos outrora inimagináveis. Por outro lado, o “admirável mundo novo” de base tecnológica leva à ou impõe situações que colocam à prova o curso da Humanidade.

Passada a fase crítica da pandemia da Covid-19 (2020-2021), passamos a lidar com tantos sofrimentos físicos e emocionais que restaram e a “acompanhar” em tempo real sofrimentos impostos pelas guerras na Ucrânia e na Faixa de Gaza, por golpes e perseguições políticas (no/em Gabão, Niger, Sudão e outros países), perseguições e intolerâncias raciais, religiosas, de gênero, por ataques cada mais frequentes às escolas, grupos e pessoas por tantos outros motivos - injustificáveis.

Pelo que está em processo, é preciso que eduquemos de tal modo que as escolas sejam retomadas ou mantidas como espaços de encontros, entre as pessoas, com o conhecimento, com a formulação de propósitos coletivos/sociais.

Quando tudo parece revestido do seu contrário, reafirmamos o quanto a escola de educação básica e superior precisa ser propositiva, posto que compromissada com a produção/objetivação do conhecimento, com o ensino que instigue a sua apropriação por todas/os estudantes. Nessa direção, cabe recuperar também o trabalho de Georges Snyders1 1 Nasceu em Paris, em 1917 e faleceu também em Paris, em 2011. (1974Snyders, G. (1974). Para onde vão as pedagogias não-diretivas?Lisboa: Moraes., 1988Snyders, G. (1988). A Alegria na Escola. São Paulo: Editora Manole., 1993Snyders, G. (1993). Alunos Felizes, reflexão sobre a alegria na escola a partir de textos literários. São Paulo: Paz e Terra, 1995Snyders, G. (1995). Feliz na Universidade, estudos a partir de algumas biografias. São Paulo: Paz e Terra ., 1997Snyders, G. (1997). A escola pode ensinar as alegrias da música?São Paulo: Cortez.), que problematiza como a escola poderia ser alegre, ensinando as alegrias da música, da literatura, enfim da cultura. Snyders era judeu, foi membro da Resistência Francesa na II Guerra Mundial, foi preso em 1944 e enviado a Auschwitz. Como professor universitário e pesquisador, retomou uma temática cara a respeito da sua própria vida.

Entre as décadas de 1970 a 1990, Snyders escreve sobre o papel da cultura e das artes para o alcance das finalidades formativas da educação após períodos tão dramáticos. Destacando que a alegria deveria fazer parte da luta pela transformação da escola e da sociedade, discutiu diferentes temáticas mirando uma pedagogia progressista e apontando para a necessidade de se renovar a escola, as suas relações com o conhecimento e a cultura para a transformação do aluno.

Ele entendia que o rigor dos estudos científicos deveria ser atravessado pelo contato com a música, com os livros literários, com as biografias etc., constituindo-se a escolarização básica e superior em um período prazeroso - e nem por isso pouco impactante, muito pelo contrário.

Passadas algumas décadas, e mais propriamente nos anos de 2020, quando a violência estrutural se expande atingindo a todos/as, contamos com a possibilidade de acompanhar em tempo real os seus ardis, de constatar como podemos aniquilar pessoas, grupos, povos, nações. Isso revela a capacidade humana para criar todo tipo de estratégia e instrumentos que podem ser empregados para os mais diversos fins.

Embora o sentimento de impotência possa ser suscitado em meio à barbárie, seguimos na defesa da democracia, na luta intransigente pela vida com dignidade, pela boa escola para todas as pessoas, e por isto inclusiva, no empenho para que nela e na sociedade em geral os direitos humanos sejam observados.

Para tanto, reafirmamos nosso empenho para não nos esquecermos de quem fomos, de quem somos e de pensarmos em quem podemos vir a ser. Nessa direção, o trabalho educativo-formativo pode recuperar o que escrevem e (en)cantam Milton Nascimento e Fernando Brant (1988Nascimento, M., & Brant, F. (1988). Bola de meia, bola de gude. In: Nascimento, M. Álbum: Miltons. Formato: LP. Gravadora: CBS., grifo nosso):

Toda vez que a bruxa me assombra O menino me dá a mão E me fala de coisas bonitas Que eu acredito que não deixarão de existir Amizade, palavra, respeito, caráter, bondade, alegria e amor Pois não posso, não devo Não quero viver como toda essa gente insiste em viver Não posso aceitar sossegado Qualquer sacanagem ser coisa normal Há um menino, há um moleque Morando sempre no meu coração Toda vez que o adulto balança ele vem pra me dar a mão.

Entendemos que somente quando a escola cumpre com sua finalidade de ensino (intransigente) dos conteúdos curriculares, valendo-se de diferentes recursos e estratégias já possíveis nesta terceira década do século XXI, e em conformidade com políticas públicas que assegurem a acessibilidade ao já elaborado e conquistado pela humanidade, é que a constituição da genericidade em todos os sujeitos pode ser vislumbrada.

Com essas defesas da vinculação da escola com os compromissos democráticos em prol da formação das crianças e dos jovens que passam por ela, podemos pensar no quanto a biografia e a obra de tantas pessoas, como Snyders, nos inspiram a prosseguirmos. Esperamos que os artigos deste número da Revista Psicologia Escolar e Educacional inspirem a todas/os na defesa da “alegria na escola”.

Boa leitura.

REFERÊNCIAS

  • Nascimento, M., & Brant, F. (1988). Bola de meia, bola de gude. In: Nascimento, M. Álbum: Miltons Formato: LP. Gravadora: CBS.
  • Snyders, G. (1974). Para onde vão as pedagogias não-diretivas?Lisboa: Moraes.
  • Snyders, G. (1988). A Alegria na Escola São Paulo: Editora Manole.
  • Snyders, G. (1993). Alunos Felizes, reflexão sobre a alegria na escola a partir de textos literários. São Paulo: Paz e Terra
  • Snyders, G. (1995). Feliz na Universidade, estudos a partir de algumas biografias São Paulo: Paz e Terra .
  • Snyders, G. (1997). A escola pode ensinar as alegrias da música?São Paulo: Cortez.
  • 1
    Nasceu em Paris, em 1917 e faleceu também em Paris, em 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023
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