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Educação da classe trabalhadora: Marx contra os pedagogos marxistas

Educating the working class: Marx vs. Marxist pedagogues

Educación de la clase trabajadora: Marx contra los pedagogos marxistas

Resumos

Pedagogos marxistas contemporâneos têm proposto a escola única politécnica como condição para a formação do "homem novo" requerido para a sociedade socialista. Esta posição considera que o marxismo precisa ampliar-se pela inclusão da cultura entre seus temas. Isto porque o proletariado deve ser educado para realizar o ideal socialista. Aqui procuro mostrar que esta era a posição da Social-democracia alemã, no período da Segunda Internacional, e que esta se fez em oposição às idéias de Marx. Para este, o homem novo já existia, era o proletariado, sendo necessário libertá-lo do trabalho assalariado, tendo por medida imediata a redução da jornada de trabalho, pois o tempo é condição para o desenvolvimento humano. A redução da jornada de trabalho, sem redução dos salários, era considerada crucial para a mudança no modo de vida. No mesmo movimento, requeria a regulamentação do trabalho das mulheres, crianças e jovens de ambos os sexos, neste último caso combinando-a com a educação escolar.

Marxismo; educação; trabalhadores; antropologia cultural


Contemporary marxist pedagogues have proposed a single polytechnic school as a condition for the education of the "new man" that socialist society requires. This position assumes that marxism must expand through the inclusion of culture among its themes. This is so because the proletariat should be educated to make the socialist ideal come true. This papers tries to demonstrate that this was the position of German social-democracy at the time of the Second International and that this position was opposed to Marx's ideas. Marx believed that the new man already existed and was the proletariat, its being necessary to free him from salaried work. The immediate measure of this would be a reduction in the work day, because time is a prerequisite for human development. The reduction of the work day without a corresponding pay cut was regarded as crucial for changing the way of life. In the same movement, the regulation of the work of women and of children and youths of both sexes would be required, being combined, in the case of the latter, with schooling.

Marxism; education; workers; cultural anthropology


Los pedagogos marxistas contemporáneos proponen la escuela única politécnica como condición necesaria para la formación del "nuevo hombre" que atienda lo requerido por la sociedad socialista. Esta posición considera que el marxismo necesita una ampliación que incluya la dimensión cultural entre sus temas. Porque el proletariado debe ser educado para realizar el ideal socialista. Aquí, intento mostrar que esta era la posición de la Social Democracia alemana, en el período de la Segunda Internacional y que ella es opuesta a la de Marx. Para éste el hombre nuevo ya existía, era el proletariado, siendo necesario librarlo del trabajo asalariado, instaurando como medida inmediata la reducción de la jornada de trabajo, ya que el tiempo es condición necesaria para el desarrollo humano. La reducción de la jornada de trabajo sin reducción del valor del salario era considerada crucial para el cambio del modo de vida. En el mismo movimiento, se requería la reglamentación del trabajo de las mujeres, niños y jóvenes de ambos sexos, en el último caso combinándola con la educación escolar.

Marxismo; educación; trabajadores; antropología cultural


ENSAIOS

Educação da classe trabalhadora: Marx contra os pedagogos marxistas

Educating the working class: Marx vs. Marxist pedagogues

Educación de la clase trabajadora: Marx contra los pedagogos marxistas

Tarso Bonilha Mazzotti1 1 Professor de Filosofia da Educação; Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro.< tarsomazzotti@ufrj.br> < tarsomazzotti@uol.com.br>

RESUMO

Pedagogos marxistas contemporâneos têm proposto a escola única politécnica como condição para a formação do "homem novo" requerido para a sociedade socialista. Esta posição considera que o marxismo precisa ampliar-se pela inclusão da cultura entre seus temas. Isto porque o proletariado deve ser educado para realizar o ideal socialista. Aqui procuro mostrar que esta era a posição da Social-democracia alemã, no período da Segunda Internacional, e que esta se fez em oposição às idéias de Marx. Para este, o homem novo já existia, era o proletariado, sendo necessário libertá-lo do trabalho assalariado, tendo por medida imediata a redução da jornada de trabalho, pois o tempo é condição para o desenvolvimento humano. A redução da jornada de trabalho, sem redução dos salários, era considerada crucial para a mudança no modo de vida. No mesmo movimento, requeria a regulamentação do trabalho das mulheres, crianças e jovens de ambos os sexos, neste último caso combinando-a com a educação escolar.

Palavras-chave: Marxismo; educação; trabalhadores; antropologia cultural.

ABSTRACT

Contemporary marxist pedagogues have proposed a single polytechnic school as a condition for the education of the "new man" that socialist society requires. This position assumes that marxism must expand through the inclusion of culture among its themes. This is so because the proletariat should be educated to make the socialist ideal come true. This papers tries to demonstrate that this was the position of German social-democracy at the time of the Second International and that this position was opposed to Marx's ideas. Marx believed that the new man already existed and was the proletariat, its being necessary to free him from salaried work. The immediate measure of this would be a reduction in the work day, because time is a prerequisite for human development. The reduction of the work day without a corresponding pay cut was regarded as crucial for changing the way of life. In the same movement, the regulation of the work of women and of children and youths of both sexes would be required, being combined, in the case of the latter, with schooling.

Key words: Marxism; education; workers; cultural anthropology.

RESUMEN

Los pedagogos marxistas contemporáneos proponen la escuela única politécnica como condición necesaria para la formación del "nuevo hombre" que atienda lo requerido por la sociedad socialista. Esta posición considera que el marxismo necesita una ampliación que incluya la dimensión cultural entre sus temas. Porque el proletariado debe ser educado para realizar el ideal socialista. Aquí, intento mostrar que esta era la posición de la Social Democracia alemana, en el período de la Segunda Internacional y que ella es opuesta a la de Marx. Para éste el hombre nuevo ya existía, era el proletariado, siendo necesario librarlo del trabajo asalariado, instaurando como medida inmediata la reducción de la jornada de trabajo, ya que el tiempo es condición necesaria para el desarrollo humano. La reducción de la jornada de trabajo sin reducción del valor del salario era considerada crucial para el cambio del modo de vida. En el mismo movimiento, se requería la reglamentación del trabajo de las mujeres, niños y jóvenes de ambos sexos, en el último caso combinándola con la educación escolar.

Palabras-clave: Marxismo; educación; trabajadores; antropología cultural.

O tempo é o campo do desenvolvimento humano.

