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METACOGNIÇÃO, AUTOPERCEPÇÃO E AUTOCONSCIÊNCIA EM CRIANÇAS DE 9 A 12 ANOS

Metacognición, autopercepción y autoconsciencia en niños de 9 a 12 años

RESUMO

A metacognição é um processo cognitivo fundamental para a aprendizagem e está relacionada à autorreflexão. O objetivo deste estudo, exploratório e de enfoque qualitativo, foi descrever a percepção de crianças sobre suas estratégias metacognitivas a partir de uma escala de metacognição. Participaram 106 crianças de 9 a 12 anos de idade, que responderam a um questionário estruturado. A análise dos dados seguiu os critérios da fenomenologia semiótica. Os resultados revelaram cinco temáticas: (1) Alegria e motivação; (2) Indecisão e curiosidade; (3) Saber mais sobre mim; (4) Ansiedade; (5) Diferente do que faço na escola. A diversidade temática da percepção das crianças sobre seu processo autorreflexivo sugere a amplitude do monitoramento dos próprios pensamentos, sentimentos e comportamentos e da experiência e julgamento de conteúdos internalizados. Sugere-se que tarefas autorreflexivas sejam incluídas nos programas escolares, pois propiciam às crianças a ressignificação do papel de sujeitos de seu próprio processo de conhecimento.

Palavras-chave:
metacognição; autoconsciência; infância

RESUMEN

La metacognición es un proceso cognitivo fundamental hacia el aprendizaje y está relacionada a la autorreflexión. El objetivo de este estudio, exploratorio y de enfoque cualitativo, fue describir la percepción de niños sobre sus estrategias metacognitivas a partir de una escala de metacognición. Participaron 106 niños de 9 a 12 años, que respondieron a un cuestionario estructurado. El análisis de los datos siguió los criterios de la fenomenología semiótica. Los resultados apuntaron cinco temáticas: (1) Alegría y motivación; (2) Indecisión y curiosidad; (3) Saber más sobre mí; (4) Ansiedad; (5) Diferente de lo que hago en la escuela. La diversidad temática de la percepción de los niños sobre su proceso autorreflexivo sugiere la amplitud de la supervisión de los propios pensamientos, sentimientos y comportamientos y de la experiencia y juzgamiento de contenidos internalizados. Se sugiere que tareas autorreflexivas sean incluidas en los programas escolares, pues propician a los niños la resignificación del papel de sujetos de su propio proceso de conocimiento.

Palabras clave:
metacognición; autoconsciencia; infancia

ABSTRACT

Metacognition is a fundamental cognitive process for learning and it is related to self-reflection. The objective of this exploratory and qualitative study was to describe children’s perception of their metacognitive strategies based on a metacognition scale. In this way,106 children aged 9 to 12 years old participated, who answered a structured questionnaire. Data analysis followed the semiotic phenomenology criteria. The results revealed five themes: (1) Joy and motivation; (2) Indecision and curiosity; (3) Know more about me; (4) Anxiety; (5) Different from what I do at school. The diversity thematic of children’s perception of their self-reflective process suggests the extent of monitoring their own thoughts, feelings and behaviors and the experience and judgment of internalized contents. It is suggested that self-reflective tasks may be included in school programs, as they allow children to re-signify their role as subjects of their own knowledge process.

Keywords:
metacognition; self-awareness; childhood

INTRODUÇÃO

A autorregulação é um componente cognitivo utilizado pelo sujeito para gerenciar seus pensamentos, comportamentos e sentimentos. Esse recurso se torna mais eficaz à medida que o sujeito consegue estabelecer uma relação mediadora entre a motivação, a necessidade de aprender e de superar as dificuldades. A metacognição é uma dimensão da autorregulação, assim como a motivação, e auxilia a regulação do processamento de informações e do comportamento (Beber, Silva, & Bonfiglio, 2014Beber, B., Silva, E., & Bonfiglio, S. U. (2014). Metacognição como processo da aprendizagem. Rev. Psicopedagogia, 31(95), 144-151. Recuperado de: http://www.revistapsicopedagogia.com.br/detalhes/74/metacognicao-como-processo-da-aprendizagem#:~:text=A%20metacogni%C3%A7%C3%A3o%20como%20processo%20da,conforme%20demonstrado%20na%20Figura%201
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; Koriat, Ackerman, Lockl, & Schneider, 2014Koriat, A., Ackerman, R., Adiv, S., Lockl, K., & Schneider, W. (2014). The effects of goal-driven and data-driven regulation on metacognitive monitoring during learnimg: a development perspective. Journal of Experimental Psychology: General, 143, 416-428. https://doi.org/10.1037/a0031768
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). Ela pode ser definida como a capacidade do sujeito para estar consciente de seus próprios processos cognitivos e ter habilidade para controlá-los, monitorando-os e organizando-os para alcançar seus objetivos e metas. Ainda, refere-se ao entendimento que o sujeito tem a respeito de seu estado cognitivo, concebendo seus processos psíquicos como objetos da própria consciência (Santos, 2017Santos, L. A. T. (2017). A importância do entendimento do conceito de metacognição para avaliação neuropsicológica. Monografia de Especialização em Psicologia Clínica, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil. Recuperado de: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/159091.). Mais especificamente, metacognição é o "[...] conhecimento e cognição sobre o fenômeno cognitivo" (Flavell, 1979Flavell, J. H. (1979). Metacognition and cognitive monitoring: a new area of cognitive developmental inquiry. American Psychologist, 34(10), 906-911. https://doi.org/10.1037/0003-066X.34.10.906
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, p. 906). É uma habilidade consciente de autorregulação e autoconhecimento que demanda aspectos psicológicos, emocionais e motivacionais, por isso, é influenciada por aspectos internos e externos ao sujeito (Santos, 2017Santos, L. A. T. (2017). A importância do entendimento do conceito de metacognição para avaliação neuropsicológica. Monografia de Especialização em Psicologia Clínica, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil. Recuperado de: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/159091.).

