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Imagens veladas, imagens re-veladas: narrativas da aids nos escritos do jornal Folha de São Paulo

TESES

Imagens veladas, imagens re-veladas: narrativas da aids nos escritos do jornal Folha de São Paulo

Rosana de Lima Soares (ECA-USP)

Resenha

Desde o título, essa dissertação de mestrado, orientada por Jeanne Marie Machado de Freitas e defendida na Escola de Comunicações e Artes da USP, deixa clara a opção teórica subentendida pela pesquisa: o caráter autônomo das significações, das qualidades do mundo sensível, que se manifestam como categorias discursivas, alimentando os processos de reconhecimento do vivido. Nesse sentido, não se apresenta como mais uma reflexão sobre a Aids _ tema atual e recorrente de investigação _ mas como uma proposta sobre o modo pelo qual a própria doença é elaborada e reelaborada pelos sujeitos a partir das mensagens veiculadas pelo jornal paulista Folha de São Paulo, entre 1994 e 1995.

Para desenvolver o modo de elaboração da Aids, a autora parte do pressuposto de que o jornalismo não pode ser considerado como forma espontânea de organização da escrita, que se vale da linguagem como instrumento. Reconhecer, ao contrário, que tal atividade se desenvolve no universo da linguagem induz necessariamente a admitir que seu produto _ a notícia _ não é apenas um dado informativo que se esgota em si mesmo. Fato e informação não gozam de autonomia, não cabendo, portanto, indagar como o fato _ no caso, a Aids _ é veiculado e a informação é transmitida. De maneira específica, ao introduzir o jornalismo no âmbito das Ciências da Linguagem, a presente pesquisa procura determinar não só o modo de construção do dito mas também suas articulações internas, responsáveis pela exposição do simbólico. O jornalismo, neste sentido, define-se como ação simbólica, que se caracteriza prioritariamente por "fabricar" realidades.

O discurso jornalístico, ao exercer a ação assinalada, institui simultaneamente os sujeitos do ato comunicativo e a realidade, permitindo que se entenda com maior precisão o objetivo da pesquisa, qual seja o de determinar o modo pelo qual a Aids se propõe como realidade. Trata-se, então, de analisar o modo de manifestação dessa doença no jornal, isolando-se o percurso narrativo de sua história, que não se confunde _ como podem pretender os desavisados _ com a análise do modo pelo qual o jornal criou o discurso da Aids. Essa não é, porém, uma diferença circunstancial, pois evidencia de maneira inequívoca que a investigação irá acatar, com todas as conseqüências provenientes dessa opção, o fato de que a existência da doença encontra-se indissociável da linguagem que a enuncia. Verifica-se objetivamente este aspecto desde sua nomeação até a elaboração da rede narrativa das notícias, que responde não só pela realidade discursiva da doença mas também e principalmente pelas configurações simbólicas que fazem com que a Aids seja vivida de um certo modo. Em suma: a Aids existe porque participa de uma realidade discursiva.

Organizada em dois volumes (o segundo volume apresenta os anexos _ íntegra das matérias e páginas do jornal), a dissertação, nos seus dois capítulos do primeiro volume, apresenta, de maneira clara, o quadro teórico de referência de que se vale, argumentando sobre a importância que tem para os estudos da comunicação a articulação do fato à ordem social, o que permite defini-lo em sua dimensão simbólica, isto é, como construção no interior da linguagem. Este pressuposto, que problematiza a autonomia da informação, relaciona a pesquisa ao conjunto de investigações empreendido pelo Núcleo de Estudos da Linguagem do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA, confirmando que o resultado obtido pela investigação individual tem sua qualidade potencializada pela dimensão coletiva da construção teórica que o alicerça.