Karl Marx

"Pedagogos marxistas", do título deste artigo, refere-se aos teóricos da educação que reivindicam certa herança marxista, a que foi restaurada no final da década de 1960: a gramsciana. O primeiro a propor uma pedagogia fundada na obra de Gramsci foi Manacorda (1971), que teve ampla influência no Brasil. A hegemonia de Gramsci como referencial teórico pode ser avaliada de várias maneiras, indico apenas uma: com base naquele referencial foi proposto um Anteprojeto de Leis de Diretrizes da Educação Nacional, apresentado ao Congresso Nacional. O Anteprojeto, escrito por Demerval Saviani —um dos principais pedagogos marxistas a que me refiro—, recebeu apoio das mais diversas instituições que se dedicam à educação no país: desde a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPEd) até confederações sindicais como a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE), Federação de Sindicatos dos Trabalhadores das Univerisdades Brasileiras (FASUBRA) e Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior (ANDES).

No Anteprojeto fica clara uma tomada de posição baseada no trabalho como princípio educativo, o qual deve orientar a educação escolar de todos, realizando-se a educação única politécnica. Essa educação única politécnica conduziria à realização das bases culturais necessárias à hegemonia da classe trabalhadora, com vistas ao socialismo. Seus propositores julgam que esta é uma posição marxista adequada aos nossos tempos, uma vez que é preciso dotar Marx de uma dimensão que ele deixara de lado: a cultural.

Neste artigo procuro esclarecer a posição original de Marx sobre a cultura e a educação. A relevância deste possível esclarecimento é primordialmente epistêmica, pois implica rever a posição dos que afirmam que Marx não tratou da cultura e da educação. Suponho que a apreensão da posição de Marx permita uma revisão dos debates em torno da educação escolar, bem como das condições contemporâneas postas pelas mudanças na base técnica da produção, uma vez que, para ele, a condição vital —material e espiritual— é a existência de tempo livre para o desenvolvimento humano.

Para efetivar a apresentação das posições de Marx sobre a cultura2 2 Deixo, aqui, de fazer uma análise do que se tem denominado "cultura", permita-me, no entanto, sugerir a leitura de Geertz (2001) sobre este assunto. e educação optei por examinar as ações políticas nas quais ele esteve envolvido e, depois, as dos teóricos e políticos que se reivindicaram marxistas. Entre estes teóricos há os que trataram prioritariamente do tema educação, como foi o caso de Henrich Schultz, membro do Partido Social-democrata Alemão —SPD— que determinou, desde 1904, o "programa escolar" daquele partido.

Apresentarei, inicialmente, as posições de Marx expressas em alguns documentos que informaram as resoluções dos congressos da Associação Internacional do Trabalhadores —AIT, 1865-1876—, acrescentando outros pertinentes à compreensão do trabalho na sociedade capitalista, particularmente no que se refere às possibilidades da realização dos indivíduos. Depois, examinarei as posições de Schultz, com um breve histórico do SPD, o partido paradigmático da social-democracia internacional. Concluirei retomando as posições de Marx de maneira a explicitar o que me parece ser um engano dos chamados pedagogos marxistas que são herdeiros do chamado marxismo ocidental. Este tornou-se, sem dúvida, a corrente dominante entre os intelectuais que se reivindicam marxistas e a que informa as posições dos teóricos da educação tanto no Brasil como no exterior. Dessa maneira, a crítica aqui apresentada alcança a todos eles.

Educação escolar entre as bandeiras de luta dos trabalhadores

Este tema aparece, nas posições de Marx, vinculado as suas proposições sobre a "regulamentação do trabalho das mulheres, crianças e jovens de ambos os sexos". Essa regulamentação constituía, no século passado, um dos pontos críticos para a sobrevivência física da classe dos trabalhadores assalariados que desenvolviam jornadas de 12 h a 16 h. Entre esses, encontravam-se crianças —muitas das quais com três anos de idade— e jovens de ambos os sexos, bem como mulheres adultas. Eram trabalhadores "desqualificados", ou seja, não eram profissionais, uma vez que não se exigia treinamento prévio para o trabalho e, por isto, não tinham a proteção dos regulamentos das guildas, ou universitas, nas quais se reuniam os artesãos. É sob tais circunstâncias que se constituiu a AIT, que objetivava coordenar as ações políticas dos trabalhadores assalariados na Europa e em outros países, tendo na regulamentação do trabalho um de seus principais pontos de pauta. É no âmbito deste debate que se apresentou a questão da educação das crianças e jovens.

No Congresso de Genebra da AIT (1866) os pontos 3 e 4 trataram da questão da regulamentação do trabalho. O ponto 3 examinou a necessidade imperativa de se reduzir as horas de trabalho, propondo que fosse de oito horas, como limite legal —o que já era reivindicado pelos operários dos Estados Unidos. Propunha-se, também, que se lutasse pela abolição do trabalho noturno; a jornada de oito horas atingiria os trabalhadores adultos de ambos os sexos. Além disso, as mulheres deveriam ser excluídas de todo e qualquer trabalho noturno e daqueles que "firam o seu pudor e onde seu corpo fique exposto aos tóxicos ou a outros agentes nocivos" (La Primera Internacional, 1977, tomo 1, p.53-4). Por adulto entendia-se toda pessoa com idade de 18 anos ou mais. Em ponto separado —ponto 4— tratou-se do trabalho das crianças e jovens de ambos os sexos que deveriam ser classificados por faixas etárias nas quais seria permitido que trabalhassem em casas ou nas fábricas. O trabalho seria proibido aos menores de nove anos, sugerindo-se que as escolas primárias admitissem crianças com menos dessa idade. As medidas de regulamentação do trabalho infantil e juvenil seriam necessárias para cessar a super-exploração das crianças e adolescentes e garantir que tivessem instrução primária. Afirmava-se que a AIT deveria lutar pelos direitos das crianças, uma vez que elas não podiam fazê-lo por si mesmas, enfatizando que o interesse dos membros da associação era para com os filhos das classes trabalhadoras (La Primera Internacional, 1977, tomo 1, p.56).

Em suma, as medidas legais a serem reclamadas como "direito das crianças e jovens de ambos os sexos" referiam-se aos filhos dos trabalhadores assalariados: regulamentação do trabalho e escolarização, vedando-se o trabalho noturno, o nocivo à saúde e/ou à moral e proibindo o trabalho às crianças com menos de nove anos. A educação escolar inscrevia-se, dessa maneira, em um programa mais amplo de mudanças no modo de vida determinado pelo capitalismo e, nesse sentido, constituía uma reivindicação a ser "arrancada do Estado burguês".

