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A ilusão do colapso do tempo e do espaço na comunicação digital

The illusion of the collapse of time and space in digital communication

RESUMO

Esse artigo propõe-se equacionar certos aspectos da experiência do tempo e do espaço na comunicação digital, investigando sua convergência e/ou divergência em relação à experiência mítica da atemporalidade. Conclui-se que, embora a comunicação digital pareça prescindir dos lugares e, aparentemente, não estabeleça relações necessárias de causa e efeito entre as informações que distribui, sua dependência da sucessão de eventos distancia-a do que seria uma experiência mítica do tempo e, portanto, do espaço.

Palavras-chave:
comunicação digital; Mito; redes sociais; Tempo; espaço

ABSTRACT

This article proposes to equate certain aspects of the experience of time and space in digital communication, investigating its convergence and / or divergence from the mythical experience of timelessness. It is concluded that although digital communication seems to dispense with the places and apparently does not establish necessary cause and effect relationships between the information it distributes, its dependence on the succession of events distances it from what would be a mythical experience of time, therefore, of space.

Keywords:
Digital communication; Myth; social networks; Time; space

1 O tempo no espaço

Anular o tempo e o espaço pode ser apenas metáfora para designar um estado mental ou espiritual em que a condição de finitude humana é esquecida, como durante os transes místicos, amorosos, intelectuais e quaisquer situações de concentração ativa. Ultimamente, no entanto, o que antes era conotação parece ter mudado de natureza, transformando-se em denotação por força das tecnologias digitais. Afinal, na zona de dimensões médias em que vivemos, a distância perde seu sentido quando, por maior que seja, são necessárias apenas frações de segundos para percorrê-la - caso de um e-mail enviado de um lado do planeta para o outro por fibra ótica -. Nessas circunstâncias, é fácil acreditar na desmaterialização, já que não se percebe o lapso de tempo.

No entanto, as tecnologias de comunicação e informação dependem de estruturas materiais muito concretas para funcionar. Mesmo as conexões via satélite, que se dão através de ondas eletromagnéticas, precisam de matéria densa para se efetivarem, pelo menos nas pontas emissoras e receptoras da rede. Ainda assim, esse tipo de conexão representa apenas 1% de todo o fluxo de informação1 1 Segundo o site https://www.telegeography.com, Acesso em: 24/05/2018. A TeleGeography é uma empresa norte-americana detentora de uma base global de dados sobre telecomunicações utilizada para prestar consultoria e realizar pesquisas de mercado na área. Subsidiaria da PriMetrica, Inc., foi fundada em 1989. . Os outros 99% trafegam literalmente no chão, ou melhor, abaixo do chão, nas profundezas submarinas, através de imensos cabos conhecidos como backbones2 2 Backbonessão cabos de fibras óticas que ligam os continentes. Essas redes de longa distância estão integradas com redes locais, formadas pelos usuários individuais que usam conexões 4G, wifi, via satélite etc. (Motta, 2012). A velocidade de transmissão da fibra ótica é muito maior do que aquela realizada pelo ar com auxílio de antenas e satélites. Em milésimos de segundo, a informação transmitida chega ao seu destino. .

Essa extrema velocidade potencializa a onipresença das redes sociais no cotidiano. O site Statista3 3 Conforme o site https://www.statista.com/topics/1164/social-networks, Acesso em: 21/05/2018. Statista é um site de estatísticas online, pesquisa de mercado e portal de inteligência de negócios fundado na Alemanha em 2007. estima que as redes sociais da World Wide Web superem os 3 bilhões de usuários ativos (que interagem pelo menos uma vez por mês) em 2021, o que representará um terço da população do planeta. Em 2017, calcula-se que foram 2,46 bilhões de usuários. Comparando-se o número de contas em redes sociais ativas com as populações, as estatísticas mostraram que na liderança do ranking se encontram os Estados Unidos seguidos pela Coreia do Sul. No Brasil, 62% da população utiliza ativamente pelo menos uma conta de rede social. Na França, o percentual é de 58%. A média global é de 42%. Dentre todas as redes sociais, o Facebook se mantém hoje (julho de 2018) como a maior.

