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Arquivos da ditadura e acesso à informação: acervo memória e direitos humanos da Universidade Federal de Santa Catarina

Dictatorship files and access to information: collection memory and human rights of the Federal University of Santa Catarina

RESUMO

Os estudos em torno do patrimônio documental do regime militar brasileiro propiciam o direito de acesso à informação e auxiliam a preservação da memória desse período histórico. Partindo dessa compreensão, esta pesquisa tem como objetivo principal analisar, a partir do prisma da Ciência da Informação, o processo de constituição de um sistema de organização e de gestão do conhecimento de um acervo específico, ainda em construção: o de “Memória e Direitos Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina”. A abordagem metodológica teve por base uma pesquisa qualitativa relacionada ao estudo desse acervo, e descritiva na análise da organização documental disponível no site do projeto. Como resultado parcial, o estudo mostra que a criação de um acervo digital pode permitir, além da centralização do conjunto documental, um sistema eficaz de recuperação e disponibilização da informação. Conclui-se que a abordagem relacionada ao tema informação e memória ressalta a importância da organização e gestão da informação desse acervo, no sentido de permitir a publicidade/difusão dos seus conteúdos, em sua totalidade, de maneira inteligível e transparente, possibilitando, assim, a devida problematização dessas fontes de pesquisa.

Palavras-chave:
Patrimônio documental; Ditadura militar; Acesso à informação; Acervo digital; Memória

ABSTRACT

The studies around the documentary heritage of the brazilian military regime provide the right of access to information and help preserve the memory of this historical period. Based on this understanding, this research has as main objective to analyze, from the point of view of Information Science, the process of constitution of a system of organization and management of the knowledge of a specific collection, still under construction: "Memory and Human Rights of the Federal University of Santa Catarina ". The methodological approach was based on a qualitative research related to the study of this collection, and descriptive in the analysis of the documentary organization available on the project website. As a partial result, the study shows that the creation of a digital archive can allow, in addition to the centralization of the documentary set, an effective system for retrieving and making information available. It is concluded that the approach related to the subject of information and memory emphasizes the importance of the organization and management of the information of this collection, in order to allow the publicity/diffusion of its contents, in its totality, in an intelligible and transparent way, the proper problematization of these research sources.

Keywords:
Documentary heritage; Military dictatorship; Access to information; Digital collection; Memory

1 Introdução

A “abertura” dos arquivos do regime militar brasileiro constitui um momento importante no processo de democratização e difusão do patrimônio documental no país. Como ressalta Stampa (2011STAMPA, Inez. Memórias Reveladas e os arquivos do período da ditadura militar. ComCiência (UNICAMP), v. 127, p. 1-8, abr. 2011. Disponível em: http://comciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=65&id=825. Acesso em: 15 jun. 2018.
http://comciencia.br/comciencia/handler....
, p.8), “o direito de acesso às informações públicas, como regra geral, é um dos grandes mecanismos de consolidação dos regimes democráticos e de prevenção à recorrência de violações maciças aos direitos humanos”.

O atual processo de digitalização desses acervos e sua disponibilização online, a exemplo do portal Memórias Reveladas, sob a administração do Arquivo Nacional, pode expandir o acesso a seus conteúdos e potencializar sua divulgação. Nesse sentido, a memória é considerada como “um bem público que está na base do processo de construção da identidade social, política e cultural de um país” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA, 2010). Para Mariz (2012MARIZ, Anna Carla Almeida. A informação na internet: arquivos públicos brasileiros. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012, 168 p., p.149), “a disponibilização dos acervos arquivísticos na rede redefine os horizontes de acesso à informação, amplia as possibilidades de transferência e, consequentemente, os direitos civis e políticos do cidadão, além de permitir maior efetividade governamental”.

Com intuito de garantir a preservação do patrimônio documental desse período e a divulgação de suas informações, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) instituiu, em 20 de dezembro de 2017, a Comissão do Acervo sobre Direitos Humanos da UFSC. Com objetivo central de reunir, organizar e tornar acessível o conjunto documental, que diz respeito especialmente à violação dos direitos humanos no âmbito da universidade (UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA, 2017).