A combinação da educação escolar com o trabalho remunerado —a partir dos nove anos de idade— objetivava garantir tanto a sobrevivência dos filhos e filhas dos trabalhadores quanto elevar a classe trabalhadora acima das demais classes sociais (La Primera Internacional, 1977, tomo 1, p.57). Esta posição explicita as investigações e reflexões que Marx desenvolvera desde 1844 sobre a economia política, entre as quais estão seus discursos proferidos nas sessões do Conselho Geral da AIT que balizaram as propostas de resoluções de seus Congressos. Entre estes, temos o que trata do "Salário, preço e lucro" —20 a 27 de junho de 1865, em oposição a John Weston, membro do Conselho— no qual Marx expõe sua compreensão sobre o trabalho assalariado e sua superação. A certa altura, tratando da questão da jornada de trabalho, afirma:

O tempo é o campo do desenvolvimento humano. O homem que não dispõe de nenhum tempo livre, cuja vida, afora as interrupções puramente físicas do sono, das refeições etc., está toda ela absorvida pelo seu trabalho para o capitalista, é menos que uma besta de carga. É uma simples máquina, fisicamente destroçada e espiritualmente animalizada, para produzir riqueza alheia. (Marx, 1974, p.98-9; grifo meu)

Tal compreensão das relações capitalistas, adotada pelo Conselho Geral da AIT, determinou as resoluções já apresentadas. No tocante ao trabalho assalariado, afirmava-se que a luta pelos aumentos, ou reajustes salariais, é necessária, porém a luta efetivamente necessária é a que conduza à abolição do próprio sistema de assalariamento (Marx, 1974). Muitos anos mais tarde Marx faria a crítica do Programa de Gotha —que foi a base para a constituição do Partido Operário Alemão, do qual se originou a social-democracia— sustentando que "O trabalho não é a fonte de toda riqueza. A natureza é tanto fonte do valor-de-uso (e este constitui a riqueza material!) quanto o trabalho que é apenas uma manifestação de uma força material, a força de trabalho humana" (Marx, 1965, p.1413).

O Programa de Gotha (1875) deixava de lado, no entender de Marx, as condições nas quais o trabalho humano se desenvolve, tomando o trabalho como "uma potência de criação sobrenatural". Isto porque "é precisamente o liame que une o trabalho à natureza que faz com que o homem, não tendo outra propriedade a não ser sua força de trabalho, deva ser escravo de outros homens que se tornaram proprietários das condições de trabalho" (Marx, 1965, p.1413).

Na mesma crítica do Programa de Gotha podemos encontrar a dirigida contra o ponto que tratava da "educação elementar" (Volkserziehung) que deveria ser "igual e geral" para todos. Marx (1965) adotava, mais uma vez, as perspectivas que tinham orientado as resoluções da AIT, nas quais a reivindicação "educação escolar" pela classe dos trabalhadores deveria atender às necessidades desta classe. Não haveria, nas condições existentes, a possibilidade de educação igual para todos. Mesmo a obrigatoriedade da educação escolar, existente à época nos Estados Unidos, Suíça e Alemanha, não seria uma proposta "avançada". Assinala, ainda, que o "ensino gratuito", existente na Suíça e nos Estados Unidos, significa "apenas que são pagos pelas receitas gerais dos impostos". E, mais adiante, sustenta: "O parágrafo relativo às escolas poderia, pelo menos, exigir escolas técnicas (teóricas e práticas) combinadas com a escola primária" (Marx, 1965, p.1431). No parágrafo seguinte da mesma crítica, Marx dizia que se deveria rejeitar a "educação popular pelo Estado" (p.1431-2).

As críticas se tornam mais ásperas ainda, Marx parece exasperar-se com o que chamou de "chilique democrático" que teria origem na "seita lassaliana" que acreditava "no milagre da democracia"; mais exatamente, é um compromisso entre duas espécies de fé no milagre, igualmente distanciadas do socialismo. Essas "duas espécies de fé no milagre" aparecem no Programa de Gotha como sendo o da "liberdade da ciência" e "liberdade de consciência". A primeira liberdade já se encontrava na constituição prussiana, a segunda seria a retomada de uma palavra-de-ordem que o liberalismo apresentava à época da "guerra cultural" —Kulturkampf. Para Marx, no entanto, o partido operário "deveria, por seu lado, se esforçar muito mais em libertar as consciências da sandice religiosa" (Marx, 1965, p.1432). Retoma, depois, suas posições a respeito da jornada de trabalho e, ao tratar da proposta do Partido Operário Alemão de proibir o trabalho infantil, diz que

isto seria reacionário, pois graças a uma estrita regulamentação do tempo de trabalho segundo a idade e a outras medidas de proteção em favor das crianças, a união do trabalho produtivo e da instrução é um dos mais poderosos meios de transformação da sociedade atual. (Marx, 1965, p.1433)

Esta posição foi mantida por Marx ao longo de sua vida e pode ser reencontrada na obra O Capital (quarta seção, A produção da mais-valia relativa), na qual, ao tratar da "legislação fabril", assinalou:

Do sistema fabril, como se pode ver detalhadamente em Robert Owen, brotou o germe da educação do futuro, que há de conjugar, para todas as crianças acima de certa idade, trabalho produtivo com ensino e ginástica, não só como um método de elevar a produção social, mas como único método de produzir seres humanos desenvolvidos em todas as dimensões. (Marx, 1984, v.I, tomo 2, p. 87; grifo meu.)3 3 Na edição francesa d' O Capital, revista por Marx, lemos: "Il suffit de consulter les livres de Robert Owen, pour être convaincu que le système de fabrique a le premier fait germer l'éducation de l'avenir, éducation qui unira pour tous les enfants au-dessus d'un certain âge le travail productif avec l'instruction et la gymnastique, e cela non seulement comme méthode pour accroître la production sociale, mas comme le seule et unique méthode pour produire des hommes complets (Marx, 1965, p.987). Maximilien Rubel assinala que na versão alemã a expressão "hommes complets" é dita "homens plenamente desenvolvidos". Assinala também a influência de Owen e Fourier no que se refere à noção de "homem integral" que, para eles, seria antípoda ao "homem abstrato", desprovido de forças criadoras, que aparece na filosofia alemã. A qual foi criticada por Marx e Engels em A Ideologia Alemã (Rubel in Marx, 1965, p.1674, Notes et variantes, nota 1 da página 987).