O tempo parece desconhecer os ciclos do dia e da noite nas redes sociais. Enquanto no cotidiano desconectado acordamos ordinariamente com certos rituais e vamos executando outros até chegar a hora de voltar ao repouso, nas redes sociais dizer “bom dia” - embora muitos o façam - soa bizarro e até agressivo, pois supõe a interrupção de uma conversa que jamais termina. As informações publicadas no perfil de um usuário de redes sociais são organizadas em ordem cronológica, a chamada timeline. Mais do que informar a passagem do tempo, essa forma de dispor as informações indica a ênfase no atual, no imediato. O tempo não passa nas redes, ele é sempre presente - daí a estranheza de se dizer bom dia ao amanhecer, denotando o alheamento do usuário em relação ao fato de que sua desconexão para ir dormir não implica a desconexão dos outros. Uma rede social não é uma sala de convivência numa grande casa em que cada um tem seu quarto e para ele se retira à noite, voltando todos a se reverem na sala no outro dia e, pois, sendo imperiosas as saudações. Ao contrário, a convivência nas redes sociais é experimentada como desespacialização e, consequentemente, como destemporalização.

Por outro lado, se for verdade que “[...] o próprio do homem é produzir espacialização”, como assinala Lemos (2013LEMOS, A. Espaço, mídia locativa e teoria ator-rede. Galáxia (São Paulo), São Paulo, v.13 n. 25, jun. 2013. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1982-25532013000200006. Acesso em: 15 out. 2020.
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, p. 3), é necessário considerar que as redes sociais, no mínimo, reinventam o espaço e também os lugares. É assim que o ciberespaço, logo depois de se encaixar na definição de não-lugar tal como descrito por Augé (20018) -não identitário, não relacional e não histórico, espaço de passagem transitória, despersonalizado, falsamente familiar - pode ser ressignificado pelo usuário, tornando-se então um lugar. Isso é mostrado por Souza Reis (2013) em pesquisa que apontou a transformação de um não lugar típico (um shopping center de Porto Alegre) em lugar a partir das interações e dos registros simbólicos que os usuários da rede social Foursquare fizeram.

Relativizar o conceito de não lugar, realmente, se mostra necessário diante do fenômeno das redes sociais digitais que reconstroem o mundo no ciberespaço. Di Felice (2011), ao falar sobre as formas comunicativas do habitar, caracteriza como atópica essa maneira de interagir com o território e o meio ambiente em geral através da digitalização: “A nossa experiência do lugar e a nossa condição habitativa é, assim, resultado de uma mediação entre a nossa experiência com um determinado tipo de interface utilizada e o território”. Assim, o lugar deixa de ter um sentido único e é definido mais através de um genius loci que age através da tecnologia e faz com que sujeitos, mídia, territórios dissolvam seus limites e se fundam numa espécie de continuidade interativa.

Portanto, quando o lugar reproposto pelas redes sociais não é uma transposição do lugar tradicional para o ciberespaço, tampouco os rituais de um são mimentizados no outro.

Thompson (2010THOMPSON, J. B. Fronteiras cambiantes da vida pública e privada. Matrizes, São Paulo, v.4, n. 1, p. 11-36, 2010. Disponível em: http://dx.doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v4i1p11-36. Acesso em: 18 mai. 2018.
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, p. 22) define como “simultaneidade espacializada” essa propriedade da comunicação digital de permitir que indivíduos que não partilham do mesmo espaço referencial sejam ouvidos e vistos praticamente no mesmo instante de tempo. De fato, o tempo e o espaço, não se desmembram, e se existe uma destemporalização ela só pode ocorrer pari passu com uma desespacialização, porque o espaço é a matéria do tempo e vice-versa, como estabelece a própria teoria geral da relatividade (GLEISER, 2008GLEISER, M. A origem do tempo. Folha de S. Paulo, São Paulo, 23/11/2008.), a partir da qual se fala em espaço-tempo. O ato de fé que configura a construção cultural do tempo torna-o tão naturalizado que é difícil até mesmo imaginar sua existência inseparável do espaço, mas as próprias metáforas que usamos para designá-lo - todas espaciais - deixam pensar que, em algum nível, sabemos que o tempo é literalmente inominável. Estudos antropológicos sobre a evolução da linguagem indicam que essa metaforização é universal, apesar de se utilizarem simbolismos ligeiramente variantes com a cultura. Colocar o futuro à frente e o passado atrás parece auto evidente para os falantes da maioria das línguas modernas, mas o povo yupno, de Papua-Nova Guiné, projeta o futuro acima. Para os povos que falam a língua aimará, e que somam 2 milhões de habitantes na Bolívia, Peru e Chile, o passado se encontra à nossa frente e o futuro, às nossas costas (NORMILE, 2012NORMILE, D. Where time goes up and down. Science, [s.l.], v. 336, n. 6080, Apr. 2012, p. 411. Disponível em: http://science.sciencemag.org/content/336/6080/411/tab-pdf. Acesso em: 7 jul. 2018.
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). De todo modo, indiferente se o futuro está atrás, à frente ou acima, a espacialização do tempo parece enraizada no imaginário desde muito antes da interpretação estática que Einstein (apudBLANCHÉ, 1993BLANCHÉ, R. A ciência actual e o racionalismo. Porto: RÉS Editora, 1993.) fez do contínuo temporal, defendendo o determinismo quântico ao afirmar que vamos rastejando numa linha imaginada e encontrando coisas.