A metacognição influencia o sujeito na tomada de decisão de acordo com o contexto, organiza as funções de atenção, percepção e memória, que também são úteis na elaboração, execução e monitoramento de objetivos, assim como na avaliação de resultados (Santos, 2017Santos, L. A. T. (2017). A importância do entendimento do conceito de metacognição para avaliação neuropsicológica. Monografia de Especialização em Psicologia Clínica, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil. Recuperado de: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/159091.). É fundamental para a aprendizagem (Corso, Sperb, Jou, & Salles, 2013Corso, H. V., Sperb, T. M., Jou, G. I., & Salles, J. F. (2013). Metacognição e funções executivas: relações entre os conceitos e implicações para a aprendizagem.Psicologia: Teoria e Pesquisa, 29(1), 21-29. Recuperado de:https://www.scielo.br/pdf/ptp/v29n1/04.pdf
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), pois permite conhecer, monitorar, organizar e controlar as ações para desenvolver estratégias e alcançar os objetivos. Ou seja, é uma função facilitadora do processo de aprendizagem que não se limita ao aprendizado acadêmico; ela estende-se a todo processo de conhecimento, em diferentes contextos, por exemplo, o profissional, o social e o político (Beber et al., 2014Beber, B., Silva, E., & Bonfiglio, S. U. (2014). Metacognição como processo da aprendizagem. Rev. Psicopedagogia, 31(95), 144-151. Recuperado de: http://www.revistapsicopedagogia.com.br/detalhes/74/metacognicao-como-processo-da-aprendizagem#:~:text=A%20metacogni%C3%A7%C3%A3o%20como%20processo%20da,conforme%20demonstrado%20na%20Figura%201
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). A habilidade metacognitiva faz-se indispensável à aquisição e desenvolvimento da linguagem oral, da escrita, da leitura, da atenção, da memória, da resolução de problemas e do autocontrole.

Inicialmente, a metacognição foi investigada pela corrente pós-piagetiana (Flavell, 1979Flavell, J. H. (1979). Metacognition and cognitive monitoring: a new area of cognitive developmental inquiry. American Psychologist, 34(10), 906-911. https://doi.org/10.1037/0003-066X.34.10.906
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), o que resultou em um modelo de monitoramento cognitivo que ainda é referência para a área. Tal modelo considera que o processo cognitivo é formado por quatro classes de fenômenos: (1) o conhecimento metacognitivo, no qual estão armazenados o conhecimento das tarefas cognitivas, as ações e as experiências; (2) as experiências metacognitivas, que abrangem o conhecimento cognitivo ou afetivo que, de forma consciente, está presente no processo cognitivo; (3) as metas (objetivos) e (4) as estratégias (ações). Em outras palavras, a metacognição está relacionada ao conhecimento dos processos e competências envolvidos nos atos de planejar e definir metas, realizar ações, monitorar e avaliar o desempenho, além de controlar as ações executadas e a avaliação sobre os resultados (Koriat et al., 2014Koriat, A., Ackerman, R., Adiv, S., Lockl, K., & Schneider, W. (2014). The effects of goal-driven and data-driven regulation on metacognitive monitoring during learnimg: a development perspective. Journal of Experimental Psychology: General, 143, 416-428. https://doi.org/10.1037/a0031768
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).

O modelo de monitoramento metacognitivo serviu de inspiração para criação de outros modelos teóricos, como o apresentado por Dunlosky e Metcalfe (2009Dunlosky, J., & Metcalfe, J. (2009). Metacognition: a textbook for cognitive, educational, life span and applied psychology. Thousand Oaks, CA: Sage Publications.). Para eles, a metacognição é formada por três componentes: (1) conhecimento metacognitivo, que compreende como o sujeito sabe que aprende e como deve melhorar a aprendizagem; (2) o monitoramento metacognitivo, que se dá no momento em que o sujeito avalia a atividade cognitiva e se torna capaz de acompanhar a execução das tarefas; (3) o controle metacognitivo, que surge como consequência do monitoramento cognitivo - o sujeito toma decisões acerca das estratégias usadas para alcançar os objetivos.

A construção do saber é impulsionada pelo desenvolvimento metacognitivo, contudo é necessário enfatizar a influência dos contextos e a interferência de mediadores que auxiliam o sujeito nesse processo. A interação entre o sujeito e os mediadores sociais possibilita a transposição de dificuldades e favorece a adaptação às mudanças exteriores (Beber, Silva, & Bonfiglio, 2014Beber, B., Silva, E., & Bonfiglio, S. U. (2014). Metacognição como processo da aprendizagem. Rev. Psicopedagogia, 31(95), 144-151. Recuperado de: http://www.revistapsicopedagogia.com.br/detalhes/74/metacognicao-como-processo-da-aprendizagem#:~:text=A%20metacogni%C3%A7%C3%A3o%20como%20processo%20da,conforme%20demonstrado%20na%20Figura%201
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; Dantas & Rodrigues, 2013Dantas, C., & Rodrigues, C. C. (2013). Estratégias metacognitivas como intervenção psicopedagógica para o desenvolvimento do automonitoramento. Revista Psicopedagogia, 30(93), 2026-2035. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-84862013000300009&lng=pt&tlng=pt
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).