Tem-se, dessa maneira, duas diretivas: (1) a combinação do trabalho produtivo —remunerado— com a instrução escolar para "produzir seres humanos desenvolvidos em todas as dimensões" e (2) os operários deveriam exigir esse tipo de escola apenas aos seus filhos, as demais classes que cuidassem dos seus.

Ambas as diretivas são coerentes pois, para Marx, o "novo homem", reclamado inicialmente pelos "utopistas" —depois pela social-democracia e em nossos dias pelos teóricos da educação que se reivindicam marxistas—, já existia. Isto porque o modo de produção capitalista produzira as novas classes sociais: a burguesia e o proletariado. O proletariado, originado das entranhas do capitalismo, é o "novo homem", após o declínio da classe burguesa. Marx não buscou a construção de um "homem novo", como os filósofos alemães que buscavam fazer pela "crítica da consciência" que permitiria o aparecimento de uma "nova consciência". Para ele, a classe social constituída pelos trabalhadores assalariados apresenta interesses próprios que coincidem com os racionais da humanidade. Esta racionalidade se expressa, de imediato, na racionalização do modo de vida, tendo por ponto de partida a redução do tempo de trabalho individual. Assim sendo, a educação que produziria o "homem integral", o "homem omnidimensional", ou "desenvolvido em todas as direções", só poderia se iniciar —ainda no interior da sociedade capitalista— pela regulamentação do trabalho das crianças e jovens de ambos os sexos combinando o trabalho remunerado (produtivo) com a educação intelectual, ginástica e tecnológica. No entanto, esta diretiva não poderia ser estendida às demais classes sociais, uma vez que elas têm interesses diversos dos das classes trabalhadoras.

A social-democracia, nascida do Partido Operário Alemão, tomaria outro caminho, exatamente o que fora criticado por Marx quando examinou o programa de Gotha. É o que veremos a seguir.

O programa escolar da social-democracia

A AIT foi formalmente extinta na Filadélfia, em 15 de julho de 1876, mas durante os anos seguintes muitos tentaram organizar uma nova internacional socialista. Em 1889, em Paris, durante as comemorações do centenário da queda da Bastilha, marxistas de 23 países reuniram-se, sob a presidência de Édouard Vaillant, com vistas a reorganizar a uma nova Internacional. Dois anos mais tarde, em Zurich —de 6 a 12 de agosto de 1893— os anarquistas foram expulsos da Internacional Operária, ou Segunda Internacional, o que resultou em certa homogeneidade doutrinária com base nas obras de Marx. Dos partidos da Segunda Internacional um era considerado paradigmático: o Partido Social Democrata Alemão (SPD).

O SPD foi uma força política poderosa que crescera eleitoralmente e em influência de massa. Alguns dados permitem avaliar a força do SPD. Em 1907, o SPD obteve 3.259.000 votos para o Reichstag que correspondiam a, aproximadamente, 38% do total de trabalhadores assalariados da cidade e do campo, embora eles fossem 28,9% do total dos eleitores. Note-se que em 1907 havia 12 milhões e 500 mil trabalhadores assalariados na Alemanha, assim entre 65% a 68% da população era classificada como sendo proletária —incluindo-se as mulheres e crianças— o que justificava a afirmação de Vermeil de que "a Alemanha de Guilherme II era, às vésperas de 1914, um país proletarizado em três quartos" (apud Broué, 1971, p.18). Em 1914 o SPD possuía 89 jornais, diversas revistas teóricas e culturais com um milhão e meio de assinantes —sustentando onze mil assalariados do partido. O SPD, por seu lado, era mais do que uma "máquina de combate", era uma "contra sociedade", pronta para substituir a existente. Dessa maneira, o Partido tornou-se um "meio de vida" para milhares de trabalhadores assalariados. Estes, por sua vez, constituíam o Partido, tanto que 74% dos deputados socialistas no Reichstag eram trabalhadores. "Foi neste espírito de reedificação da dignidade operária", diz um historiador, "que os social-democratas conferiram grande importância a obras destinadas à educação da mulher e da juventude, das quais se esperava, ao libertá-las da prostituição e do alcoolismo, que se tornassem os elementos motores e o cimento da moral da nova sociedade" (Droz, 1979, v.4, p.79). O SPD decidira integrar socialistas nos conselhos "municipais das grandes cidades para se iniciarem nos problemas escolares, nas questões de habitação, de seguros e de saúde, e (...) colaborarem efectivamente com os partidos burgueses" (Droz, 1979, v. 4, p.64). Caso nos fiemos nas observações de Pierre Broué, um historiador que examinou com detalhes a situação alemã no período, então será preciso considerar que o proletariado alemão era relativamente bem instruído, capaz de lutar por seus interesses imediatos e mediatos, bem como "de transformar sua vida e a dos pequeno burgueses, estraçalhados pela concentração capitalista, que eles julgavam, com alguma razão, que poderiam ser seus aliados" (Broué, 1971, p.19).4 4 Broué certamente está argumentando contra os que sustentam que a "baixa cultura" do proletariado alemão justifica a derrota da revolução alemã no período de 1919-1923. O tema da cultura pré-moderna do proletarido foi bastante explorado pela chamada Escola de Frankfurt, por exemplo. Para uma análise crítica desta corrente, sugiro a leitura de Slater (1978). Broué, por seu lado, acompanha as posições de Trotsky sobre a Alemanha naquele período (Trotsky, 1979).

Este foi o caldo de cultura para a proposta de "educação socialista", pois o SPD enfrentava o problema diariamente tanto no partido como nos conselhos de que participava.

Dietrich (1976), comentando as propostas sociais-democratas ao "problema escolar", diz que consciente ou inconscientemente, todos participaram dos delineamentos revisionistas de Eduard Bernstein. Dessa maneira, é fundamental compreender as posições de Bernstein. Certamente seria necessário um estudo à parte para examinar o chamado "revisionismo" encabeçado por Bernstein mas, para nossos propósitos, é suficiente apresentar as linhas gerais de suas posições.