Ora, as metáforas de espacialização do tempo podem nos dar a ilusão de que o controlamos muito mais do que o fazemos realmente. Dizemos que temos tempo ou que não temos tempo porque aprendemos a relacioná-lo com coisas, a entendê-lo como uma sequência de coisas no espaço, mas será que é verdadeiramente possível tê-lo?

O conceito de espaço-tempo pode parecer mais natural ao senso comum a partir dessas metáforas de espacialização do tempo, mas a dinamização do espaço é igualmente factível, apesar de, aparentemente, não corresponder ao imaginário racional. Voltaremos a isso. Por ora, queremos sublinhar que, no dia a dia, quando se fala de espaço-tempo, e mesmo quando as ciências moles se valem desse conceito para justificar positivamente certas aproximações que de outra forma podem parecer demasiado esotéricas, é sempre tomando o conceito como metáfora, deixando maiores aprofundamentos de lado com a confiança de que a física resolveu esse problema. Não se trata aqui de desmerecer a metáfora em prol do conceito; certamente, a metáfora pode ser de grande utilidade para um conhecimento que se quer complexo porque, ao contrário do conceito, abre-se para a multiplicidade de imagens e, portanto, de ideias. No entanto, é necessária a consciência de que as ciências duras não têm respostas conceituais (THE BIGGEST..., 2018) para as maiores questões das quais as ciências moles emprestam suas metáforas.

A esse respeito, Gleiser (2008GLEISER, M. A origem do tempo. Folha de S. Paulo, São Paulo, 23/11/2008.) explica que, sendo um conceito da teoria geral da relatividade, o espaço-tempo não se aplica às proximidades do Big Bang, momento em que ele se teria criado. Isso porque, próximo ao Big Bang, as distâncias são subatômicas, ou seja, o que vale para as macro-dimensões não pode ser aí aplicado. O princípio da incerteza de Heisenberg, no entanto, permite depreender que nesse nível quântico “[...] o espaço-tempo flutue violentamente [...] como se fosse uma cama elástica enlouquecida [...]. Não existe perto e longe, antes e depois [...] De repente, dessas flutuações espaço-temporais surge uma grande o suficiente para ser descrita pela teoria de Einstein. A partir daí, o tempo passa a fluir alegremente, marcando a origem de tudo” (GLEISER, 2008GLEISER, M. A origem do tempo. Folha de S. Paulo, São Paulo, 23/11/2008.).

A extrema velocidade das comunicações digitais parece ter fornecido ao senso comum uma experiência em que espaço e tempos e afetam mutuamente. Será que nossa intuição perceptiva de milênios de um espaço estático e de um tempo que flui se encontra modificada? Hoje, quando a tecnologia possibilita uma experiência massiva muito diferenciada de distâncias e durações em relação a apenas duas décadas, ainda é introduzindo distinções que se tenta compreender o fenômeno, o que mostra a eficácia pedagógica desse método. No caso da sociedade contemporânea unida pela comunicação em rede, temos como exemplo a diferenciação entre espaço de fluxos e espaço de lugares proposta por Castells (1993CASTELLS, M. A sociedade em rede. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993., p. 512). Nos espaços de lugares, "forma, função e significado são independentes dentro das fronteiras da contiguidade física". Os espaços de fluxos é que organizariam a função e o poder e a "esquizofrenia estrutural entre as duas lógicas espaciais [...] ameaça romper os canais de comunicação da sociedade" (CASTELLS, 1993CASTELLS, M. A sociedade em rede. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993., p. 517). Não só o espaço é considerado pelo autor separadamente do tempo, como também é introduzido em seu seio uma segunda clivagem, distanciando suas propriedades materiais, por assim dizer, das imateriais.

