CRIAÇÃO
Vivido sobre a areia
"Toda existência é construída sobre a areia, a morte é a única certeza que temos"
Michel Onfray
- Mas o que a senhora está sentindo?
- Eu sou muito infeliz
O médico diagnosticou um enfisema pulmonar, mas sua dor era brutal. O corpo, um oco desvalido, quase mineral, retraindo-se. Diante do risco de viver, o jeito talvez fosse liqüefazer a carne, distanciar-se para sempre dessa imperiosa força de existir, que teimava. E o corpo ainda insistia em recitar sua desconjuntada sintaxe e se debatia decidido contra aquela prisão incompreensível. Afinal, era um corpo abatido, mas ativo, desejando recobrar uma música sutil, quase inaudível, cheia de chiados e tão exemplarmente sua.
A ressurreição do corpo
Foi numa sala crua e muito fria. Seu corpo buscava um lugar de desabafo expressivo que pudesse abrigar seus naturais barulhos. Conectada a uma maquinaria inteligente, pronta para registrar os batimentos do coração, sua voz pôde jorrar pura no espaço, ecoando uma canção de órgãos. E a sala vibrou em sons articulados que desenhavam diagramas de vida, passados, presentes, futuros. Naquele instante, a carne se reconciliava com a existência, esculpindo um tempo outro para aquele corpo violentamente doente, impondo sua singular resistência, inventando toda a saúde que lhe faltava.
Rosane Preciosa Sequeira, doutoranda no Núcleo de Estudos e Pesquisa da Subjetividade, Pontifícia Universidade Católica, PUC-SP.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
29 Jun 2009 -
Data do Fascículo
Fev 2000