Em primeiro lugar, Bernstein não era materialista e considerava que Marx estivera completamente enganado, pois "se reina a necessidade, de que serve a ação?", perguntava (Dietrich, 1976, p.110). Assumia que o socialismo enraíza-se em juízos éticos, uma vez que as noções de justiça e igualdade têm, em si mesmas, uma força criadora. Estava convicto de que o socialismo é o depositário da verdade "na medida em que se fundamenta no idealismo moral", negando, por essa via, algumas posições básicas de Marx. Por outro lado, atacava a crítica da economia política de Marx, sustentando as posições dos marginalistas — Jevons e Böhm-Baverk —, para os quais o "valor" tem por base a "utilidade", a "necessidade", o "gosto" sendo, portanto, determinado por fatores psicológicos, ou subjetivos. Negava, dessa maneira, que o fundamento do "valor" fosse dado pelo dispêndio da força de trabalho, aniquilando a teoria da mais-valia proposta por Marx. A orientação antimaterialista do pensamento de Bernstein, diz um historiador, seria incompreensível

sem o conhecimento que ele adquiriu do movimento neokantiano, desse "retorno a Kant" em que foi iniciado pela leitura de F. A. Lange, bem como pelos contatos travados com a escola de Marburg, cujo líder, Hermann Choen, considerava Kant "o pai verdadeiro e real do socialismo alemão". (Droz, 1979, v.4, p.58)

Bernstein considerava possível que a expansão capitalista fosse associada às melhorias na vida da classe operária tanto pelos aumentos salariais quanto pela redução da miséria moral, ou cultural, dessa classe. Por essa concepção seus adversários consideravam-no "reformista".

Sustentava, ainda, que as classes sociais não são tão homogêneas, como ele julgava ser a posição de Marx. Assim, para ele, a social-democracia representava apenas uma parte da classe operária que estaria muito longe de ter alcançado as condições intelectuais e morais necessárias ao socialismo. Além disso, a classe burguesa não seria o "bloco reacionário" que os revolucionários proclamavam, pois há setores progressistas na burguesia. Para ele, o socialismo não apenas sucederia o capitalismo do ponto de vista cronológico, mas seria seu sucessor por seu "conteúdo espiritual" por ser o "herdeiro legítimo do liberalismo" (Bernstein apud Droz, 1979, p.60).

Finalmente, para Bernstein, o Estado não é um instrumento de coerção das classes dominantes, pois a prática democrática suprime as diferenças de nascimento e propriedade. Assim, o Estado representaria cada vez mais o interesse geral, coletivo, sendo possível ao movimento operário, penetrar nos organismos de governo sem a necessidade de efetivar a "tomada do poder" que viesse a estabelecer a "ditadura do proletariado". Logo, o SPD deveria se tornar um partido das reformas socialistas e democráticas, abandonado a "fraseologia revolucionária", agindo pragmaticamente em alianças com os progressistas dos demais partidos e de outras classes sociais. Em suma, "o socialismo tornar-se-á um objetivo que será alcançado, não pela violência, mas pelas reformas sucessivas: só um trabalho paciente pode, do interior, emendar a sociedade capitalista" (Droz, 1979, p.60).

A crítica mais contundente da posição de Bernstein foi produzida por Rosa Luxemburgo em seu livro Reforma Social ou Revolução? —publicado em brochura em 1900, embora a primeira crítica tenha sido publicada em 1898 no Leipziger Volkszeitung. Não examinarei, aqui, as críticas de Rosa Luxemburgo. Apenas assinalo que seu livro, combinado com artigos de Alexander Helphand —Parvus5 5 Parvus, ou Molotov, assinou com Trotsky o primeiro documento social-democrata defendendo a tese de que a revolução social é um processo "permanente", ou o que passou a ser conhecido como "revolução permanente", criticada por Gramsci sob denominação "guerra de movimento". — publicados no Sächsische Arbeiterzeitung, e a comedida brochura de Karl Kautsky intitulada Bernstein e o Programa Social-democrata (1899), levou o Congresso de Hannover (1899) a condenar a posição de Bernstein. Somente em 1903 este debate foi formalmente encerrado, sendo que o próprio Bernstein votou a favor das resoluções que condenavam sua posição.

No entanto, com um partido que alcançava mais deputados, conselheiros municipais e infiltrava-se nos organismos do Estado, bem como desenvolvia um imenso aparato de funcionários, as posições "revisionistas", ou "reformistas", foram se instalando na prática cotidiana do SPD. É este o pano de fundo no qual se inscreve a proposta de "escola socialista" de Heinrich Schultz6 6 Schutz (1872-1932), ao lado de Kurt Kerlöw-Löwenstein (morreu em 1932) e Max Adler (1873-1937), desenvolveu a proposta de "escola socialista" e a noção de "teoria socialista das atitudes", esta devida a Kerlöw-Löwenstein, que se fundamenta na noção de "homem novo" devida a Adler, todos considerando que tais noções correspondiam à de "homem completo" de Marx (Dietrich, 1976, p.114). — então considerado ortodoxo, ou seja, contrário às posições de Bernstein—, apresentada, pela primeira vez, no Congresso de Bremen (1904). No entanto, suas teses não foram discutidas na ocasião e, portanto, não foram votadas. Reapresentou-as no Congresso de Mannheim (1906) em conjunto com Clara Zetkin7 7 Clara Zetkin, ou Clara Eisner (1857-1933), professora de escola primária, foi secretária da secção feminina da internacional, tendo fundado e dirigido o Gleichkeit, periódico voltado às questões da mulher e da família. e, novamente, não foram votadas. Mesmo assim, as teses de Schultz tornaram-se o "verdadeiro programa escolar do partido" (Dietrich, 1976, p.114).

O "programa escolar" da social-democracia fundamentava-se no "trabalho social", o qual, do ponto de vista de Schutlz, permitiu o progresso da humanidade em um marco de "tempo muito amplo, do estado selvagem, no qual não se distinguia em nada dos animais, até seu nível cultural atual" (Schultz apud Dietrich, 1976, p.116).

