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Criando lugar(es) para acolher a falta de lugar

CRIAÇÃO

Criando lugar(es) para acolher a falta de lugar

Mariangela S. Quarentei

Terapeuta ocupacional do Departamento de Neurologia e Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Botucatu, FMB/Unesp; supervisora das Oficinas de Atividades do Hospital-dia da FMB/Unesp

Colagem...

questões que perpassam uma clínica da inclusão

Vou-lhes contar um segredo: A vida é mortal.

Clarice Lispector

O que podemos contra todas as forças que ao nos atravessarem nos querem fracos, tristes, servos e tolos?

Criar !!!!!!!: a resposta alegre! (Deleuze/Pelbart)

... alegre é a fonte propulsora da ação tal é o jogo lúdico daqueles que pensam e experimentam ... ação contra o assujeitamento das paixões e a desqualificação do desejo. (Fuganti)

Para nós trata-se de inventar novas práticas e conceitos para lidar com a loucura que não sejam instrumentos de segregação, opressão e controle, mas de produção de vida.

NÃO É O PARAÍSO

Não é o paraíso porque não é fácil viver assumindo as contradições. Romper com o predomínio cultural do modelo segregativo clássico da Psiquiatria, no qual o manicômio constitui a única resposta ao sofrimento psíquico.

MANICÔMIO

"O manicômio é ainda a resposta que a sociedade dá ao desespero." (Basaglia)

À experiência da impossibilidade de suportar o estravazamento de relações demasiado complicadas (a própria vida e o viver), no manicômio deixamo-la impotente, a congelamos, a esterelizamos, tornamos inerte uma comunicação, aceitamos a ruptura da linguagem, pois por ali passam correntes demais (Rottelli); vida demais!

MANICÔMIO LUGAR ZERO DA TROCA. (Donzelot apud Rottelli)

MANICOMIO:

luogo di custodia che, con la scusa della "cura", ha transformato i malati in criminali ed di personale medico ed infermietistico in secondini.

lugar de custódia que, com a desculpa da "cura", transformou a doença em crime e o pessoal médico e de enfermagem em carcereiros.

(Cinque anni perla democrazia-Trieste)

A instituição responde mais às próprias necessidades de auto-reprodução que às necessidades de seus usuários.

...a mais segura e talvez a única garantia de manutenção da saúde, dos bons costumes e da ordem, é a lei do trabalho mecânico e rigorosamente executado (...) e estou fortemente convencido que não se pode fazer um estabelecimento durável deste gênero, e de utilidade sustentado se não se dispõe sobre essa base fundamental. (Pinel apud Birman)

e desinstitucionalizar significa inverter estas lógicas.

DESINSTITUCIONALIZAR

A desinstitucionalização do manicômio é interminável porque não se trata de fazê-los sair (internos e trabalhadores) ... A vida é difícil porque precisamos fazer história em lugares ocupados por nossos irmãos-inimigos. "... parce qu'il faut jouer les histoires dans les places occupées par des frères ennemis". (Tosquelles apud Gallio)

... na realidade, a rede é gerada pelo mal estar de muitas pessoas que se identificam com maior ou menor distância ao que se chamou de anti-psiquiatria ou com seus objetivos de luta pela eliminação de todas as formas de reclusão e instituição da violência psiquiátrica. (Basaglia)

Acreditar no mundo é também suscitar acontecimentos, mesmo que pequenos, que escapem do controle, ou então fazer nascer novos espaços-tempos...(Deleuze)

O HOSPITAL-DIA

unidade do hospital universitário da Unesp/Botucatu

Criado em 1980, junto ao Departamento de Psiquiatria e Neurologia da Faculdade de Medicina de Botucatu - FMB/Unesp, o hospital-dia de Botucatu insere-se no movimento brasileiro de transformação do modelo assistencial psiquiátrico, e sua terapêutica está centrada em atividades grupais.

Nele: "... as pessoas vão e vêm, permanecem, vivem um "espaço possível" para criar vida" (Rottelli).

Na sua vida cotidiana, no trabalho, o centro torna-se assim um microcosmos de elaboração de linguagens, de uma memória individual e coletiva, de projetos, emoções e afetos: microcosmos de sociabilidade, portanto também em sua dimensão simbólica, cultural. Produção de cultura em sentido de uma 'cultura das necessidades e dos recursos'. (DeLeonardis apud Rottelli)

Conversar, escrever, cozinhar, pintar, passear etc, são modos de cuidar/estar/escutar/acolher o sofrimento, a loucura; dar-lhes tempo e matéria para que, filmando, passeando, cozinhando, cantando recriem maneiras de estar no mundo ... As atividades, o fazer humano, são tomadas como territórios, potência e matéria de criação, expressão ... de modos de existir, de novos começos e da própria fabricação de mundos. (Quarentei)

Há alguns anos instituímos nossas "Oficinas de Atividades" como mediação para a aprendizagem de alunos, estagiários, residentes e profissionais na perspectiva de construirem habilidades de interação, convívio e produção com pessoas em grave sofrimento psíquico. E para os usuários, como oportunidade para experimentar, aprender, apreciar, expressar-se, desenvolver-se, criar e produzir. O problema não é a cura-produtividade, mas a produção de vida, de sentido. Uma existência mais rica de recursos, possibilidades e experiências é também uma existência em movimento-mudança.