O referencial teórico elaborado apresenta-se como sistema conceitual híbrido cujos elementos encontram-se perfeitamente harmonizados para compor o trajeto que desloca o jornalismo das ciências sociais para as ciências da linguagem. A pesquisadora opera este deslocamento com extrema habilidade, inspirando-se nas teorias lingüísticas de natureza saussureana, na semiótica greimasiana, na etnologia de Lévi-Strauss e na psicanálise freudiana a partir da leitura de Lacan. A partir daí, monta o sistema conceitual que concebe o jornalismo como uma atividade criadora. Isto é, o jornalismo não pressupõe uma realidade pré-existente ao ato narrativo (especificamente o ato de tornar público o que por direito é de domínio público), que será objetivada pela notícia. Baseando-se em Gans, que atribui ao jornalista a função, entre outras, de elaborar imagens representativas e compreensivas da realidade, a pesquisadora, concordando com Schudson, defende a substituição da idéia de notícia como ato informativo por aquela que a associa a produto cultural.

A idéia em questão é a de que o núcleo caracterizador da atividade jornalística é o estabelecimento de uma ordem simbólica da realidade, um arranjo da vida social na e pela linguagem. Essa não é uma afirmação destinada a ter um efeito de sentido qualquer. Ao contrário, ao adotá-la, identificam-se com clareza os equívocos provenientes das concepções usuais que consideram atos comunicativos aqueles destinados prioritariamente a tornar disponíveis informações. Inserem-se aí, por exemplo, as inúmeras discussões relacionadas ao pequeno efeito prático das campanhas de prevenção, embora sejam consideradas altamente informativas. De fato, a observação isolada da informação _ do dado, portanto _ pouco acrescenta ao entendimento que os segmentos sociais têm sobre a Aids porque não considera a ordem simbólica que regula as representações da doença.

O capítulo 3 apresenta sinteticamente a história da Aids a partir da década de 80, caracterizando-a como doença singular, com forte componente "moral", de início associada à categoria, pouco usual até então, de "grupo de risco", o que permitiu relacioná-la aos comportamentos desviantes ligados à homossexualidade, primeiramente, e aos usuários de drogas injetáveis, mais tardiamente, compondo um universo privilegiado para a instalação do preconceito. Entende-se, também, nessa perspectiva, algumas dificuldades para a transmissão de determinados dados de caráter preventivo da doença, tais como a universalização das formas de contágio e a latência do vírus, que pode se instalar no organismo humano e ficar oculto durante anos. Nesse capítulo, fica igualmente evidente que a singularidade da doença não possibilita integrá-la aos quadros interpretativos consensuais de "doença", que vigoraram até então. O modo de tratar esta singularidade encontra-se explicitado nos desvios narrativos de diferentes ordens: enfatiza-se o doente e não a doença (ao hepatético não se pergunta como contraiu a doença, ao "aidético" essa é uma pergunta infalível), outras vezes a Aids não é mencionada claramente mas sua presença é reconhecida pela enunciação de suas associações próximas: o sexo e a morte.

Os capítulos 4 e 5, intitulados respectivamente Primeiras leituras, temáticas da aids: narrativas e Segundas leituras, recorrências da aids: escritos, destinam-se à análise do corpus, composto por 31 matérias que tratam do tema Aids presentes no jornal Folha de São Paulo, publicadas em 1994 e 1995. Sua constituição respondeu aos critérios de amostragem propostos por Curran e Staton e ao critério de atualidade, que responde pelo estado atual das configurações narrativas da doença.

A primeira análise, de cunho descritivo e quantitativo, trata as matérias a partir das edições em que aparecem, estabelecendo uma subdivisão dos textos narrativos nas seguintes categorias: Estado (legislação, saúde pública, convênios médicos), Pessoas (soropositivos, homossexuais, pessoas afetadas ou não pela doença), Ciência (descobertas científicas, informações médicas, medicamentos, testes de novos remédios) e Questões Sociais (grupos organizados, eventos, drogas). Por essa primeira organização quantitativa do corpus, são propostas as distribuições das freqüências dos grupos temáticos nos jornais. Confirmando que o doente é mais importante que a doença, verifica-se que em termos absolutos a maior freqüência entre os temas assinalados é o de Pessoas. A seguir aparece o Estado, seguido por Ciência e Questões Sociais. Tematicamente, portanto, são privilegiados o doente e o tratamento.