A doutrina apresentada por Schultz sustenta-se na idéia de que o homem é antes de tudo social e que deve ser socializado por meio do "trabalho social". Daí afirmar que:

A sociedade, a coletividade de indivíduos, deve ser capaz de regular conscientemente a produção. Para alcançá-lo, é necessário que cada membro da sociedade seja educado de maneira tal que tenha a compreensão total do processo de produção em sua dimensão social e cultural e em suas relações interiores e exteriores. (Schultz apud Dietrich, 1976, p.117)

Mas, o trabalho organiza-se com base na divisão técnica e esta é repulsiva. Assim seria necessária uma pedagogia que efetivasse um processo de compreensão dessa condição para suprimir suas características negativas. A compreensão do processo de trabalho seria o caminho para a superação dos aspectos negativos da divisão técnica e, no mais, Schultz acompanhou a pedagogia do norte-americano A. Pabst apresentada no livro O trabalho manual das crianças na educação atual, publicado em 1907 (Dietrich, 1976).

Dietrich considera que

Os fundamentos do ideal socialista de Schultz coincidem plenamente com as intenções de Marx. Esta concordância sustenta-se em pressupostos comuns, como "o fundamento granítico do socialismo científico". Porém ocorrem divergências importantes na práxis da educação pelo trabalho, que Schultz "aburguesou". Schultz integrou em sua concepção socialista de escola os imperativos da corrente burguesa8 8 Dietrich assim considera a corrente pedagógica de "educação pelo trabalho" encabeçada por A. Pabst. da escola do trabalho. (Dietrich, 1976, p.119)

Esta avaliação parece-me imprópria. A proposta de Marx para a educação não foi a da "educação pelo trabalho", no sentido apresentado por Dietrich, uma vez que Marx propunha a combinação do trabalho remunerado das crianças e jovens de ambos os sexos das classes trabalhadoras com a educação escolar. Para isso seria necessária uma regulamentação do trabalho das crianças e jovens, bem como a construção de escolas onde se efetivasse a educação intelectual, física e tecnológica. A proposta de Schultz não vincula o trabalho produtivo e/ou remunerado com a educação escolar, pretendendo efetivar uma "educação pelo trabalho" no interior das escolas e para todas as classes sociais. Neste sentido assimila a proposta de A. Pabst e deixa de lado as outras diretivas políticas apresentadas por Marx e aceitas pela AIT.

É preciso notar que, para Marx, não se pode falar de "o trabalho" como uma "entidade sobrenatural", em si mesma, mas das condições concretas nas quais ele se desenvolve. Isto significa considerar que as questões fundamentais não se encontram na pedagogia, mas nas lutas pela reorganização da vida social sob o capitalismo, bem como adotar uma teoria de revolução muito diversa da praticada "oficiosamente" na social-democracia alemã.

A teoria de revolução social esboçada por Marx considera que as conquistas materiais são um momento do processo de tomada de consciência dos interesses de classe por parte da própria classe e, nessa luta, o proletariado vai se constituindo em "classe para si", forma-se como classe efetivamente revolucionária. Por exemplo, ao lutar pela regulamentação do trabalho infantil e juvenil associada à educação escolar —intelectual, física e tecnológica— a classe proletária estaria dando um passo no sentido de colocar-se como dirigente da sociedade atual e futura. Esta pedagogia é a pedagogia da luta de classes que educa a classe trabalhadora e o Estado, como vimos mais acima.

Schultz, por seu lado, propunha que a "escola socialista" fosse única, com o objetivo de superar os ramos escolares existentes na Alemanha e, mais importante, dar a mesma educação geral a todas as crianças e jovens. Assim, a "escola única suprimiria, antes mesmo da revolução proletária, as contradições entre as classes, entre a cidade e o campo, entre ricos e pobres" (Dietrich, 1976, p.131). Esta posição nada tem em comum com a de Marx, que combinava o trabalho remunerado com a escola que só interessaria aos trabalhadores assalariados, deixando às demais classes sociais a decisão sobre a educação de seus filhos.

Em resumo, enquanto Marx procurava aprofundar as características do proletariado enquanto classe, os liberais e os sociais-democratas buscavam romper as fronteiras de classes na escola.

Concluindo

As questões que geraram o debate aqui resumido —entre Marx e os anarquistas; entre Bernstein e Rosa Luxemburgo, Parvus, Lenine, Trostky— são, basicamente, as seguintes: qual o caminho para a mudança/revolução da sociedade? E, neste percurso, qual o papel da educação?

Marx, como vimos, não hesitaria em responder que a educação escolar necessária à classe dos trabalhadores é a que as instrua intelectual, física e tecnologicamente, pois os trabalhadores são os "homens novos" requeridos para a sublimação (Aufhebung) da sociedade burguesa. Mas, tal educação só seria completa caso fosse uma combinação do trabalho produtivo —remunerado— com a escola. Se essa educação não interessar aos filhos das classes burguesas e aristocráticas, pior para elas, diria Marx.

Para a realização da educação necessária à classe dos trabalhadores assalariados é imperativo que se regulamente o tempo de trabalho e as atividades escolares. As escolas fundamentais requeridas pela classe proletária não deveriam ser dirigidas pelos governos, nem pelas igrejas, mas pelos próprios trabalhadores. Deveriam ser financiadas por meio ou de impostos ou taxas, fiscalizadas por inspetores do Estado, regulamentando-se a qualificação dos professores e, finalmente, não deveriam ser o lugar para o ensino de qualquer disciplina que implicasse uma "visão de classe", ou "ideologias". Ensinar-se-iam as ciências modernas, a gramática, mas não a filosofia, a religião e nem economia política. Estes assuntos seriam realizados pelos adultos ou em escolas ou outros organismos constituídos autonomamente pelas classes proletárias. Nas escolas para os trabalhadores seriam ensinadas as diversas tecnologias —seus princípios científicos— tanto por meio de exposições teóricas como práticas. Por certo o "ensino noturno" seria extinto, uma vez que as crianças e jovens trabalhadores poderiam freqüentar as escolas durante o dia, não ampliando a jornada de trabalho com a educação escolar, como ocorre em nossos dias.

Para Marx, o "homem novo" já existia: era a classe proletária e sua educação política se faz nas lutas, nos sindicatos, nos partidos políticos. Tudo o mais, diria, Marx, é metafísica dos "filósofos alemães" que pensaram revolucionar o mundo na cabeça, como afirmara na obra conjunta com Engels, A Ideologia alemã... A classe proletária necessita desenvolver-se intelectual, moral e fisicamente e, para isso, é preciso que tenha tempo livre, pois o tempo é o campo do desenvolvimento humano.