Essa ação da instituição propiciou o surgimento do projeto Acervo Memória e Direitos Humanos da UFSC, objeto de análise desse estudo. Sua criação vem ao encontro das considerações da Resolução Normativa nº 48/2014, do Conselho Universitário da UFSC, que constituiu a Comissão da Memória e Verdade no âmbito da universidade:

A instituição deve revisitar esses fatos, estabelecer marcos de memória que evidenciem para sua comunidade e para a sociedade em geral a apuração de abusos contra as liberdades e a dignidade humana, além de atos de violação da autonomia universitária, para que essas experiências fiquem registradas para as futuras gerações (UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA, 2014, p.1).

Tendo em vista o exposto, e dada a importância desses conteúdos para a preservação da memória local e nacional, este estudo tem por objetivo principal analisar, a partir do prisma da Ciência da Informação (CI), o sistema de organização, gestão e disponibilização desse acervo, ainda em construção. O conteúdo deste artigo, que advém de pesquisa de mestrado em andamento, busca identificar a forma de organização desse conjunto documental e apontar as principais ferramentas utilizadas para tornar acessíveis seus conteúdos.

Para tanto, são apresentados e descritos os arquivos que compõe o acervo e considerados os sistemas de organização de informação adotados, bem como os critérios de recuperação, seleção e acesso aos documentos, especialmente a constituição de um acervo digital. A abordagem metodológica está baseada em uma pesquisa qualitativa, relacionada ao estudo específico desse acervo, e descritiva na apreciação da organização documental e do site do projeto.

Análises em torno do tema “informação e memória” constituem diversas possibilidades de investigação no campo de conhecimento da Ciência da Informação. De forma específica, os acervos da ditadura militar podem compor novos horizontes de pesquisa aplicada. Nesse sentido, o estudo em questão colabora para a constituição de procedimentos que possam aperfeiçoar a organização e a gestão da informação e do conhecimento.

2 Acervo Memória e Direitos Humanos da UFSC

O acervo Memória e Direitos Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina reúne a documentação da Comissão Memória e Verdade da UFSC (CMV-UFSC) e do acervo do Memorial de Direitos Humanos (MDH), estando esse último, atualmente sob custódia do Laboratório de Sociologia do Trabalho (LASTRO), do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH) da UFSC. De acordo com o site do projeto, seu principal propósito está em “armazenar e disponibilizar de forma digital a documentação e os depoimentos recolhidos pela Comissão Memória e Verdade da UFSC. A este material, virá se somar num segundo tempo a documentação do Memorial dos Direitos Humanos” (UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA, 2019).

2.1 A criação de um acervo digital e a organização da informação

No período de dezembro de 2014 a maio de 2018, conforme Relatório Final da Comissão Memória e Verdade da UFSC, a comissão recolheu um acervo digital “de aproximadamente 1 TB contendo mais de 50 vídeos e áudios, aproximadamente 2500 imagens e documentos digitalizados. Além disto, acervos pessoais de protagonistas da época e de entidades (OAB, por exemplo) foram entregues ou prometidos para o arquivamento da Comissão” (UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA, 2018, p.415).

Dado o considerável volume documental gerado pela CMV-UFSC e existente no MDH somado a sua perspectiva de ampliação, optou-se pela digitalização desse conjunto documental, em atenção à importância de armazenamento e conservação desses documentos. De acordo com as informações disponíveis no site do projeto, o acervo digital intitulado Acervo sobre Direitos Humanos, terá por objetivo a organização de um repositório para esses arquivos e sua ampla disponibilização à comunidade acadêmica e à comunidade em geral, através de uma página digital (UNIVERCIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA, 2019).