OFICINAS DE ATIVIDADES

Oficina de música: "QUALQUER CANÇÃO"

. . .onde a MUSA-Música muito presente no cotidiano de todos, solta ou acompanhando algum outro fazer, mas sempre ligada à emoção, a um ser/estar/sentir. Assim, sem pretensões de ensinar música, tudo pode acontecer: a música do dia, a música lembrada-lembrança . . .Lembra daquela? E aquela? Ao mesmo tempo que públicas, muito nossas: hino nacional, mpb, cantigas de roda e até jingles comerciais. Seus fragmentos misturados aos fragmentos de nossas estórias... Ouvir qualquer canção: uma forma simples de compartilharmos a vida. (Quarentei et al)

Oficina de estórias

Nosso desafio: criar estratégias para que todo e qualquer potencial de expressão em língua escrita ou oral se efetive, ganhe visibilidade no mundo e possa acrescentar força/intensidade às vidas. Assim, a cada encontro procuramos dar voz aos afetos que insistiam, ... buscamos e encontramos múltiplas maneiras de fabricar estórias e os seus momentos: estórias coletivas/colchas de retalhos, contar "causos" e rir de nossas estórias; diários, poesias, cartas, bilhetes; estórias a partir de desenhos; imagens que são enigma-narrativas só para os olhos; e quando só era possível falar, um outro atento registrava o fluxo das palavras.

(Quarentei et al)

Oficinas (foram e são tantas quanto podem nossos corpos): aquarela, informação, canto, jardinagem, artesanato, pirogravura, pintura, cozinha, leitura, mural, dança, atividade física, argila e modelagem, "com o corpo", poesia, colagem. . . .

MAIS (ALGUMAS DISPERSAS E BELAS PALAVRAS) SOBRE CLÍNICA E CRIAÇÃO

O trabalho diário e a mão na massa são sempre mais maçantes que as belas palavras, mas em hipótese alguma se deve abdicar das belas palavras (Pelbart), nelas habitam nosso sonho e nossa utopia: Trancar não é tratar.

Na solidão poderiam ter sido simplesmente destruídos pela vida . . . e todos provaram e por momentos chegaram a entre ajudar-se. . . . eis o convívio, a alma da comunidade sem a qual não terão guarida para viver. (Pedrosa)

... tirados do pátio do hospício para a seção de terapêutica, desta para o atelier, do atelier para o convívio, onde passou a gerar-se o afeto e o afeto a estimular a criatividade. (Pedrosa)

... a reinvenção da arte é condição para que ela possa interferir na transformação radical do homem e do mundo. Assim fazendo estaria realizando e ultrapassando as categorias de arte, tornadas categorias de vida, seja pela estetização do cotidiano, seja pela recriação da arte como vida. (Favaretto apud Lima)

... não é unicamente o confronto com uma nova matéria de expressão, mas a constituição de complexos de subjetivação: indivíduo-grupo-máquina-trocas múltiplas que oferecem à pessoa possibilidades diversificadas de recompor uma corporeidade existencial, de sair de seus impasses repetitivos e, de alguma forma, se re-singularizar. (Guatarri)

... algo que pertence ao fundo comum da humanidade, para o qual indivíduos e grupo podem contribuir, e do qual todos nós podemos fruir, se tivermos um lugar para guardar o que encontramos. (Winnicott)

Não basta reconhecer o direito às diferenças identitárias, com essa tolerância neo-liberal tão em voga, mas caberia intensificar as diferenciações, incitá-las... Deveriam existir ateliês de tempo . . . não é simples e ainda estar atento para . . .conectar-se com outro, compor-se, combinar-se, contrapor-se . . .não para fazer bandinha, mas para não deixar que, por solidão, uma temporalidade morra estrangulada ou que alguém sufoque num ponto de horror. (Pelbart)

a relação com o estranho, o estrangeiro, a alteridade, com aquilo que irremediavelmente estará fora do meu espaço, do meu tempo, da minha consciência, do meu eu, da minha palavra, do meu controle. (Pelbart)

Tratar? Talvez apenas mover-se cotidianamente com o usuário ao longo de um percurso que não vise um valor, mas que reconstitua ou crie complexidade e restitua um sentido seu. (Rottelli)

o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para gente é no meio da travessia. (Rosa)

— Você que explora em profundidade e é capaz de interpretar símbolos, saberia me dizer em direção a qual desses futuros nos levam os ventos propícios?

