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Família, saúde, educação: articulações entre o público e o privado

APRESENTAÇÃO

Família, saúde, educação: articulações entre o público e o privado

Neste número, Interface abriga na seção Ensaios estudos com enfoques teóricos distintos, provenientes de diferentes campos do saber centrados na instituição familiar, que enveredam pelas áreas da Saúde e da Educação, com elas estabelecendo um diálogo produtivo que redunda em reflexões instigantes acerca das relações entre essa instituição, de cunho privado, e a esfera pública.

A especificidade deste número, no entanto, reside na unidade que perpassa os trabalhos, tanto aqueles dedicados à discussão de diferentes aspectos da vida doméstica, quanto os demais textos. Essa unidade advém do modo como os temas dos estudos são analisados, tendo como referência a desigualdade social e a diversidade cultural presentes na sociedade brasileira, que afetam as formas de organização familiar, as possibilidades de acesso à educação formal, as modalidades de cuidados com a saúde e de utilização dos serviços públicos de saúde. Os vários trabalhos procuram apreender a singularidade de situações vividas pela população pobre no âmbito da vida privada e na relação com o domínio público.

Os textos sobre família, fruto de pesquisas e de reflexão teórica, suscitam indagações acerca de diferentes dimensões da vida doméstica, em especial da população pobre. As análises consideram a família como instituição privada responsável pela reprodução social, em sua dupla dimensão, de reprodução biológica e de socialização, como transmissora de padrões culturais para ordenar a vida social, o que inclui a educação informal. A família constitui-se também como grupo social em que a afetividade - tenha ela caráter positivo, ou negativo - e a sociabilidade podem ser expressas de modo mais livre do que no domínio público e como unidade que oferece amparo, proteção e cuidados à saúde de seus integrantes, sobretudo crianças e idosos. Paralelamente, a instituição familiar configura-se como local de tensão entre interesses e anseios individuais dos sujeitos que a compõem e do grupo como um todo, o que torna a vida doméstica, ao mesmo tempo, um núcleo protetor e incandescente.

Todos os trabalhos reunidos na seção Ensaios documentam, ainda, mudanças diversas que vêm ocorrendo na organização da família e articulam a análise interna da unidade doméstica com processos macrossociais que ocorrem no plano econômico e na esfera do Estado. As modificações revelam a heterogeneidade das formas de arranjos domésticos, apreensíveis por indicadores demográficos, referidos ao tamanho da família, ao número de filhos e ao aumento de famílias monoparentais. A oposição, ou antes, a ambígua convivência entre familismo e individualismo, presente nos vários textos, constitui questão central para a reflexão sobre a instituição familiar, pois remete à possibilidade de escolhas individualizadas no interior da unidade doméstica, que podem se contrapor a aspirações de cunho grupal. Dentre várias situações em que esta alternativa pode surgir, encontra-se a decisão acerca da reprodução biológica que, em função da expansão de tecnologias reprodutivas - contraceptivas e conceptivas -, tende a deslocar para as mulheres a possibilidade de escolha da maternidade. Tal escolha, contudo, é pautada por desigualdades sociais e raciais e por diferenças culturais, inclusive religiosas, como é documentado no comportamento reprodutivo de católicos e pentecostais, e sofre ainda interferência do Estado, cuja política demográfica, em particular quando se refere à população pobre, é de controle da natalidade. Ademais, o exame de dados referentes à reprodução biológica de mulheres jovens mostra aumento do número de filhos, enquanto diminui, no plano geral, a taxa de fecundidade, indicando que mulheres jovens antecipam fases do ciclo vital, iniciando-se precocemente na fase reprodutiva. Já em outra fase do ciclo vital, mulheres "idosas jovens", muitas delas abaixo de cincoenta anos, optam pela participação em grupos de idosos, antecipando a transição para outra fase do ciclo vital. Em ambos os casos, trata-se de escolha individual, essencialmente feminina, que tende a opor-se ao princípio do familismo e que, por isso mesmo, suscita indagações bastante interessantes acerca das relações entre gêneros.

A problemática da educação em sua relação com a promoção da saúde e a prevenção da doença está presente em textos que apontam a necessidade de os profissionais da área da Saúde conhecerem o universo simbólico da população pobre que, ao apropriar-se de padrões culturais dominantes, não os reproduz integralmente, mas os reelabora em um permanente e criativo processo de renovação cultural. Nesse sentido, os textos que tratam da Educação Médica e da Educação Popular trazem material bastante sugestivo para a reflexão acerca da necessidade de as famílias das classes populares terem acesso à educação formal e informal relacionada a problemas de saúde, de consumo de drogas e, fundamentalmente, ao direito à saúde. Afora isso, informações sobre cuidados com a saúde podem ser difundidas, utilizando-se como instrumento pedagógico, recursos lúdicos, tais como o "Jogo da Onda", por meio do qual é possível estimular a reflexão e o debate de jovens acerca do consumo de drogas.

A apresentação do projeto Pegapacapá encerra este volume, retomando a dimensão lúdica da cultura, já assinalada no "Jogo da Onda", presente na forma como o conhecimento médico-científico é articulado à cultura popular do agreste pernambucano para informar, sobretudo homens, acerca das DST/AIDS e de questões referentes ao comportamento reprodutivo. As indagações colocadas por esse projeto permitem retomar a reflexão acerca do vínculo entre família, saúde e educação e, simultaneamente, pensar a relação entre a esfera privada e o domínio público.

Para finalizar, deve-se considerar que um elemento comum, que tende a unificar as análises sobre a instituição doméstica e sobre outros temas, estabelecendo articulação entre a esfera privada e a pública, é o questionamento sobre as desigualdades presentes na família, que se reporta a outros tipos de desigualdade, gerados na esfera pública e relacionados à luta por direitos, em particular da população pobre, à educação e à saúde.

Geraldo Romanelli

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto

Universidade de São Paulo

Janeiro de 2001

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jun 2009
  • Data do Fascículo
    Fev 2001
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