O processo de organização e digitalização desse acervo ressalta aspectos fundamentais em torno do tema informação e memória, como a preservação do patrimônio cultural, a democratização de acesso a documentos públicos e a mediação da tecnologia na organização da informação. Observa-se que com a intensificação do uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) a partir da década de 1980 e com a expansão da rede internet nos anos 1990, ocorre uma migração de acervos documentais para o formato digital. As bibliotecas passaram a pensar a questão da manutenção dos acervos e do acesso à informação a partir de uma nova perspectiva.

Na Web, o acesso a documentos como, por exemplo, obras raras de disponibilização restrita, foi ampliado para alcançar um público ainda maior. Observa-se que na realidade contemporânea, cada um dos aspectos da informação, ao sofrer as transformações das novas tecnologias, envolve implicações. Conforme expõe Mariz (2012MARIZ, Anna Carla Almeida. A informação na internet: arquivos públicos brasileiros. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012, 168 p.), a transferência da informação no meio emergente que é a internet alude importantes alterações no que se refere às teorias e práticas informacionais.

Vale ressaltar que a conversão de documentos em suporte papel para o formato digital, suporte eletrônico, altera a estrutura do texto escrito e transforma sua materialidade, ampliando as possibilidades de uso e registro da informação (KRZYZANOWSKI, 2010KRZYZANOWSKI, Rosaly Favero. Bibliotecas e portais de conteúdos científicos, tecnológicos e culturais: Recursos para ampliar a visibilidade da informação na web. Ciência & Ambiente, n. 40, jan./jun. 2010.). No caso do projeto Acervo, Memória e Direitos Humanos da UFSC, a criação de um acervo digital, além da disponibilização online, poderá ampliar as possibilidades de pesquisa sobre o tema.

Contudo, vale ressaltar a questão da “acessibilidade real” no processo de obtenção da informação abordada por Davenport (2002DAVENPORT, Thomas H. Ecologia da Informação: por que só a tecnologia não basta para o sucesso na era da informação. 4. ed. São Paulo: Futura, 2002.) ao tratar do gerenciamento da informação a partir de uma abordagem ecológica, ou seja, enfatizando o ambiente da informação em sua totalidade. O autor ressalta que no ambiente computadorizado atual, usualmente, o acesso está relacionado à conectividade. Contudo, a conectividade é apenas um aspecto físico do acesso, e não garante que o usuário final terá sua necessidade informacional atendida.

No que se refere à organização e gestão da informação desse acervo da UFSC observa-se que, atualmente, o acesso online aos conteúdos é ainda parcial, uma vez que o site encontra-se em processo de construção e a digitalização não está concluída. Existe um conjunto atual de 143 itens disponíveis que estão identificados em títulos e disponibilizados em ordem alfabética. A busca pode ser realizada a partir do título, autor e data de adição do documento. Os itens disponíveis também estão agrupados em “coleções” classificadas por assunto, por exemplo: “Repressão na UFSC”, “Resistência na UFSC” e “Depoimentos à CMV-UFSC” (com as subseções Depoimentos Individuais e Audiências Públicas). Outras coleções estão formadas a partir da natureza do registro como “Documentários e Filmes”. Cada coleção contém, além do título, uma descrição resumida do tema, a fonte dos documentos, subseções e número de itens que compõe aquela coleção.

A disponibilização online de acervos similares ao desse projeto, com grande variedade documental e que carregam informações polêmicas e sensíveis da história brasileira, requerem um sistema facilitado de acesso digital e de parâmetros de busca. Um exemplo análogo foi a criação, em 2013, do projeto Brasil Nunca Mais Digit@l. Trata-se da disponibilização online da documentação reunida pelo projeto Brasil Nunca Mais (BNM) que, a partir de sua fundação em 1979, teve por objetivo realizar uma “primeira contribuição à memória e à história das violações da dignidade humana, no Brasil recente, através da publicação de documentos produzidos pelo próprio Estado”. No BNM Digit@l, com os mecanismos de busca ampliados e com acesso facilitado, a pesquisa por informações permitem entradas por nome de pessoas, palavras-chave, processos, entre outros. Os termos são encontrados tanto nos processos digitalizados como em relatórios produzidos pelo projeto (THIESEN E COITINHO, 2014THIESEN, Icléia; COITINHO, Angélica do Carmo. BNM e BNM Digit@l: arquivo, memória e verdade - o caso Chael. In: Icléia Thiesen. (Org.). Documentos sensíveis: informação, arquivo e verdade na Ditadura de 1964. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014, v. 1., p.85-95).

