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Comentário a respeito das bases neurobiológicas da aprendizagem

Comments on neurobiologic bases of learning

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Comentário a respeito das bases neurobiológicas da aprendizagem

Comments on neurobiologic bases of learning

Alfredo Pereira Júnior

Departamento de Educação, Instituto de Biociências de Botucatu, UNESP. Pós-doutorando no Massachussetts Institute of Technology (M.I.T.), E.U.A.

Da perspectiva neurobiológica, o cérebro humano, e suas capacidades cognitivas, são produtos de um processo evolutivo, no qual fatores genéticos e ambientais favoreceram o desenvolvimento de certas estruturas e funções. Enquanto na maioria das espécies um relativamente limitado e rígido repertório comportamental foi capaz de assegurar adaptação e sobrevivência, nos mamíferos, e especialmente nos primatas, ocorreu o desenvolvimento de estruturas cerebrais que permitem uma maior variedade e flexibilidade comportamental. Uma outra forma de expressar esse fenômeno e dizer que esses animais são capazes de aprendizagem.

Desse ponto de vista, a capacidade de aprender não implica que o sistema cognitivo que a possua seja como uma "tabula rasa", isto é, que seja internamente indeterminado ou capaz de absorver qualquer conteúdo; pelo contrário, biologicamente a capacidade de aprender se baseia em sofisticadas estruturas neuronais, que são geneticamente determinadas para serem plásticas.

O conceito de plasticidade, na neurociência, difere parcialmente do significado comum do termo. Uma rede neuronal apresenta plasticidade quando é capaz de alterar suas conexões, de acordo com as interações entre o animal e o meio. Portanto é preciso que essa rede já possua inicialmente um grande número de conexões, para que, através da referida interação, parte dessas conexões seja descartada. Por essa razão, autores como J. P. Changeux, A. Danchin e G. Edelman entendem a aprendizagem, do ponto de vista neuronal, como um processo seletivo, análogo à seleção natural darwiniana.

Sabe-se que a maior plasticidade neuronal humana ocorre até os três anos de idade. Durante este período, o bebê possui grande sensibilidade as influencias externas, e acredita-se atualmente que ele desenvolve suas capacidades cognitivas proporcionalmente ao nível de estímulo recebido. Por essa razão, neuropsicólogos passaram a recomendar o ensino de palavras e música durante esse período.

Para melhor entender a capacidade de aprendizagem humana, devemos levar em conta como os processos de aprendizagem se desenvolveram nas relações entre os animais e seus ambientes, ou seja, devemos enfocar a aprendizagem de uma perspectiva ecológica. No plano ontogenético (ou seja, referindo-se aos processos de aprendizagem de um organismo individual), observa-se inicialmente a existência de dois sistemas: o sistema perceptivo, pelo qual o animal obtém informações sobre o ambiente, e o sistema de ação, pelo qual o animal interfere causalmente neste mesmo ambiente. Os sensores ou órgãos sensoriais periféricos enviam informação para o sistema neuronal perceptual, essa informação é processada, e os produtos desse processamento são enviados para o sistema neuronal de ação, que comanda os efetores (músculos, glândulas, etc.) através dos quais o cérebro controla processos do corpo e as ações no ambiente externo.

Embora distintos, o sistema perceptual e o sistema de ação mantêm estreita interação, de três maneiras distintas. A influência externa se dá quando uma ação prévia determina uma nova percepção do ambiente externo; por exemplo, quando se gira o pescoço, se produz uma alteração no conteúdo do campo visual. A influência somática se dá quando uma alteração no corpo, comandada pelo sistema de ação, produz sinais que são enviados ao sistema perceptual; por exemplo, quando se move o braço se tem uma percepção da posição do mesmo (chamada de "kinestesia"), independentemente da percepção visual do movimento. A influência interna depende de canais de comunicação internos ao cérebro; por exemplo, quando o sistema de ação envia um comando para o movimento do braço, simultaneamente é enviado um sinal para o sistema perceptivo, produzindo um "senso de esforço", associado ao movimento.

A influência recíproca entre percepção e ação implica na existência de um ciclo cognitivo do organismo individual, no qual uma percepção influencia uma ação, que influencia a percepção seguinte, que influencia a ação seguinte, etc... Jacob Von Uexkull, um pioneiro da etologia, em 1932 deu o nome de ciclo funcional a esse processo. Com base nessa idéia, podemos extrair interessantes conseqüências para a aprendizagem humana. Para tal, é preciso adiantar algumas noções sobre memória, atenção e inferência lógica.

A organização funcional do cérebro não se reduz a um fluxo de informação, indo diretamente do sistema perceptual para o sistema de ação. Entre esses dois sistemas existe um terceiro, que tem sido chamado de sistema executivo, constituído pelas "áreas associativas" do córtex (parietal, temporal e frontal) e pelo sistema hipocampal, presumidamente sob a coordenação do córtex pré-frontal. Um tipo de teste cognitivo utilizado para se estudar esse sistema é intitulado "working memory" (ver uma resenha na revista Science, vol. 275, março de 1997, p. 1580 a 1585).