Não foi assim que entenderam os sociais-democratas que praticaram a política recomendada por Bernstein. Eles queriam reformar a sociedade burguesa à espera das condições culturais necessárias ao socialismo. Para isso, fundamentaram o "programa (de luta) escolar" na "escola única do trabalho" que abrangeria todas as classes sociais, produzindo-se as condições subjetivas para a sociedade socialista. Os educandos dessa "nova escola" seriam os "homens novos" necessários à sociedade futura. Seria, então, necessário efetivar compromissos escolares com burgueses e aristocratas, ganhando posições que permitissem a hegemonia social-democrata em algum momento do processo. Os homens novos não pertenceriam a esta ou aquela classe social, seriam forjados nas escolas socialistas, nas quais não haveria qualquer diferenciação entre as classes sociais. O trabalho social, que forjaria esses homens novos, teria por base a "comunidade universal do trabalho". A "nova moral", a eticidade requerida, teria por fundamento o idealismo alemão considerado, pelos sociais-democratas, "verdadeiramente socialista" e, mesmo, marxista. Neste percurso da social-democracia Eduard Bernstein teve o mérito de ter sido claro e preciso: rejeitou, explicitamente, as posições de Marx. Em outro lugar da Europa, entre os russos, Bogdânov9 9 Alexandr Bogdânov, pseudônimo de Alexander Alexandrovich Malinóvski (1873-1928), fundou o movimento "cultura proletária" que teve ampla influência na Rússia e no exterior. Um dos militantes deste movimento foi Bukarine, com o qual Gramsci teve muitas identidades políticas, até por ter participado, no início de sua carreira, do mesmo movimento na Itália. Um dos poucos estudos sobre Bogdânov é o de Jutta Scherrer (1984) e sugiro sua leitura. faria o mesmo, constituindo um movimento conhecido como "cultura proletária" — proletkult— que influenciou um jovem italiano: Antonio Gramsci.

Gramsci, assim como Bernstein e Bogdânov, desejava construir o homem novo necessário à sociedade futura, uma vez que não reconhecia nos proletariados existentes as condições morais, ou culturais, para a "grande tarefa da humanidade". A educação seria conduzida por intelectuais preparados especialmente para a realização do homem novo requerido pelo socialismo. Retomavam-se, assim, as posições que Marx criticara em suas Teses sobre Feuerbach ao perguntar: quem educa os educadores? Marx mesmo respondera dizendo que só a "práxis revolucionária" educa os homens, inclusive, é claro, os educadores.

Em suma, enquanto Marx procurava aprofundar as características do proletariado enquanto classe social existente e condição para a transformação social, os sociais-democratas buscavam romper as fronteiras das classes sociais na escola por meio da "escola única do trabalho" e na sociedade (a política de Bernstein), de maneira a constituir a hegemonia social-democrata na sociedade existente. Os teóricos sociais-democratas apresentaram e apresentam "o trabalho" como "princípio educativo", ignorando as posições originais de Marx para o qual o trabalho assalariado deveria ser abolido.

A libertação concreta dos homens só poderá ocorrer, pensava Marx, por meio da redução do tempo individual do trabalho socialmente necessário. Logo, a coordenação do trabalho remunerado e regulamentado das crianças e jovens com a educação escolar, constitui uma contingência histórica. Não tem a eternidade de um "princípio" e sim a perenidade de uma dada forma de sociedade: a capitalista. Neste sentido, a luta pela regulamentação do trabalho das crianças e jovens combinada com a educação escolar integra uma luta mais ampla pela redução da jornada de trabalho sem redução dos salários. São movimentos táticos para se alcançar a estratégia geral da abolição do trabalho assalariado e não uma maneira de perpetuar as relações existentes.

A outra face da moeda é a educação tecnológica das classes proletárias. Esta educação interessa tanto aos trabalhadores quanto a seus empregadores, mas tem-se aqui uma situação contraditória. Os capitalistas necessitam de trabalhadores qualificados, porém ao qualificá-los, eles se tornam mais exigentes e autônomos10 10 Esta maneira de ver se encontra no "programa (de luta) escolar" defendido pela Juventude Socialista Livre da Alemanha, escrito por Edwin Hoernle (1883-1952). A sequência, porém, não deve ser atribuída àquele autor. . Esta contradição se resolve na prática pelas lutas no interior da classe dos capitalistas: o mercado concorrencial (que é uma luta intraclasse) empurra os capitalistas para o apoio e desenvolvimento da qualificação técnica de seus trabalhadores. Pelo lado dos trabalhadores assalariados, a concorrência no mercado da força de trabalho impulsiona a busca da qualificação desejada pelo capital. É por esta via que as escolas são impulsionadas pelas mudanças exigidas pela situação apontada acima. Muda-se a escola, mas o capitalismo permanece íntegro, enquanto modo de produção.

Como, então, pretender que a educação pelo trabalho, ou a educação com base no trabalho como princípio educativo, possa mudar a sociedade?

A resposta dos pedagogos marxistas é que se estaria "construindo o homem novo", uma vez que o proletariado existente não apresenta a "consciência revolucionária" requerida (por exemplo, Frigotto, 1989). Assume-se, dessa maneira, que a luta pela transformação social se faz pela ação cultural encabeçada pelos "intelectuais orgânicos" da classe dos trabalhadores. O núcleo dessa posição é: os trabalhadores assalariados encontram-se obscurecidos pela ideologia dominante e, dessa maneira, não compreendem os seus verdadeiros interesses de classe. Para os libertar dessa consciência subjugada é necessária a intervenção organizada dos intelectuais orgânicos. Estes são os dirigentes da classe proletária em suas lutas pela libertação intelectual e social. Tal libertação se faz pela educação político-cultural e, no caso das crianças e jovens de qualquer classe social, pela escola única do trabalho, ou melhor, pela escola única politécnica. A escola ocuparia, então, um lugar privilegiado na transformação social: a de constituir a hegemonia socialista antes da revolução social.

As críticas que Marx apresentou contra os anarquistas e os lassalianos permite afirmar que ele não seria menos duro com nossos contemporâneos teóricos marxistas da Educação. Estes, afinal, deixam de lado o principal: a redução da jornada de trabalho de crianças, jovens e adultos, condição necessária para o livre desenvolvimento individual. Mais ainda, nas condições concretas da vida social contemporânea há a possibilidade de se reduzir em muito o tempo de trabalho individual sem perdas para a produção e sem redução dos salários. Esta possibilidade histórica permitiria a constituição de uma sociedade na qual os homens teriam mais tempo livre para se desenvolverem como bem entendessem. Esta era a esperança de Marx , mas o que vemos é a intensificação do trabalho dos que se encontram empregados e o aumento do desemprego e/ou trabalho dito informal. Logo, por um imperativo do capital, os trabalhadores são dispensados, postos de trabalho eliminados um após o outro, sem que se apresentem alternativas para a realocação dos trabalhadores com redução da jornada de trabalho sem redução dos salários.