Essa possibilidade de busca ampliada, a exemplo da pesquisa por um termo que é localizado em diferentes tipos de itens do mesmo acervo, ou de uma indexação que respeita a pluralidade do conteúdo de um documento, favorece o entrecruzamento de informações e permite uma pesquisa mais precisa e complexa.

Ao abordar a questão da organização, armazenamento e recuperação da informação, Choo (2006CHOO, Chun Wei. A organização do Conhecimento: como as organizações usam a informação para criar significado, construir conhecimento e tomar decisões. 2 ed. São Paulo: SENAC, 2006.) ressalta que um sistema de indexação bem realizado pode agilizar o processo de construção do conhecimento. Além disso, o autor faz referência à crescente demanda pelos sistemas de armazenamento que permitem “oferecer a flexibilidade necessária para captar informações, apoiar as múltiplas visões que os usuários têm dos dados, conectar itens que são funcional ou logicamente relacionados e permitir que os usuários explorem padrões e conexões” (CHOO, 2006CHOO, Chun Wei. A organização do Conhecimento: como as organizações usam a informação para criar significado, construir conhecimento e tomar decisões. 2 ed. São Paulo: SENAC, 2006., p.410).

2.2 Seleção e acesso à informação

Além da organização documental e sua preservação, entre as muitas questões passíveis de pesquisa em torno da disponibilização desses acervos da ditadura, estão os critérios de sua seleção e acesso a seus conteúdos, especialmente quando se trata de arquivos públicos. Ao discorrer sobre a questão da memória e dos arquivos públicos, Jardim (1995JARDIM, José M. A invenção da memória nos arquivos públicos. Revista Ciência da Informação, Brasília, v. 25, n. 2, 1995. Disponível em: http://revista.ibict.br/ciinf/article/view/659. Acesso em: 25 fev. 2019.
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) alerta para o fato de que a restrição ou definição do o usuário poderá acessar “inventa” um tipo específico de memória. Nas suas constatações,

As restrições de consulta e as condições de acesso físico e intelectual dos arquivos limitam consideravelmente sua utilização pelo administrador público e o cidadão. O acesso do cidadão à informação governamental com objetivos científicos ou de comprovação de direitos mostra-se, portanto, extremamente limitado (JARDIM, 1995JARDIM, José M. A invenção da memória nos arquivos públicos. Revista Ciência da Informação, Brasília, v. 25, n. 2, 1995. Disponível em: http://revista.ibict.br/ciinf/article/view/659. Acesso em: 25 fev. 2019.
http://revista.ibict.br/ciinf/article/vi...
, p.8).

Ao tratar da evolução histórica em torno da necessidade de recuperação da informação e no que se refere ao seu acesso e disseminação, Saracevic (1996SARACEVIC, Tefko. Ciência da informação: origem, evolução e relações. Perspectivas em Ciência da Informação, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 41-62, jan./jun. 1996. Disponível em: http://portaldeperiodicos.eci.ufmg.br/index.php/pci/article/view/235/22. Acesso em: 20 fev. 2018.
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) aborda a questão da eficácia dos sistemas seletivos na transmissão da informação. Segundo o mesmo autor, “por muito tempo, o principal critério para se enfocar a eficácia foi a relevância e/ ou utilidade da informação. Mas, mais recentemente, tem-se escutado apelos por outros critérios - como qualidade, seletividade, veracidade, síntese, e/ou impacto da informação” (SARACEVIC, 1996SARACEVIC, Tefko. Ciência da informação: origem, evolução e relações. Perspectivas em Ciência da Informação, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 41-62, jan./jun. 1996. Disponível em: http://portaldeperiodicos.eci.ufmg.br/index.php/pci/article/view/235/22. Acesso em: 20 fev. 2018.
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, p.57).