O tempo, segundo Castells (1993CASTELLS, M. A sociedade em rede. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993., p. 553), parece se modificar com o espaço quando "[...] os acontecimentos e expressões culturais são providos de instantaneidade temporal que a comunicação em tempo real em todo globo possibilita". Ora, se é a instantaneidade da comunicação que instaura a atemporalidade, então pode-se dizer que o tempo está submetido ao espaço, o que é a definição da espacialização do tempo. A imagem do tempo representado como espaço - e não o contrário -, se confirma e se prolonga, assim, do senso comum à sociologia, tendo sido adiantada pela filosofia, como informa o próprio Castells (1993, p. 555) ao evocar a definição de Leibniz segundo a qual sem as coisas não existiria o tempo porque esse é uma "ordem de sucessão das coisas". E conclui: "A eliminação da sequência cria tempo não-diferenciado, o que equivale à eternidade"(CASTELLS, 1993CASTELLS, M. A sociedade em rede. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993., p. 556). Seria esse tempo não-diferenciado equiparável ao tempo mítico?

Da herança literária hesiódica, uma das mais próximas da época histórica em que o mito era vivido largamente no ocidente sem ainda o constrangimento que lhe imporia a filosofia, depreendemos que o tempo mítico não tem anterioridade nem posteridade; não existe causa, os seres são eles próprios as causas de si mesmos, como afirma Torrano (2012TORRANO, J. O mundo como função de musas. In: HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 2012, p. 13-100., p. 68): “[...] a natureza dos filhos está implícita na dos pais, assim como a dos pais continua a se explicitar na dos filhos [...] como se fossem contemporâneos”.

Ora, o tempo intemporal a que Castells se refere não existe no espaço de lugares, onde continuaria a imperar o "tempo biológico" (CASTELLS, 1993CASTELLS, M. A sociedade em rede. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993., p. 557), e sim no espaço de fluxos. Ele cita como ilustração as disparidades nos estágios de desenvolvimento de diferentes países, como a discrepâncias na expectativa de vida de quem habita áreas menos desenvolvidas em relação a quem vive nas áreas mais desenvolvidas. A supremacia do espaço sobre o tempo é conclusiva quando o autor menciona a "vingança histórica do espaço estruturando a temporalidade em lógicas diferentes e até contraditórias com a dinâmica espacial" (CASTELLS, 1993, p. 559). Castells vê as posições contraditórias dentro da estrutura social como decorrentes da resistência de lugares à lógica da atemporalidade, uma luta entre o domínio do tempo pelo espaço e do espaço pelo tempo. É de se notar, porém, que se o tempo é feito de coisas percebidas como sucessivas, quando se diz não-tempo também se diz não-coisas, pois se supõe que espaço esteja criando o tempo.

2 Atemporalidade

A experiência mais próxima que temos de atemporalidade é, ainda, o tempo mítico. Nele, a apresentação dos eventos não se dá cronologicamente; portanto, a hierarquia que é subjacente às cronologias não existe. Não há verdades independentes de ideias, desejos, atitudes do ser humano, ou seja, não há uma objetividade a partir da qual se possam erigir conceitos para representar o mundo. Os eventos e também as visões de mundo se apresentam parataticamente, no dizer de Feyerabend (1991FEYERABEND, P. K. Adeus à razão. Lisboa: Edições 70, 1991.), isto é, como agregados sem essência ou substância; informações são apresentadas em forma de listas. Talvez, sim, a abundância das informações que vicejam nas redes sociais seja uma atualização desses agregados. Ocorre, no entanto, que a atomicidade das informações nas redes é apenas aparente, visto que a apresentação das postagens para o usuário seria resultante do algoritmo que estima suas preferências a partir de seu perfil e de seus comportamentos, de modo que se exclui a possibilidade de inexistirem conceitos por detrás dessa organização.