— Por esses portos eu não saberia traçar a rota nos mapas nem fixar a data da atracação. Às vezes basta-me uma partícula que se abre no meio da paisagem incongruente, um aflorar de neblina ...

(Calvino)

Este é um trabalho clínico pautado no construtivismo e na experimentação ... trata-se de subjetivar ... criar lugar para acolher a experiência mesma da falta de lugar. (Lima)

Dizer é momento de produção de afirmação. Movimento de expulsão, de esconjuro, de exorcismo das forças da morte que se apropriam da energia vital. Dizer é momento de luta feroz e surda, de sopro de vida. Dizer já é um início de vitória - mas não se diz o começo da luta, este é indizível. Quando se chega a dizer, é porque a barragem que represava o sopro já sofreu o primeiro abalo. Dizer é momento. Momento em que se quer o que se pode, e já se pode o que quer. Momento que se diz para se poder e se querer mais, mais ainda, muito mais. Momento de gozo. Sinal de que se des-solidarizou das forças da morte. Dizer é declaração de guerra aberta à morte em vida. Dizer é difícil, extremamente difícil.

Dizer é um fragmento do exercício . . . (Santos)

GAIOLAS

Hoje hospital,

amanhã hospício e tal?

Quem sabe...?

A vida tem que seguir seu rumo certo.

Ser como um rio.

Como tornar-se rio

ambulante perambulante

por este corredor escuro, úmido, frio e quente.

Tem que seguir seu destino.

Seu rumo certo.

Sua gaiola de ferro, arame e ouro.

Sua gaiola dourada...

Fétida e inútil

gaiola da vida,

da fonte eterna da juventude,

transviada, tresviada e desmaiada.

Como Éxupèry: redoma para

proteger flores brancas, indefesas, inofensivas

e alegres e tristes.

Gaiolas do vai e do vem.

Gaiolas da vida e do amor.

Alba Ruiz Garcia

LIMA, E.M.F. Clínica e Criação: a utilização das atividades em Instituições de Saúde Mental. São Paulo, 1997. Dissertação (Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

  • BASAGLIA, F. entrevista. Rádice, Rio de Janeiro, n.10, p.4, 1979.
  • ________. A Psiquiatria Alternativa: contra o pessimismo da razão o otimismo da prática. São Paulo: Brasil Debates, 1979.
  • BIRMAM, J. A Psiquiatria como Discurso da Moralidade Rio de Janeiro: Graal, 1978.
  • CALVINO, I. As Cidades Invisíveis São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  • CINQUE ANNI PERLA DEMOCRAZIA - Edição Comemorativa da Provincia de Trieste. Itália: Libraria, 1975.
  • DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
  • FOUCAULT, M. História da Loucura São Paulo: Perspectiva, 1972.
  • FUGANTI, L.A. Saúde, Desejo e Pensamento. SaúdeLoucura, São Paulo, n.2, p.19-82, 1991.
  • GALLIO, G. e CONSTANTINO, M. Tosquelles a Escola da Liberdade. SaúdeLoucura, São Paulo, n.4, p.85-128, 1993.
  • GUATARRI, F. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
  • LISPECTOR, C. Onde estiveste de noite Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
  • MANNONI, M. Amor, ódio e separação: o reencontro com a linguagem esquecida da infância. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
  • PEDROSA, M. Museu de Imagens do Inconsciente Rio de Janeiro: FUNARTE, p.9-11, 1980.
  • PELBART, P.P. A nau do tempo rei: 7 ensaios sobre tempo e loucura . Rio de Janeiro: Imago, 1993.
  • QUARENTEI, M.S. Atividades: territórios para a expressão e criação de afetos. Boletim de Psiquiatria, São Paulo, v.27, n.1, p26-27, 1994.
  • ___________ et al. Relatórios das Oficinas de atividades do hospital-dia da FMB/UNESP Botucatu, digitado, 1996/97/98.
  • ROSA, J.G. Grande Sertão Veredas Rio de Janeiro: José Olímpio, 1963.
  • ROTTELLI, F. et al Desinstitucionalização São Paulo: Hucitec, 1990.
  • _________. Onde está o Senhor? SaúdeLoucura, São Paulo, n.3, p.67-76, 1992.
  • SANTOS, L.G. Tempo de Ensaio São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
  • WINNICOTT, D.W. O Brincar e a realidade Rio de Janeiro: Imago, 1975.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2009
  • Data do Fascículo
    Ago 1999
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