Para proceder à segunda análise do corpus (capítulo 5), de natureza qualitativa, intervém o referencial teórico já desenvolvido, enfatizando-se de maneira direta o conceito de "aparelho formal da enunciação" tal como é proposto por Benveniste. A partir dele determina-se o quadro de realização do discurso jornalístico segundo seus elementos constitutivos: o ato de produção em si mesmo, as condições do fazer jornalístico e os instrumentos de sua realização.

A análise empreendida não dá conta apenas das marcas da enunciação que parecem próprias do jornalismo, mas enfatiza também o modo como se dá a construção do mecanismo de referência no próprio ato de enunciação, argumentando-se que o mesmo não se apresenta a priori ao discurso. Assim, os temas já reconhecidos não são dados da realidade, mas referências construídas discursivamente que passam então a funcionar como aspectos da realidade, ou como realidades. Justifica-se, portanto, a hipótese inicial do trabalho: a Aids é o que significa discursivamente.

De modo específico, as intermediações referenciais _ restritas agora às categorias Estado, Ciência e Homossexualidade _ estabelecem a relação entre o leitor e o jornal, determinando os lugares dos protagonistas: o narrador-jornalista, a doença, o doente, o leitor. Tais lugares encontram-se, quaisquer que sejam as estratégias utilizadas, subsumidos pela oposição geral entre o bem e o mal, que acaba introduzindo grande parte das configurações imaginárias da doença nos universos religioso e mítico, relacionando-a, desse modo, aos traços de transcendência próprios da remissão do pecado, aos modos de salvação. As narrativas da Aids seguem o modelo clássico: a Aids é um dano que necessita ser reparado. Como a fonte do simbólico é a linguagem, as representações originadas no imaginário encontram suas motivações nas significações e não no fato.

Sob o ponto de vista de sua institucionalização, o discurso jornalístico torna pública a narrativa da Aids, isto é, faz pública a narrativa passível de socializar a doença de modo que seja reconhecida pelos indivíduos singulares _ os leitores. Nesse sentido, os quadros de referências produzidos narrativamente, no discurso institucional tal como aqui se encontra caracterizado, permitem que os indivíduos se integrem à malha social, adaptando-se às condições que regulam os modos de convivência. Entende-se, desse modo, que tornar público é uma tarefa que exige associar à narrativa da Aids a função de introduzir e desenvolver os operadores de sentido necessários para reconhecê-la e vivenciá-la não só em sua significância mas também em sua simbolização. Ambos os planos _ o primeiro necessário porque introduz o contrato que regula a doença e o segundo importante para revelar os mecanismos que funcionam na sociedade _ individualizam o que é a doença, determinam o modo como é vivida e se encontram materializados na notícia.

Em suma, dando conta de que a existência da doença não se encontra circunscrita ao que é comunicado por meio de fórmulas rotineiras e previsíveis, a presente pesquisa desloca o jornalismo como atividade de registro para a ação de dizer, isto é, da organização descritiva para a produção. Ao explorar os processos inerentes do ato enunciativo, evidencia que o discurso não reflete estados já dados mas constrói estados de coisas, isto é, tematiza situações cujos atores não podem ser concebidos e conhecidos antecipadamente. Dito isto, é natural reconhecer a importância do simbólico e de sua influência no imaginário, e vice-versa, para a constituição da realidade cujo fundamento é dado pelas formas significantes.

Finalizando a dissertação, as conclusões _ qualificadas de provisórias _ apresentam uma "releitura das leituras empreendidas", introduzindo a Aids no universo temático das narrativas contemporâneas. Nesse quadro, a Aids tem seu sentido relacionado aos nossos tempo e espaço específicos. Escapa a uma organização prévia, promovendo transformações e mudanças sociais. Participa do conjunto de narrativas que reformulam nossos universos imaginários e possibilitam aos indivíduos se reconhecerem através de referências inusitadas que deixam à mostra a distância entre o que se conhece e o que se sabe. É nesse intervalo produzido pela desproporção entre os dois universos, que se desenvolvem os valores míticos. É por causa dele também que nenhuma narrativa encontra-se finalizada, o que nos coloca inevitavelmente frente a frente com a provisoriedade, traço determinante da atividade intencional, porque humana, da produção de sentido.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jul 2009
  • Data do Fascículo
    Fev 1999
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