O monitoramento metacognitivo é, portanto, uma função metacognitiva e auxilia o desempenho escolar (Koriat et al., 2014Koriat, A., Ackerman, R., Adiv, S., Lockl, K., & Schneider, W. (2014). The effects of goal-driven and data-driven regulation on metacognitive monitoring during learnimg: a development perspective. Journal of Experimental Psychology: General, 143, 416-428. https://doi.org/10.1037/a0031768
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) ao permitir ao sujeito ter autopercepção sobre o próprio processo cognitivo. Além disso, fornece informações sobre o emprego das estratégias psicológicas e as metas alcançadas, possibilita a reflexão sobre o pensamento e permite ao sujeito a avaliação acerca dos processos psicológicos utilizados na aprendizagem (Tanikawa, Akemi, & Boruchovitch, 2016Tanikawa M., Akemi H., & Boruchovitch, E. (2016). Monitoramento Metacognitivo de alunos do Ensino Fundamental Psicologia Escolar e Educacional. Psicologia Escolar e Educacional, 20(3), p. 457- 464. https://doi.org/10.1590/2175-3539201502031012
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). A partir disso, é possível compreender a estreita relação entre a metacognição e a autorreflexão, já que essa é necessária na fase de monitoramento e auxilia o sujeito a escolher e ajustar as estratégias, buscando aquelas que mais contribuem para alcançar seus objetivos.

Partindo do pressuposto de que a autorreflexão é uma dimensão da autoconsciência que, por sua vez, é um importante componente do processo metacognitivo, torna-se evidente a participação da autoconsciência no monitoramento cognitivo (Leal, Souza, & Souza, 2018Leal, C. K. N., Souza, M. D. P., & Souza, M. L. (2018). Autorreflexão e insight como dimensões da autoconsciência privada. Psico, 49(3), 231-241. Recuperado de: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-967480
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). Isto é, o monitoramento metacognitivo é favorecido quando o sujeito tem habilidades emocional e cognitiva ao avaliar os pensamentos, comportamentos, estratégias e sentimentos em si mesmo e nos outros. Frente a isso, o objetivo deste estudo foi descrever a percepção de crianças em desenvolvimento típico sobre suas estratégias metacognitivas a partir de uma escala de metacognição.

MÉTODO

Delineamento

Estudo de abordagem qualitativa com enfoque exploratório (Creswell, 2003/2010Creswell, J. W. (2010). Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto(2a ed.). São Paulo: Penso. (Trabalho original publicado em 2003).; Creswell & Clark, 2011/2013Creswell, J. W., & Clark, V. L. P. (2013). Pesquisa de métodos mistos(2a ed.). Porto Alegre: Penso. (Trabalho original publicado em 2011).). O tratamento e a análise dos dados seguiram os critérios da fenomenologia semiótica (Batista, Saleme, Canal, & Souza, 2017Batista, T. C., Saleme, S. B., Canal, C. P. P., & Souza, M. L. (2017). Autoconsciência em estudantes talentosos: um estudo fenomenológico-semiótico. Psicologia Escolar e Educacional, 21(3), 487-494. http://dx.doi.org/10.1590/2175-35392017021311184
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; Gomes, 1997Gomes, W. (1997). A entrevista fenomenológica e o estudo da experiência consciente.Psicologia USP, 8(2), 305-336. https://doi.org/10.1590/S1413-73722009000200018
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, 1998Gomes, W. (1998). Fenomenologia e pesquisa em psicologia. Porto Alegre: UFRGS.; Leal et al., 2018Leal, C. K. N., Souza, M. D. P., & Souza, M. L. (2018). Autorreflexão e insight como dimensões da autoconsciência privada. Psico, 49(3), 231-241. Recuperado de: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-967480
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; Motta, Rafalski, Rangel, & Souza, 2013Motta, F. E., Rafalski, J. C., Rangel, I. C., & Souza, M. L. D. (2013). Narrativa e reflexividade dialógica: uma aproximação entre escrita e fala interna. Psicologia: Reflexão e Crítica, 26(3), 609-616. https://doi.org/10.1590/S0102-79722013000300021
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; Silva, Jardim, & Souza, 2019Silva, K. P., Jardim, A. P., & Souza, M. L. (2019). Dificuldades de aprendizagem: contribuições da psicologia cognitiva e da fenomenografia. Psicologia da Educação, 48, 87-98. https://dx.doi.org/10.5935/2175-3520.20190010
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).

Participantes

Tratou-se de uma amostra por conveniência, que incluiu duas escolas da Região Metropolitana da Grande Vitória, estado do Espírito Santo. Todas as crianças do 3º ao 6ºanos foram convidadas. Integraram a amostra 106 crianças, sendo 77 (72,64%) de 9 e 10 anos e 29 (27,36%), de 11 e 12 anos, sendo 55 meninas (51,89%) e 51 meninos (48,11%). Optou-se pelo critério da heterogeneidade da amostra, por isso os participantes foram provenientes de uma escola pública municipal (37; 34,9%) e de uma escola privada (69; 65,1%). Não foi objetivo, entretanto, promover a comparação entre os dados dos participantes da escola pública e da privada, mas apenas obter uma amostra diversificada da população da faixa etária pesquisada.