Castells fala em tempo "biológico", talvez se referindo à duração histórica, do mesmo modo que espaço de "lugares" é o espaço geográfico material. Mesmo se considerando essas duas variáveis apenas na sua dimensão física, isoladas do simbolismo inerente à experiência humana (ou seja, desumanizando-se positivamente o fenômeno), a ciência clássica, no seu auge, deu provas de que distância e tempo só têm validade dentro de um sistema específico de referências. Em última análise, espaço e tempo só terão o mesmo valor para os sujeitos que participam do mesmo movimento (BLANCHÉ, 1993BLANCHÉ, R. A ciência actual e o racionalismo. Porto: RÉS Editora, 1993.). Assim, não seria pertinente considerar um tempo chamado de biológico como menos relativo da atemporalidade a que Castells se refere.

É verdade que a distinção entre tipos de espaço, um material e outro imaterial, e entre espaço e tempo pode ser proveitosa para se observarem os vetores que entram em jogo nos contextos. No entanto, se espaço-tempo é uma única entidade, separar o espaço do tempo é procedimento tão poético quanto racional, válido como qualquer outro constructo cultural. Por que espacializar o tempo parece mais natural do que dinamizar o espaço? Por que representamos o tempo com distâncias e não as distâncias com o tempo? Por que o tempo é representável somente por metáforas, sendo tão difícil perceber a ilusão subjetiva do seu desenrolar?

Talvez haja alguma relação entre os modos de percepção que foram privilegiados no desenvolvimento do pensamento científico em oposição ao pensamento mítico. O pensamento científico prioriza o que é observado, considerando como observado o que é observável externamente. A êxtero-percepção se concentra sobre a vista e o ouvido, sentidos que não apenas podem ser exercidos à distância como também podem ser experienciados simultaneamente por vários sujeitos sem necessitar de uma descrição para colocar em comum o que se viu ou o que se ouviu. O tato, o paladar, o olfato, pelo contrário, exigem a proximidade física para serem exercidos e são experimentados no âmago do corpo; o que se tem como resultado deles não preenche o critério de observação. Já o resultado da experiência do olhar e do ouvir facilmente se impõe como dada, como auto evidência.

Ver e ouvir, assim, acontecem num espaço e nele se cristalizam. E, entre ver e ouvir, o ver domina, tendo se associado ao próprio conhecimento, indicado por numerosas analogias e metáforas, desde o enxergar a verdade até a iluminação das ideias; a ênfase se coloca sobre a procura das diferenças mais do que das semelhanças. Como mostra Durand (2016DURAND, G. Les structures anthropologiques de l'imaginaire. Paris: Dunod, 2016.), a ação de distinguir (entre certo e errado, entre falso e verdadeiro, entre bem e mal etc.) é uma dinâmica do imaginário que alimenta os princípios lógicos de exclusão e de identidade relacionada com o gesto postural do corpo humano, seu apelo fundamental a elevar-se sobre os dois pés, liberando ao mesmo tempo a vista e o ouvido. Ora, dos três gestos do corpo arrolados por Durand como basilares na construção do imaginário, o postural é o único que se relaciona francamente com o espaço externo - os outros dois são o gesto rítmico (sexual), que se encontra no vórtice energético de um regime do imaginário ligado ao princípio lógico da coincidentia oppositorum, e o digestivo, integrante da dinâmica do imaginário vetorizada pelo princípio lógico da analogia e da similitude.

A equação que resulta num privilégio da espacialização do tempo parece, assim, ser composta por variáveis fornecidas pelo regime do imaginário que há milênios nos apoia na busca por controle sobre a realidade visível através de um pensamento que chamamos de científico, a partir do qual percebemos intuitivamente o espaço como estável e o tempo como variável; para melhor dominar esse último, enquadramo-lo nos critérios espaciais pelos quais colocamos, por exemplo, o futuro à frente e o passado atrás. Nossa percepção se adaptou às exigências de um tipo específico de pensamento e, em última análise, de um regime do imaginário.