No Brasil, a disponibilização dos arquivos oficiais do regime militar gerou restrições de acesso, por se tratarem de documentos com conteúdo sócio-político polêmico e de assuntos de interesse nacional. Um exemplo complexo que suscita diversas questões em torno da seleção, acesso e disponibilização digital de fontes históricas é o projeto Memórias Reveladas - Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964 - 1985), criado pela Casa Civil da Presidência da República em 2009 e administrado pelo Arquivo Nacional (órgão central do Sistema de Gestão de Documentos de Arquivos - SIGA) (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA, 2010). Sua concepção foi no intuito de garantir a preservação de acervos e a divulgação de suas informações concernentes às lutas políticas travadas no período do regime militar brasileiro.

O gigantesco acervo1 1 Em 2011, o acervo contava com cerca de “17 milhões e 400 mil páginas (aproximadamente 8 milhões e 900 mil folhas) de documentos textuais, além de 1.363 mil metros lineares de outros tipos documentais (como, por exemplo, fotografias e mapas), 220 mil microfichas e 110 rolos de microfilmes” (STAMPA, 2011, p.1). , atualmente digitalizado, é constituído por documentos públicos provenientes de órgãos oficiais do governo daquele período, como o Conselho de Segurança Nacional (CSN), o Centro de Informações do Exterior (CIEX) e o Centro de Informações da Aeronáutica (CISA). Ou seja, arquivos com conteúdo de caráter sócio-político polêmico e assuntos de interesse nacional. Nesse sentido, a disponibilização das fontes foi balizada pelos parâmetros legais estabelecidos pela Constituição Federal de 1988. A disponibilidade restritiva dos seus conteúdos suscitou uma revisão crítica da legislação nacional no que se refere ao acesso à informação e resultou, em 2011, na aprovação da Lei de Acesso a Informações Públicas (12.527/2011) - LAI. Sua regulamentação em 2012 (Decreto 7.724) permitiu a “abertura” dos arquivos do regime militar (STAMPA, 2011STAMPA, Inez. Memórias Reveladas e os arquivos do período da ditadura militar. ComCiência (UNICAMP), v. 127, p. 1-8, abr. 2011. Disponível em: http://comciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=65&id=825. Acesso em: 15 jun. 2018.
http://comciencia.br/comciencia/handler....
).

Vale ressaltar que a Lei de Acesso à Informação dificulta a seleção e restrição de acesso às fontes de informação geradas no âmbito da administração pública. Isso porque restringe aos órgãos gestores o poder absoluto de definir o que deve ou não se tornar público e, como tal, impedir a socialização do patrimônio documental que se refere à sociedade brasileira. Dessa forma, a LAI passa a ser um instrumento de controle ao próprio “poder” de controlar, selecionar manipular o conteúdo informacional que deve fazer parte da memória social.

No âmbito teórico dos estudos sobre o fenômeno da memória, tanto no âmbito individual quanto coletivo, Ricouer (2007) contribui para a reflexão sobre o aspecto político dos usos da memória e do esquecimento. Ao explicar os dispositivos sociais que se voltam ao processo de rememoração e esquecimento, o autor auxilia a identificação de estratégias que podem ser associadas ao que acontece na prática quando as instituições públicas constituem suas políticas documentais. Conforme Ricoeur (2007RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007. 353 p., p.98), “é mais precisamente a função seletiva da narrativa que oferece à manipulação a oportunidade e os meios de uma estratégia engenhosa que consiste, de saída, numa estratégia do esquecimento tanto quanto da rememoração.”

2.3 Análise documental

A análise de arquivos compostos, nesse caso, em parte por documentos oficiais produzidos no período ditatorial, mesmo quando disponibilizados ao acesso público, envolvem problemáticas como a veracidade de seu conteúdo, ou seja, a possibilidade de uma produção documental forjada ou adulterada para ocultar crimes de estado.