As funções do sistema executivo são cruciais para se entender os processos cognitivos humanos. Em termos bastante simplificados, podemos dizer que esse sistema contém um "arquivo" de programas para um grande número de comportamentos possíveis; em cada situação experienciada pelo organismo, ele "decide" qual tipo de comportamento será implementado pelo sistema de ação, de acordo com as informações recebidas do sistema perceptual. Esse arquivo de programas foi acumulado durante a evolução da espécie e transmitido hereditariamente. Porém, devido à plasticidade da rede neuronal, tais programas podem ser recombinados, gerando novas alternativas para se fazer frente a novas situações. A partir do que se conhece sobre o sistema executivo, podemos entender a constituição dos processos mnemônicos, atencionais e inferenciais.

A armazenagem de informação, seja por um curto ou longo prazo, pode ser feita por intermédio de qualquer conexão neuronal (sinapse) do cérebro, ou mesmo em outras partes do corpo, por meio de substâncias que influenciam as sinapses (neurotransmissores, seus receptores proteicos, e outras proteínas e neuromoduladoras). Existem vários tipos de memória, desde aquelas que são eminentemente práticas (p. ex., habilidade para jogar futebol) até aquelas que são eminentemente teóricas (p.ex., saber a equação e = m.c2). Recentemente vários pesquisadores têm acreditado que é o sistema executivo que controla os processos de memória, selecionando o que vai ser guardado, e o que vai ser rememorado. Isso implica que memorização, e recuperação de uma informação memorizada, dependem do sistema executivo, o qual, por sua vez, tem sua atividade direcionada para a coordenação de ações. Portanto, memorização e rememoração, independentemente do empenho do sistema executivo para a coordenação de uma ação do organismo, seriam neurobiologicamente impossíveis. As conseqüências disso para a aprendizagem na escola são bastante claras: os alunos só memorizam uma certa informação na medida em que a mesma seja útil para suas ações, nem que seja apenas para "passar de ano"...

Um outro aspecto do sistema executivo, nos primatas, é que ele é capaz de ajustar o sistema perceptual de acordo com a ação que está sendo exercida. Esse processo, que constitui um "feedback" entre ação e percepção, internamente ao cérebro, é chamado pelos psicólogos de atenção. Por exemplo, uma pessoa que está jogando futebol (normalmente) está mais atenta à posição da bola do que uma pessoa que está na platéia. Atenção é um fator importante para a aprendizagem, uma vez que o ambiente de um organismo sempre tem inúmeros estímulos que podem ser enfocados, e apenas o engajamento do sistema executivo em um tipo de ação determina que o foco de atenção seja direcionado para um determinado estimulo. Se é o sistema executivo que controla a atenção, inato, em termos de aprendizagem escolar, se o aluno não está engajado (ou "motivado") para uma ação a partir do conteúdo que está sendo ensinado, ele não vai enfocar adequadamente esse mesmo conteúdo.

Finalmente, a capacidade de realizar inferências, ou seja, relacionar informações obtidas por via perceptual ou mnemônica, com novas informações, também seria dependente do sistema executivo. Experimentos recentes têm demonstrado que já em ratos (que não têm os lobos frontais desenvolvidos), capacidades inferenciais dependem do hipocampo para serem exercidas. Ratos que aprendem a associar um odor A com um odor B, e o odor B com um odor C, são capazes de associar A com C, mas após uma lesão do hipocampo perdem essa capacidade (experimentos feitos por H. Eichenbaum e seu grupo, na Boston University). No homem, o sistema executivo inclui um córtex frontal desenvolvido, que suporta capacidades inferenciais mais sofisticadas. No que concerne à questão da aprendizagem, está claro que aprender não se resume a prestar atenção e memorizar, mas principalmente, implica na capacidade de inferir novas informações a partir da experiência de aprendizagem. Se a capacidade inferencial depende também do sistema executivo, ela só é exercida na medida em que seja útil para uma ação em curso.

Em conclusão, o que foi dito aqui sobre aprendizagem certamente não constitui novidade para todos os que estão acostumados com o ambiente de sala de aula, seja na posição de professor ou de aluno. O interessante é que teorias neurobiológicas venham confirmar algumas das intuições que temos, decorrentes de nossa prática. Sugestões para se melhorar o ensino, a partir dos resultados obtidos na ciência cognitiva e neurobiologia, já estão começando a aparecer. Um livro que trata de vários tópicos, como uso de hipermídia e inteligência prática, é "Classroom Lessons - Integrating Cognitive Theory and Classroom Practice", editado por Kate McGilly, MIT Press, 1994.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jul 2009
  • Data do Fascículo
    Fev 1998
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