Não são de hoje as pesquisas que mostram que o tempo parece passar mais devagar quando se experimentam coisas novas, levando o cérebro a criar mais memórias, pois mais coisas acontecem. Já no final do século XIX, James (1950JAMES, W. Principles of Psychology. New York: Dover Publication Inc, 1950., p. 619 apudDUPONT, 2006DUPONT, J. C. Mémoire et héritagescientifique de William James. Archives de Philosophie, [s.l.], v. 69, n.3, 2006, p. 443-460. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-archives-de-philosophie-2006-3-page-443.htm. Acesso em: 13 mai. 2018.
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, p. 446) mostrava que a percepção do tempo se dá na medida em que ele é preenchido com processos fisiológicos cambiantes, como os batimentos cardíacos, fragmentos de frases ouvidas. Para esse estudioso americano da psicologia física, precursor das neurociências, não temos a percepção do presente enquanto instante que separa o passado do futuro. O que percebemos como uma duração é uma síntese entre o antes e o depois, uma consciência que sobrevém entre 1/500 e 12 (quinhentos avos de segundo e doze segundos); mais do que isso, já não é duração, e sim tempo escoando. Pode-se, então, dizer que menos do que isso é simultaneidade. Provavelmente, explica-se assim a sensação de eterno presente na troca de informações via fibra ótica nas redes de comunicação digital.

Concebida a percepção do tempo como uma série de rupturas, longas durações são dificilmente observadas. Para ser percebido, o tempo precisa ser preenchido com eventos, exatamente como ocorre na timeline das redes sociais. Quanto maior o número de contatos, mais eventos são mostrados para o usuário de modo que, potencialmente, o tempo intensifica sua presença através da rede. Porém, nós facilmente perdemos a noção do tempo pulando de link em link na internet ou nos atendo a uma rede social específica, rolando a tela, explorando links sugeridos e retornando à timeline. Por isso, o tempo rico em experiências novas é vivido como curto, mas visto retrospectivamente como longo e vice-versa4 4 O enfraquecimento progressivo da memória com a idade explicaria por que o tempo parece correr mais rápido para os mais velhos. O tempo decorrido entre o fato que “parece que foi ontem” e o momento em que ele é rememorado não foi preenchido com acontecimentos que a memória resgate. . O tempo vazio simplesmente não existe. A consciência é, assim, consciência de sucessão.

Facilmente, entre cliques e rolagem de telas, se é surpreendido com o avançado da hora: parece que se passou pouco tempo, mas é apenas uma impressão advinda do fato de o cérebro não ter registrado nenhuma novidade no ínterim. Assim, embora as interações nas redes sociais possam ocupar grande parte do tempo do usuário, esse tempo, retrospectivamente visto, parecerá ter transcorrido muito rápido, o que indica que a experiência não teve importância digna de ser registrada na memória.

Se não possuímos o tempo, quando dizemos que nos falta tempo estamos, na verdade, dizendo que sobram tarefas. Eis, de novo, o tempo definido em função de uma sucessão de eventos. Nossos hábitos de pensamento, nossos desdobramentos históricos e a organização de nossas sociedades não permitem pensar o tempo de outro modo, a não ser em fantasias como as da ficção científica. É interessante observar que a percepção pode acreditar tão fortemente em seus constructos a ponto de eles permearem não só as pequenas ações individuais, mas todo um desenvolvimento histórico e social e a isso chamar realidade, enviando para o escaninho da fantasia tudo o que a contradiga. Mesmo quando a ciência insinua para o senso comum que o que é fantasia talvez possa ter existência bastante concreta, a enorme clivagem entre eles, a mesma que faz com que a ciência pareça para o senso comum algo extraordinário, assegura a vitória da percepção imediata que o senso comum tem sobre a zona de dimensões médias que habita. Mas, estranhamente, quando se trata de pensar as interações nas redes sociais, essa ideia de tempo-espaço colapsado retorna, adquirindo utilidade para descrever a experiência humana. Estarão as redes nos transportando para uma outra dimensão que não a da zona de dimensões médias?