Na tentativa de comprovar determinada alegação, outros formatos de documentos, como fotos, também podem ser utilizados, a exemplo da foto do suposto suicídio do jornalista Vladimir Herzog - assassinado pelo regime em 1975. Nesse sentido, observa-se que os documentos de arquivo carregam um poder comprobatório dos fatos, trata-se da autoridade do arquivo, contudo, sua veracidade está vinculada à conjuntura de sua criação e posterior preservação (RODRIGUES, 2014RODRIGUES, Georgete M. Verdade do arquivo versus autoridade do arquivo: reflexões a partir do caso Herzog. In: MÜLLER, Angélica; STAMPA, Inez T.; SANTANA, Marco Aurélio (Orgs). Documentar a Ditadura: arquivos da repressão e da resistência. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2014.).

Portanto, essa produção documental realizada pelos próprios agentes da repressão, de caráter oficial, exige uma rigorosa análise crítica. O acesso a esses arquivos, como os que compõe o acervo da UFSC, devem estar atrelados à necessidade de problematização dessas fontes, afinal “a intencionalidade de forjar versões justificadoras das ações de extermínio perpassa toda a massa documental contabilizada em cerca de 16 milhões de páginas, conforme estimativa do projeto Memórias Reveladas” (THIESEN E COITINHO, 2014THIESEN, Icléia; COITINHO, Angélica do Carmo. BNM e BNM Digit@l: arquivo, memória e verdade - o caso Chael. In: Icléia Thiesen. (Org.). Documentos sensíveis: informação, arquivo e verdade na Ditadura de 1964. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014, v. 1., p.94-95).

3 Resultados

Por se tratar de uma pesquisa em fase inicial, os resultados são parciais e ainda esperados. Neste primeiro momento foi possível averiguar que a criação do acervo Memória e Direitos Humanos da UFSC se insere em uma demanda nacional pela organização, acessibilidade e divulgação das informações do período ditatorial. A criação de um site e a digitalização desse acervo seguem a tendência de gestão de outros arquivos públicos similares, como o arquivo nacional Memórias Reveladas (Arquivo Nacional Ministério da Justiça) ou o Arquivo DEOPS do Arquivo Público do Estado de São Paulo.

As implicações decorrentes da análise em torno do tema “informação e memória” constituem diversas possibilidades de pesquisa no campo de conhecimento da Ciência da Informação. Um dos objetivos propostos pela Comissão da Memória e Verdade da UFSC se relaciona justamente ao objeto desse estudo no sentido de “estimular e fomentar atividades de graduação, pós-graduação, pesquisa e extensão relacionadas aos objetivos da Comissão” (UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA, 2014, p.2). A inexistência de pesquisas de pós-graduação na área de CI, a respeito desse acervo em particular, revela esse estudo como uma pesquisa inédita e com amplo horizonte para investigação.

Em um levantamento inicial do quantitativo e tipologia desse conjunto documental, observa-se que apenas uma parcela do acervo encontra-se atualmente digitalizada e disponível no site, somando 174 itens. Esse aporte documental conta com um quantitativo total de aproximadamente 1TB, abarcando uma tipologia documental diversa. Entre documentos e fotos são aproximadamente 2.500 itens e mais de 50 vídeos e áudios. Além do grande número de material recolhido, estima-se uma expansão do acervo com o recebimento de itens já prometidos para arquivamento, a partir de acervos pessoais e entidades como a OAB, por exemplo. Tendo em vista o exposto, a iniciativa de digitalização desse material revela-se como uma ação eficaz para o armazenamento e conservação destes documentos.

Contudo, no que se refere à necessidade de organização e gestão da informação desse acervo, atualmente, o acesso parcial aos conteúdos se dá basicamente através do site, ainda em construção. Alguns itens estão identificados e disponibilizados a partir do título, autor e data de adição, e agrupados em coleções definidas por tema ou natureza do item como documentários e filmes.