Instrumentos

Foram utilizados dois instrumentos. O primeiro, Escala de Metacognição (EMETA) (Pascualon-Araujo & Schelini, 2015Pascualon-Araujo, J. F., & Schelini, P. W. (2015). Evidências de validade de uma escala destinada à avaliação da metacognição infantil. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 31(2), 163-171. https://doi.org/10.1590/0102-37722015021375163171
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), é um instrumento de rastreio, cujo objetivo é avaliar habilidades metacognitivas em crianças de 9 a 12 anos de idade. Compõe-se de 16 tarefas metacognitivas, tais como: "Sou bom para lembrar das coisas que vejo", "Durante a leitura de um livro, fico me perguntando o que eu estou entendendo" e "Quando termino uma prova, sei dizer se fui bem ou não". A escala não foi objeto de análise deste estudo, servindo como disparador da reflexividade consciente, ou seja, colaborou como provocadora do processo de autorreflexão das crianças. O segundo instrumento é um questionário estruturado que se refere à percepção dos participantes sobre os itens da EMETA. Foi desenvolvido pelos pesquisadores envolvidos nesse estudo a fim de permitir às crianças pensar sobre o próprio processo cognitivo. Constitui-se de um roteiro composto por dois tópicos: "Como você se sentiu fazendo a atividade?" (Questão A) e "Você achou a atividade interessante? Por quê?" (Questão B). As crianças responderam ao questionário por escrito.

Coleta dos dados

Os pais que concordaram com a participação das crianças assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Os professores autorizaram a saída das crianças de sala de aula, sempre em momentos em que não houvesse atividades avaliativas, revisões ou introdução de novos conteúdos. A coleta ocorreu em um local silencioso, previamente sugerido pelas escolas, com grupos de dez a 15 crianças. Ao chegarem ao local da coleta, a pesquisadora responsável e os monitores da pesquisa (cinco graduandos em Psicologia) acolheram as crianças e explicaram os procedimentos de cada instrumento. Elas responderam primeiramente à EMETA e, em seguida, ao questionário estruturado. As crianças cujos pais não assinaram o TCLE e as que não quiseram participar continuaram em atividade escolar. O tempo de duração da coleta para cada grupo de participantes foi de 40 minutos, desde a orientação até o preenchimento dos instrumentos. A coleta foi realizada nos meses de novembro de 2018 e abril e agosto de 2019. Houve uma devolutiva dos resultados do estudo para os responsáveis pedagógicos das escolas.

Análise dos dados

A análise dos dados do questionário foi realizada por três juízes que, de forma independente, leram as respostas dos participantes, adotando-se a prática da epoché, ou seja, a tentativa de minimizar a subjetividade do pesquisador. Cinco temas foram retirados da descrição por não terem obtido 100% de concordância entre os juízes. O questionário estruturado recebeu um código para resguardar a identidade dos participantes, incluindo as seguintes informações: P = participante, I = idade, G = gênero, Q = questão A ou B (P.I.G.Q). Por exemplo, P1.8.F.A refere-se ao participante número 1, 8 anos de idade, gênero feminino, resposta A.

Os critérios de análise da fenomenologia semiótica são fundamentados em três passos reflexivos sistemáticos, quais sejam, descrição, redução e interpretação (Ehrenbrink & Souza, 2018Ehrenbrink, P. P., & Souza, M. L. (2018). Autoconsciência e conversa interna de adultos obesos à espera de cirurgia bariátrica: um estudo qualitativo. Interação em Psicologia, 1(1), 56-64. Recuperado de:https://revistas.ufpr.br/psicologia/article/view/53007/35059
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; Lanigan, 1988Lanigan, R. L. (1988). Phenomenology of communication: Merleau-Ponty’s thematics in communicology and semiology. Pittsburgh, PA: Duquesne University Press.), que embasaram a análise dos resultados. No primeiro passo, a atividade descritiva da experiência consciente das crianças foi organizada em seis temáticas que emergiram dos resultados. A partir dessa etapa, em um segundo passo reflexivo, referente à redução fenomenológica, a análise da descrição foi reorganizada em síntese, que revelou a estrutura de conteúdo. Ou seja, ao mesmo tempo em que as respostas foram divididas, o conteúdo foi evidenciado. O terceiro e último passo, a interpretação fenomenológica, questionou as possíveis relações entre as respostas (linguagem escrita) e as partes que as compunham, trazendo novas possibilidades de reflexão, que foram, então, contrapostas aos diferentes contextos oferecidos pela literatura científica na área, a fim de se construir a compreensão do fenômeno investigado.

RESULTADOS

A descrição e a redução fenomenológica apresentam, respectivamente, o contexto temático que emerge das percepções das crianças e o foco problemático que sintetiza as partes (unidades de sentido) expressas por escrito nas suas respostas ao questionário proposto. Dessa forma, o contexto temático da percepção das crianças sobre sua experiência de refletir acerca do próprio processo cognitivo abrangeu cinco diferentes temas: (1) Alegria e motivação; (2) Indecisão e curiosidade; (3) Aprender mais sobre mim; (4) Ansiedade e (5) Diferente do que faço na escola.