3 Nostalgia do mito no colapso do espaço-tempo

Se fosse, não seria a primeira vez. Viver além ou aquém do desenrolar de fatos não é alheio à realidade humana, que já experimentou isso ancestralmente, quando estava mais conectada ao chamado tempo mítico. Tendo a ideia de eterno retorno (Eliade, 1989ELIADE, M. Le Mythe de l'éternelretour. Paris: Gallimard, 1989.) como paradigma, seria tentador afirmar que a comunicação digital nos joga novamente nesse tempo mítico. No entanto, nem o eterno retorno é realmente um tempo mítico, nem a comunicação em rede nos insere no eterno retorno. Como afirma Torrano (2012TORRANO, J. O mundo como função de musas. In: HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 2012, p. 13-100., p. 86), o eterno retorno já é trabalho de um pensamento afeito à abstração, com uma natureza que se repete. Ora, o tempo mítico não tem repetição e sim presenças múltiplas das forças divinas - é por isso que Zeus pode ser ao mesmo tempo pai das Musas e concebido por elas. Por isso, também, os crimes das gerações posteriores, mais do que vingam, justificam os crimes dos impropriamente chamados seus ancestrais - o assassinato de Agamênon por seu filho Egisto, muito além de expiar os inúmeros assassinatos que o pelópida cometeu na busca do poder, como talvez deixe entender a interpretação já racionalizada de Ésquilo, justifica as harmatias (αμαρτίες) cometidas por seu, por assim dizer, antepassado Tântalo, filho de Zeus e Plutó, ao trair três vezes os deuses. No mito, o tempo e o espaço não são coisas e sim qualidades - adjetivos e não substantivos pois eles se subordinam à presença, ao Ser. Já na infindável sucessão de cliques que ritualiza a comunicação em redes, o que se tem é a subordinação do serão tempo e espaço: uma experiência sem impacto transformador que anula provisoriamente a consciência do tempo; essa consciência sobrevém mais tarde, qualificando como muito rápido o tempo usado durante tal processo, do mesmo modo que a consciência do espaço se perde momentaneamente para ser, depois, retomada com a surpresa da impressão de que o interlocutor estava logo ali.

Na lógica das redes sociais, jamais seria possível abolir o tempo porque o tecido das interações é a própria apresentação sucessivas de coisas. No entanto, a ideia de que o tempo pode ser anulado com a sensação de instantaneidade que caracteriza as comunicações digitais se reapresenta cada vez que o senso comum se expressa sobre o fenômeno, sendo isso detectável nas várias demonstrações de incredulidade e resignação diante do que é descrito como uma aceleração do tempo. A mesma imaginação capaz de construir o tempo histórico sequencial se mostra, pois, receptiva à sua desconstrução. Ambos os procedimentos são sintomas da resistência ancestral à queda no tempo resultante, como sublinha Eliade (2000ELIADE, M. Mitos, sonhos e mistérios. Lisboa: Edições 70, 2000.), do descontentamento com a história pessoal ou local, parasitada pelo desejo de transpor o momento; em uma palavra, pela vontade de ingressar no impropriamente chamado início do tempo, quando tudo ainda era fresco, novo, vigoroso.

A imaginação acerca do colapso do espaço-tempo, mesmo desmentida racionalmente, resiste porque se funda na nostalgia fundamental do mito. Ainda que fundado em princípios lógicos comuns à racionalidade entendida ortodoxamente como seu próprio oposto, o mito liberta o humano do fardo da história, franqueando a entrada num mundo que, paradoxalmente, por ter tudo já pronto, permite que tudo possa ser experimentado.

Referências

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  • TORRANO, J. O mundo como função de musas. In: HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 2012, p. 13-100.
  • 1
    Segundo o site https://www.telegeography.com, Acesso em: 24/05/2018. A TeleGeography é uma empresa norte-americana detentora de uma base global de dados sobre telecomunicações utilizada para prestar consultoria e realizar pesquisas de mercado na área. Subsidiaria da PriMetrica, Inc., foi fundada em 1989.
  • 2
    Backbonessão cabos de fibras óticas que ligam os continentes. Essas redes de longa distância estão integradas com redes locais, formadas pelos usuários individuais que usam conexões 4G, wifi, via satélite etc. (Motta, 2012). A velocidade de transmissão da fibra ótica é muito maior do que aquela realizada pelo ar com auxílio de antenas e satélites. Em milésimos de segundo, a informação transmitida chega ao seu destino.
  • 3
    Conforme o site https://www.statista.com/topics/1164/social-networks, Acesso em: 21/05/2018. Statista é um site de estatísticas online, pesquisa de mercado e portal de inteligência de negócios fundado na Alemanha em 2007.
  • 4
    O enfraquecimento progressivo da memória com a idade explicaria por que o tempo parece correr mais rápido para os mais velhos. O tempo decorrido entre o fato que “parece que foi ontem” e o momento em que ele é rememorado não foi preenchido com acontecimentos que a memória resgate.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2018
  • Aceito
    04 Nov 2020
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