Dessa forma, essa pesquisa buscou trazer apontamentos a respeito da importância da organização e gestão da informação desses documentos, dada sua relevância histórica e social, denotando assim a complexidade desse projeto acervo da UFSC. Tornar públicos esses conteúdos, em sua totalidade, de maneira inteligível e transparente, abrindo acesso para a pesquisa e para a comunidade em geral, apresenta-se como um desafio.

Questões como uma indexação que respeite a abranja a pluralidade dos conteúdos desses documentos, bem como sistemas de busca que favoreçam o entrecruzamento de informações e permitam uma pesquisa mais precisa e combinada, poderão ser abordadas em estudos futuros, bem como analisadas à medida que o projeto acervo se desenvolva e sua digitalização e disponibilização estejam concluídas.

4 Considerações finais

A disponibilidade, a princípio restritiva, dos arquivos do período ditatorial, bem como seus critérios de seleção e acessibilidade, apresenta um amplo panorama para pesquisas, bem como explicitam as diversas implicações envolvidas nesse processo, como a violação de documentos. A criação de acervos digitais intensifica a difusão e acesso à informação dessas fontes, sem garantir, contudo, a problematização de seus conteúdos. Afinal, quando se trata da análise dos documentos de um arquivo, se faz presente a necessidade de considerar o status de verdade que um arquivo carrega sua autoridade e, especialmente em arquivos produzidos por regimes autoritários, a indispensável cautela na utilização e problematização de suas fontes como bem pontua Rodrigues (2014RODRIGUES, Georgete M. Verdade do arquivo versus autoridade do arquivo: reflexões a partir do caso Herzog. In: MÜLLER, Angélica; STAMPA, Inez T.; SANTANA, Marco Aurélio (Orgs). Documentar a Ditadura: arquivos da repressão e da resistência. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2014.).

Iniciativas como o projeto Acervo Memória e Direitos Humanos da UFSC denotam responsabilidade na gestão de documentos públicos ou que são de interesse público. A análise e organização documental podem permitir a problematização dessas fontes, através da pesquisa, e disponibilização de seus conteúdos em toda sua complexidade. Essa publicidade caminha para a democratização do acesso à informação, permitindo à população o confronto com informações públicas, contribuindo assim para a preservação da memória e para o fortalecimento dos pilares de um regime democrático.

Referências

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    » https://www.memoriaedireitoshumanos.ufsc.br/files/original/edada7bc0543da177722b82511ae93e8.pdf
  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA. Conselho Universitário. Resolução Normativa nº 48/2014, de 16 de dezembro de 2014. Constitui a Comissão da Memória e Verdade no âmbito da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis: Conselho Universitário, 2014. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/130531/Resolu%C3%A7%C3%A3o_Normativa_48-2014-Comiss%C3%A3o%20da%20mem%C3%B3ria%20e%20da%20verdade%20UFSC.pdf?sequence=1 Acesso em: 10 jan. 2019.
    » https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/130531/Resolu%C3%A7%C3%A3o_Normativa_48-2014-Comiss%C3%A3o%20da%20mem%C3%B3ria%20e%20da%20verdade%20UFSC.pdf?sequence=1
  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA. Gabinete do Reitor. Portaria nº 2827/2017, de 20 de dezembro de 2017. Institui a Comissão do Acervo sobre Direitos Humanos da UFSC. Florianópolis: Gabinete do Reitor, 2017. Disponível em: https://www.memoriaedireitoshumanos.ufsc.br/ Acesso em: 15 jan. 2019.
    » https://www.memoriaedireitoshumanos.ufsc.br/
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    Em 2011, o acervo contava com cerca de “17 milhões e 400 mil páginas (aproximadamente 8 milhões e 900 mil folhas) de documentos textuais, além de 1.363 mil metros lineares de outros tipos documentais (como, por exemplo, fotografias e mapas), 220 mil microfichas e 110 rolos de microfilmes” (STAMPA, 2011, p.1).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2019
  • Aceito
    13 Nov 2019
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