(1) Alegria e motivação: esta temática abrangeu respostas que se referem a uma avaliação do próprio estado afetivo ao desempenhar a tarefa, com destaque para emoções positivas expressas em termos de alegria, felicidade, animação, calma, tranquilidade, ausência de raiva e confiança em si. Tais afetos aparecem como predominantes na percepção das crianças, mesmo quando acompanhadas de surpresa, dúvida ou incômodo. “Eu [me] senti calmo e com bastante atenção“ (P36.12.M.A); “Muito legal. Muito alegre! Feliz!“ (P37.11.F.A); “Eu me senti bem, não fiquei nervosa. Foi legal“ (P44.9.F.A); “Calmo e paciente” (P39.12.M.A); “Eu me senti confiante” (P42.9.M.A); “Eu me senti alegre, animada, feliz, incomodada, e, depois, fiquei mais animada a fazer a pesquisa. Ao mesmo tempo, fiquei surpresa” (P45.9.F.A); “Me senti muito animada” (P50.10.F.A); “Eu fiquei muito alegre” (P52.9.F.A); “Me senti feliz” (P81.11.F.A).

(2) Indecisão e curiosidade: temática que expressa uma avaliação com foco no aspecto cognitivo da tarefa, que abrange a percepção de um grau de dificuldade relacionado à indecisão e, possivelmente, associado à complexidade do processo de metacognição exigido para responder aos itens do instrumento. “Eu me senti meio confuso, mas a atividade é muito legal“ (P38.12.M.A); “Eu fiquei um pouco indeciso, pois as vezes achei que é difícil. Sou muito indeciso” (P47.9.M.A); “Eu me senti mais interessada de fazer as coisas e me senti mais motivada a fazer as coisas que me pedem para fazer em casa e indecisa nas questões“ (P49.9.F.A); “Achei fácil, só fiquei com dúvidas em algumas perguntas, pois não sabia se estava respondendo corretamente” (P82.11.F.A); “Eu me senti muito intrigada. Gostei muito” (P88.10.F.A).

(3) Aprender mais sobre mim: esta temática compreende a autopercepção diante dos próprios processamentos cognitivos envolvidos na aprendizagem. Dessa forma, abrange respostas autorreflexivas e avaliação do desempenho obtidas na atividade. Ainda, engloba a análise de pensamentos, comportamentos, estratégias e sentimentos implicados no processo de aprendizagem. “Porque faz você aprender como você se sente” (P20.10.M.B); “Porque isso ajuda a eu saber mais coisas sobre mim mesma” (P29.11.F.B); “Pois tive mais interesse sobre mim” (P30.11.M.B); “Porque essa atividade ajudou a entender sobre mim mesmo” (P32.10.F.B); “Porque me fez refletir [e] pensar [:] como[?] será[?] às vezes[?] sempre[?] Por isso achei muito legal“ (P38.12.M.B); “Pois você aprende sobre você mesmo“ (P42.9.M.B); “Porque ajuda a lidar com os problemas“ (P58.9.M.B); “Eu me senti bem por ter que pensar em mim mesmo e me descobrir” (P66.10.M.A); “Eu me senti livre para ver como eu sou” (P71.11.M.A); “Relaxado, pois parei para refletir [sobre] a minha vida e perceber meus problemas” (P73.10.M.A); “Pois pude me conhecer melhor” (P74.10.F.B); “Eu gostei, pois consegui aprofundar os meus sentimentos” (P77.11.F.A); “Gostei, fez eu aprender coisas que nem eu sabia sobre mim” (P101.11.M.A).

(4) Ansiedade: temática que engloba autoavaliações emocionais precedentes e decorrentes da execução da atividade. Compreende-se a ansiedade como fator consequente de um evento estressor, tal como a execução de uma atividade, de modo que as discrepâncias entre os ambientes externo e interno, a interação entre as características pessoais e a demanda do meio geram a percepção do indivíduo quanto à sua capacidade de resposta (Margis, Picon, Cosner, & Silveira, 2003Margis, R., Picon, P., Cosner, A. F., & Silveira, R. D. O. (2003). Relação entre estressores, estresse e ansiedade.Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul,25, 65-74. https://doi.org/10.1590/S0101-81082003000400008
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). “Eu me senti meio nervosa e ansiosa” (P40.10.F.A); “Eu me senti meio ansioso“ (P41.9.M.A); “Eu me senti meio nervoso, mesmo sabendo que não há resposta certa ou errada“ (P43.10.F.A); “No início, fiquei um pouco nervosa, mais depois eu acostumei“ (P61.9.F.A); “Eu me senti um pouco nervosa, mas depois fiquei tranquila“ (P62.9.F.A); “Me senti nervosa“ (P63.9.F.A); “Um pouco nervoso, pois não tinha feito isso antes“ (P70.10.M.A); “Me senti nervoso“ (P85.10.F.A).

(5) Diferente do que faço na escola: esta temática expressa novas experiências, tendo em vista a íntima relação entre a motivação de aprender e o conhecimento construído sobre si a partir da elaboração da atividade. “Sim. Pois fez perguntas da minha vida que ninguém fez prá mim“ (P1.10.F.B); “Sim. Porque isso faz eu entender a minha vida e como eu vivo. Essa atividade vai me ajudar a pensar um pouco o que eu devo fazer no lugar onde eu moro“ (P37.11.F.B); “Essa atividade, a qual muito tempo não vejo na escola... uma sala quieta é bem rara por aqui. Eu realmente gostei“ (P39.12.M.A); “Sim, porque eu achei diferente e superinteressante, e é uma experiência nova“ (P40.10.F.B); “Sim, porque eu fui sincera, e achei muito legal e quero fazer mais disso“ (P52.9.F.B); “Sim, porque eu achei diferente e foi divertida” (P83.10.F.B).