Parece factível, por outro lado, explicar as posições dos pedagogos que se reivindicam marxistas. Estes teóricos ocupam um determinado lugar social, exercem funções intelectuais como a de professores e, às vezes, a de especialistas em assuntos culturais e educacionais. Compreendem as relações sociais a partir dessa posição social e desconsideram ou ignoram os desejos e anseios dos demais segmentos das classes. Não entendem as razões que os diversos setores de classe dão para si mesmos para agirem como agem. Assim, por exemplo, ficam escandalizados quando pais trabalhadores sustentam que seus filhos necessitam de uma escola profissional, ou técnica, e não da escola acadêmica. Argumentam que tais trabalhadores são "inconscientemente" burgueses, ou melhor, que estão "dominados pela ideologia burguesa", são "reformistas". Não compreendem que, pelo simples fato de existir uma alta rotatividade nos postos de trabalho, o pai proletário fica sem horizonte para manter seus filhos por 12 ou mais anos na escola, sem que eles trabalhem ou mesmo "aprendam uma profissão" (Mazzotti & Oliveira, 2000).

Pode-se dizer que tais teóricos produzem explicações unilaterais e sociocentradas, fazem revoluções em suas cabeças, como o fizeram os "jovens hegelianos". A posição desses intelectuais é semelhante à da social-democracia alemã, embora os sociais-democratas se encontrassem em uma situação muito diversa: dirigiam um partido imenso, com um grande aparato de funcionários, dirigiam sindicatos e tinham um peso político significativo nos organismos do Estado. Ou seja, os sociais-democratas alemães viviam o que supunham ser uma "sociedade alternativa" pronta para assumir o controle social quando o capitalismo entrasse em ruína. O mesmo, certamente, não ocorre com os intelectuais contemporâneos que se reivindicam marxistas.

Talvez hoje, com a "derrocada do stalinismo", com o fim do "socialismo real", com as críticas contemporâneas que se faz à social-democracia, possamos examinar as posições de Marx com maior acuidade, o que muito contribuiria ao debate sobre as condições necessárias, ainda que não suficientes, para uma melhor qualidade de vida humana. Esta requer tempo livre para que cada um possa desenvolver-se como bem entender, pois o tempo é o campo do desenvolvimento humano.

Recebido para publicação em: 29/11/00.

Aprovado para publicação em: 25/06/01.

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  • 1
    Professor de Filosofia da Educação; Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro.<
  • 2
    Deixo, aqui, de fazer uma análise do que se tem denominado "cultura", permita-me, no entanto, sugerir a leitura de Geertz (2001) sobre este assunto.
  • 3
    Na edição francesa d'
    O Capital, revista por Marx, lemos: "Il suffit de consulter les livres de Robert Owen, pour être convaincu que le système de fabrique a le premier fait germer l'éducation de l'avenir, éducation qui unira pour tous les enfants au-dessus d'un certain âge
    le travail productif avec l'instruction et la gymnastique, e cela non seulement comme méthode pour accroître la production sociale, mas comme le seule et unique méthode pour produire des
    hommes complets (Marx, 1965, p.987). Maximilien Rubel assinala que na versão alemã a expressão "hommes complets" é dita "homens plenamente desenvolvidos". Assinala também a influência de Owen e Fourier no que se refere à noção de "homem integral" que, para eles, seria antípoda ao "homem abstrato", desprovido de forças criadoras, que aparece na filosofia alemã. A qual foi criticada por Marx e Engels em
    A Ideologia Alemã (Rubel in Marx, 1965, p.1674,
    Notes et variantes, nota 1 da página 987).
  • 4
    Broué certamente está argumentando contra os que sustentam que a "baixa cultura" do proletariado alemão justifica a derrota da revolução alemã no período de 1919-1923. O tema da cultura pré-moderna do proletarido foi bastante explorado pela chamada Escola de Frankfurt, por exemplo. Para uma análise crítica desta corrente, sugiro a leitura de Slater (1978). Broué, por seu lado, acompanha as posições de Trotsky sobre a Alemanha naquele período (Trotsky, 1979).
  • 5
    Parvus, ou
    Molotov, assinou com Trotsky o primeiro documento social-democrata defendendo a tese de que a revolução social é um processo "permanente", ou o que passou a ser conhecido como "revolução permanente", criticada por Gramsci sob denominação "guerra de movimento".
  • 6
    Schutz (1872-1932), ao lado de Kurt Kerlöw-Löwenstein (morreu em 1932) e Max Adler (1873-1937), desenvolveu a proposta de "escola socialista" e a noção de "teoria socialista das atitudes", esta devida a Kerlöw-Löwenstein, que se fundamenta na noção de "homem novo" devida a Adler, todos considerando que tais noções correspondiam à de "homem completo" de Marx (Dietrich, 1976, p.114).
  • 7
    Clara Zetkin, ou Clara Eisner (1857-1933), professora de escola primária, foi secretária da secção feminina da internacional, tendo fundado e dirigido o
    Gleichkeit, periódico voltado às questões da mulher e da família.
  • 8
    Dietrich assim considera a corrente pedagógica de "educação pelo trabalho" encabeçada por A. Pabst.
  • 9
    Alexandr Bogdânov, pseudônimo de Alexander Alexandrovich Malinóvski (1873-1928), fundou o movimento "cultura proletária" que teve ampla influência na Rússia e no exterior. Um dos militantes deste movimento foi Bukarine, com o qual Gramsci teve muitas identidades políticas, até por ter participado, no início de sua carreira, do mesmo movimento na Itália. Um dos poucos estudos sobre Bogdânov é o de Jutta Scherrer (1984) e sugiro sua leitura.
  • 10
    Esta maneira de ver se encontra no "programa (de luta) escolar" defendido pela Juventude Socialista Livre da Alemanha, escrito por Edwin Hoernle (1883-1952). A sequência, porém, não deve ser atribuída àquele autor.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Maio 2009
    • Data do Fascículo
      Ago 2001

    Histórico

    • Recebido
      29 Nov 2000
    • Aceito
      25 Jun 2001
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