A redução fenomenológica sintetizou, a partir da descrição, um foco problemático (conteúdo) para o contexto explicitado na descrição: a cognição e o afeto como componentes do pensamento autorreflexivo. A percepção de si expressada pelas crianças, como processo autorreflexivo demonstrado na tarefa proposta, implica aspectos tanto cognitivos quanto emocionais que estabelecem uma conexão lógica entre si.

DISCUSSÃO

A interpretação fenomenológica do foco problemático apontado na redução requer uma compreensão do processo metacognitivo que implique a dimensão afetiva, cognitiva e as possibilidades de exercício da fala interna. Tal compreensão vai ao encontro dos estudos sobre a autoconsciência, isto é, a autorreflexividade (Leal et al., 2018Leal, C. K. N., Souza, M. D. P., & Souza, M. L. (2018). Autorreflexão e insight como dimensões da autoconsciência privada. Psico, 49(3), 231-241. Recuperado de: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-967480
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), especialmente no contexto escolar (Batista et al., 2017Batista, T. C., Saleme, S. B., Canal, C. P. P., & Souza, M. L. (2017). Autoconsciência em estudantes talentosos: um estudo fenomenológico-semiótico. Psicologia Escolar e Educacional, 21(3), 487-494. http://dx.doi.org/10.1590/2175-35392017021311184
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; Motta et al., 2013Motta, F. E., Rafalski, J. C., Rangel, I. C., & Souza, M. L. D. (2013). Narrativa e reflexividade dialógica: uma aproximação entre escrita e fala interna. Psicologia: Reflexão e Crítica, 26(3), 609-616. https://doi.org/10.1590/S0102-79722013000300021
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; Pereira & Abib, 2016Pereira, M. M., & Abib, M. L. V. S. (2016). Afetividade e metacognição em percepções de estudantes sobre sua aprendizagem em Física.Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências,18(1), 107-122. https://doi.org/10.1590/1983-21172016180106
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; Silva, Jardim, & Souza, 2019Silva, K. P., Jardim, A. P., & Souza, M. L. (2019). Dificuldades de aprendizagem: contribuições da psicologia cognitiva e da fenomenografia. Psicologia da Educação, 48, 87-98. https://dx.doi.org/10.5935/2175-3520.20190010
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). Pode-se afirmar que a autorreflexão estrutura a autoconsciência e compõe o processo metacognitivo (Leal et al., 2018Leal, C. K. N., Souza, M. D. P., & Souza, M. L. (2018). Autorreflexão e insight como dimensões da autoconsciência privada. Psico, 49(3), 231-241. Recuperado de: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-967480
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). A construção da capacidade cognitiva, por sua vez, depende da estruturação da habilidade de autorreflexão. Dessa forma, cria-se uma interdependência: o desenvolvimento cognitivo tem como alicerce a autorreflexão e esta é construída pelas experiências e vivências do sujeito ao monitorar a cognição e o pensamento para se adaptar às demandas do meio.

O contexto temático expressou duas dimensões que estruturaram a percepção das crianças: afetiva e cognitiva. A dimensão afetiva pode ser observada nos temas (1) Alegria e motivação e (4) Ansiedade, enquanto a dimensão cognitiva, nos temas (3) Saber mais sobre mim e (5) Diferente do que faço na escola ou, ainda, de forma indissociada, no tema (2) Indecisão e curiosidade. Esses resultados fortalecem a hipótese de que o monitoramento metacognitivo é favorecido quando o sujeito tem habilidade cognitiva ao avaliar os pensamentos, comportamentos, estratégias e sentimentos em si mesmo (Leal et al., 2018Leal, C. K. N., Souza, M. D. P., & Souza, M. L. (2018). Autorreflexão e insight como dimensões da autoconsciência privada. Psico, 49(3), 231-241. Recuperado de: https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-967480
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). Da mesma forma, ressaltam o cuidado que os educadores devem ter com ambas as dimensões no processo de aprendizagem. A autonomia do sujeito requer a existência de uma autorreflexão consciente e estabelecida; é uma construção que se desenvolve ao longo do processo de crescimento do sujeito, à medida que aprende a desenvolver um diálogo consigo mesmo. Enquanto a autorreflexão vai se aprimorando, há a proximidade dos aspectos cognitivos e emocionais e os sujeitos tornam-se mais atentos e participativos na construção da aprendizagem.

Os aspectos cognitivos e afetivos constituem os sujeitos e influenciam-se mutuamente, por isso não podem ser vistos dissociadamente. A experiência da criança provém de um movimento relacional entre o interno (ela mesma) e o externo (meio, contexto) e entre si mesma e o outro (seus pares e demais sujeitos da relação social), em uma troca dialógica afetiva, condicionada, mediada pelo contexto. Essa vivência emocional move o sujeito imensamente e o auxilia em seus projetos de vida. O meio não se reduz ao ambiente, mas se refere principalmente, às trocas feitas entre aquilo que é interno e externo, já que possibilita à criança a reflexão sobre suas ações e pensamentos. A forma como experimentamos algo se transforma à medida que a relação interna/externa se modifica. Desse modo, o aprender necessita de fatores motivacionais: “[...] comprometimento, tempo e autoestima [...]“ (Beber et al., 2014Beber, B., Silva, E., & Bonfiglio, S. U. (2014). Metacognição como processo da aprendizagem. Rev. Psicopedagogia, 31(95), 144-151. Recuperado de: http://www.revistapsicopedagogia.com.br/detalhes/74/metacognicao-como-processo-da-aprendizagem#:~:text=A%20metacogni%C3%A7%C3%A3o%20como%20processo%20da,conforme%20demonstrado%20na%20Figura%201
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, p. 146). A motivação está intimamente relacionada ao conhecimento que o sujeito constrói sobre si mesmo e ficou evidenciado, por exemplo, na resposta: “Eu me senti confiante” (P42.9.M.A) e ainda: “Eu me senti alegre, animada, feliz, incomodada, e, depois, fiquei mais animada a fazer a pesquisa. Ao mesmo tempo, fiquei surpresa” (P45.9.F.A). Quando o sujeito se percebe ouvido, aceito, recompensado e acolhido, desenvolve-se uma cultura de aprendizagem: “Pois tive mais interesse sobre mim“ (P30.11.M.B) e ainda: “Sim, pois fez perguntas da minha vida que ninguém fez pra mim” (P1.10.F.B). A partir dessa conjectura, o processo de desenvolvimento do conhecimento deixa de ser mecânico e torna-se prazeroso e com sentido: “Eu me senti mais interessada de fazer as coisas e me senti mais motivada a fazer as coisas que me pedem para fazer em casa” (P49.9.F.A). Nessa perspectiva, superar as dificuldades proporciona crescimento nas dimensões cognitiva e emocional (Beber et al., 2014).

A diversidade temática da percepção das crianças sobre seu processo autorreflexivo sugere a amplitude do monitoramento dos próprios pensamentos, sentimentos e comportamentos e da experiência e julgamento de conteúdos internalizados. Pensar sobre si proporcionou o desenvolvimento da autoconsciência, sobretudo no tema (3) Aprender mais sobre mim. A opinião sobre si mesmo atuou como função reguladora da ação mental. Houve a organização, avaliação e controle das próprias ações cognitivas a partir da Escala de Metacognição. A evidência da atividade autorreflexiva foi demonstrada, por exemplo, na resposta: “... pois parei para refletir [sobre] a minha vida e perceber meus problemas” (P73.10.M.A).

Percebeu-se um movimento de ressignificação que permite a mudança de olhar sobre si. O movimento de olhar para dentro pode ser percebido em respostas como: “Porque essa atividade ajudou a entender sobre mim mesmo“ (P32.10.F.B) e “... pois consegui aprofundar os meus sentimentos” (P77.11.F.A). Ao pensar em si mesmas, as crianças também tiveram a oportunidade de refletir sobre a vida e sobre a necessidade de falar de seus sentimentos: “Porque faz você aprender como você se sente“ (P20.10.M.B).

O processo reflexivo conduz o “diálogo interno“ ao proporcionar o direcionamento das habilidades e competências para aprender e ao organizar e integrar o pensamento ao comportamento (Vygotsky, 1934/1989Vygotsky, L. S. (1989). Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1934).). Antes que esse raciocínio ocorra internamente, existe uma necessidade de provar o ponto de vista para os seus pares. Assim, dentro de uma discussão grupal, cada criança começa a perceber e checar as bases de seus pensamentos. Essa característica do raciocínio que verifica uma informação é central no processamento do pensamento adulto, no qual a comunicação gera a necessidade de confirmar pensamentos (Bertau, 1999Bertau, M-C. (1999). Spuren des Gesprächs in innerer Sprache. Versuch einer analyse der dialogischen anteile lauten denkens. Sprache & Kognition, 18, 4-19. http://dx.doi.org/10.1024//0253-4533.18.12.4
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; Silveira, 2007Silveira, A. C. da (2007). Conversação interna: entre a reflexividade e a ruminação. Dissertação de mestrado em Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.; Souza, 2005Souza, M. L. de (2005). Self semiótico e self dialógico: um estudo do processo reflexivo da consciência. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.; Souza & Gomes, 2003Souza, M. L. de, & Gomes, W. B. (2003). Evidência e interpretação em pesquisa: as relações entre qualidades e quantidades. Psicologia em Estudo, 8(2), 83-92. 10.1590/S1413-73722003000200009
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). Então, compreender esses fenômenos a partir da escuta de pensamentos autorreflexivos da criança traz evidências a respeito do modo de internalização do conhecimento externo e suas capacidades (Batista et al., 2017Batista, T. C., Saleme, S. B., Canal, C. P. P., & Souza, M. L. (2017). Autoconsciência em estudantes talentosos: um estudo fenomenológico-semiótico. Psicologia Escolar e Educacional, 21(3), 487-494. http://dx.doi.org/10.1590/2175-35392017021311184
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; Dolitsky, 2000Dolitsky, M. (2000). Codeswitching in a child’s monologues. Journal of Pragmatics, 32, 1387-1403. https://doi.org/10.1016/S0378-2166(99)00105-8
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; Fogel, Koeyer, Bellagamba, & Bell, 2002Fogel, A., Koyer, J., Bellagamba, F., & Bell, H. (2002). The dialogical self in the first two years of life: embarking on a journey of discovery. Theory and Psychology, 2(2), 191-205. http://dx.doi.org/10.1177/0959354302012002629
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; Girbau, 2002Girbau, D. (2002). A sequential analysis of private and social speech in children’s dyadic communication. The Spanish Journal of Psychology, 5(2), 110-118. http://dx.doi.org/10.1017/S1138741600005886
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; Motta et al., 2013Motta, F. E., Rafalski, J. C., Rangel, I. C., & Souza, M. L. D. (2013). Narrativa e reflexividade dialógica: uma aproximação entre escrita e fala interna. Psicologia: Reflexão e Crítica, 26(3), 609-616. https://doi.org/10.1590/S0102-79722013000300021
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; Silva et al., 2019Silva, K. P., Jardim, A. P., & Souza, M. L. (2019). Dificuldades de aprendizagem: contribuições da psicologia cognitiva e da fenomenografia. Psicologia da Educação, 48, 87-98. https://dx.doi.org/10.5935/2175-3520.20190010
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), para identificar lacunas pedagógicas e pensar estratégias singulares de ensino. A educação não se limita à insistência da necessidade de experiências, mas na qualidade da experiência pela qual se passa. Quando a atividade de falar sobre si produz identificações, criam-se laços motivacionais, influenciando de modo frutífero e criador experiências subsequentes: “Sim, porque eu fui sincera, e achei muito legal e quero fazer mais disso“ (P52.9.F.B).

A atividade reflexiva trazida pelas afirmativas da EMETA foi considerada como algo não vivenciado na escola, inclinando as crianças a descrevê-la como algo bom, positivo, divertido e interessante. Da mesma forma, elas expressaram que refletir sobre si é, também, uma experiência diferente de suas vivências em família e em sociedade, ao dizerem que ninguém havia feito perguntas a respeito de como aprendem: “Sim, pois fez perguntas da minha vida que ninguém fez pra mim“ (P1.10.F.B). Além disso, as crianças manifestaram a descoberta de si ao relatar que aprofundaram o autoconhecimento: “Eu me senti bem por ter que pensar em mim mesmo e me descobrir” (P66.10.M.A).

O processo de pensar sobre si mesmo impulsionou a descoberta de sentimentos e despertou nos participantes a curiosidade, o conhecimento sobre suas potencialidades e a coragem necessários à mudança do olhar sobre as dificuldades e sobre a aprendizagem: "Porque ajuda a lidar com os problemas“ (P58.9.M.B). Além disso, a autorreflexão feita durante a leitura e resposta das variáveis nominais da EMETA podem ter provocado o diálogo interno: “Porque me fez refletir [e] pensar [:] como[?] será[?] às vezes[?] sempre[?] Por isso achei muito legal“ (P38.12.M.B). O movimento de pensar em si mesmo estrutura a autoconsciência e compõe o processo metacognitivo (Santos, 2017Santos, L. A. T. (2017). A importância do entendimento do conceito de metacognição para avaliação neuropsicológica. Monografia de Especialização em Psicologia Clínica, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil. Recuperado de: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/159091.). Neste estudo, a autorreflexão pode ter favorecido a ressignificação dos participantes como sujeitos de seu próprio processo de conhecimento: “Sim. Porque isso faz eu entender a minha vida e como eu vivo. Essa atividade vai me ajudar a pensar um pouco o que eu devo fazer no lugar onde eu moro“ (P37.11.F.B). Possibilita, nesse sentido, a formação de sujeitos capazes de agir no mundo externo de forma afetuosa e construtiva, como agentes transformadores da sociedade (Freire, 1987Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido(17a ed.). Rio de Janeiro: Paz e Terra.; Oliveira & Freire, 2017Oliveira, I. A., & Freire, A. M. A. (2017). Pedagogia da libertação em Paulo Freire. Rio de Janeiro: Paz e Terra.).

CONCLUSÃO

Este estudo ofereceu um lugar de fala a crianças de 9 a 12 anos. De forma ampla, elas trouxeram à tona informações de cunho emocional e de autoconsciência. As respostas destacaram a relevância de falar sobre si. A compreensão a respeito de si relaciona-se ao desenvolvimento pleno do sujeito. Nesse sentido, a cultura de aprendizagem requer esforços dos entes sociais: família, escola, sociedade.

As estratégias facilitadoras da aprendizagem devem incluir atividades que estimulem a memória e a cognição. As atividades escolares, por exemplo, podem ter mais sentido quando são contextualizadas, relembradas, encadeadas com conteúdo assimilado e com exemplos cotidianos e pertinentes. A demonstração de interesse por parte do mediador “esteja ele presente na figura do professor, dos pais ou de outros atores sociais“ sobre como a criança se sente compreende estratégias afetivas e sociais. Saber a opinião da criança acerca de um determinado assunto ou como ela se sente em determinada situação abre um processo de escuta e acolhimento, pois permite que ela fale sobre si.

A escola é um lugar propício para as experiências coletivas, no qual os indivíduos aprendem a conviver com os demais, aprendendo, ainda, a cultura. O autoconhecimento se torna essencial para que esse aprendizado se estruture de forma crítica e significativa. Dessa forma, incluir nos projetos pedagógicos atividades que desenvolvam a autopercepção, discussões de caráter metacognitivo e a promoção de oportunidades de reflexão e de tomada de consciência pode despertar nos sujeitos a compreensão de seu papel e sua responsabilidade diante do próprio aprendizado. A presença de fenômenos afetivos na mediação pedagógica auxilia a formação de cidadãos e cidadãs mais cientes de seus deveres e direitos.

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  • O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    16 Mar 2021
  • Aceito
    02 Fev 2022
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