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O trabalho do agente comunitário de saúde: entre a dimensão técnica “universalista” e a dimensão social “comunitarista”

The work of the community healthcare agent: between the technical “universalist” dimension and the social “communitarian” dimension

DEBATES

O trabalho do agente comunitário de saúde: entre a dimensão técnica “universalista” e a dimensão social “comunitarista”

The work of the community healthcare agent: between the technical “universalist” dimension and the social “communitarian” dimension

Roberto Passos Nogueira

Pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, IPEA, e do Núcleo de Estudos de Saúde Pública da Universidade de Brasília. <nogueira@ipea.gov.br>

O agente comunitário de saúde, ACS, continua a ser o fulcro de inúmeras controvérsias que põem em discussão se suas características de recurso humano de origem comunitária marcam a continuidade do formato das políticas de saúde do passado recente ou constituem sinais de uma tendência efetiva de renovação. Representaria o ACS nada mais que uma versão atualizada do agente de saúde pública dos anos setenta, participando de um novo processo de "extensão de cobertura" à população carente por meio dos serviços básicos do SUS? Ou será ele uma figura nova e destacada no processo que podemos chamar de "extensão da solidariedade", conforme propagado pela linha de política social do Comunidade Solidária nos anos noventa? Seu trabalho deve ter objetivos estratégicos e padrões de desempenho válidos para todos os lugares, como parte de um programa nacional que visa a aumentar o alcance e a eficácia dos serviços proporcionados pelo SUS? Ou deve ser visto como a expressão ampliada da ação comunitária, com base nas capacidades de liderança e de auto-ajuda sistemática, dentro de um modelo de desenvolvimento autônomo local e cujos problemas não sejam predefinidos segundo o setorialismo típico dos programas de Estado?

Essas são as principais questões que o artigo de Silva & Dalmaso suscita e deixa sem resposta. A falta de resposta deve-se, a nosso ver, ao fato de que essa contradição entre a dimensão técnica "universalista" do trabalho do ACS e a dimensão social "comunitarista" é cultivada pelo próprio Estado e faz parte das diretrizes ditadas pelas políticas de saúde (do PACS, inicialmente, e do PSF, mais recentemente) e também da propaganda política feita pelo governo a esse respeito. A tensão entre dois paradigmas opostos de políticas de Estado acaba recaindo sobre o próprio ACS, quando este tentar cumprir o melhor possível seu papel amplamente reconhecido de servir de elo entre o sistema de saúde e a comunidade. As autoras têm razão ao dizer que o ACS suporta um "peso" excessivo de tarefas e responsabilidades, cada vez mais ampliadas, trazendo consigo múltiplas e contrapostas expectativas depositadas pelos gestores do SUS, expectativas que não podem ser correspondidas na prática e diante das quais os profissionais de desenvolvimento de recursos humanos também não sabem o que fazer. Aqui a dificuldade não decorre do fato de haver descrições discrepantes sobre essa função de ligação entre Estado e comunidade exercida pelo ACS, mas de haver visões ético-políticas muito distintas sobre como a saúde pode ser promovida nessa interface entre auto-organização comunitária e sistemas de Estado. Determinada visão tende a acentuar o potencial emancipatório das ações de solidariedade, associadas ao princípio da autonomia (no nível social local); outro tipo de visão dá ênfase à eficácia obtida pela aplicação do princípio da beneficência assistencial do Estado (no nível nacional, com ganhos de escala inegáveis).

Para a visão comunitarista, o ACS jamais poderia ser definido segundo um perfil ocupacional como ocorre com outros trabalhadores de saúde: o que ele faz depende dos problemas vividos e referidos pelas famílias, como prioridades que não emanam dos programas de Estado. Suas tarefas responderiam a essas necessidades, que podem não decorrer de metas assistenciais de governo, definidas pelo SUS, bem como, por outro lado, podem não se assemelhar às tarefas peculiares ao grupo de Enfermagem (ao qual costuma ser associado). Este comunitarismo só tem sentido quando o sistema de organização do Estado promove e defende uma descentralização radical. Idéias outras, tais como as de que o ACS precisa de um perfil técnico bem estruturado, de um preparo técnico uniforme e de um cargo nas estruturas organizacionais do Estado, reflete as exigências de um modelo oposto, que é universalista e estatista. O artigo de Silva & Dalmaso deixa claro, no entanto, que tanto para a visão comunitarista quanto para a visão estatista têm faltado abordagens e instrumentos adequados de preparação do ACS _ o que parece indicar que o Estado ainda não aprendeu a lidar com essa figura de um ponto de vista educacional, da mesma maneira como ainda não sabe que estatuto lhe conferir de um ponto de vista trabalhista.

Pode-se afirmar que, no primeiro mandato do governo FHC, a visão comunitarista obteve bastante reforço na medida em que o PACS cultivou um relacionamento estreito com o Comunidade Solidária, que se encarregava de divulgar essa interpretação dentro do governo como um todo. Mas, no segundo mandato, a ação dos ACS foi mais diretamente vinculada às iniciativas e programas de Estado e a suas prioridades nacionais, no caso, à política de reorganização dos serviços básicos de saúde do SUS e ao PSF como eixo estratégico desta organização. Não só por parte do governo federal, como também por parte de todas as correntes políticas que assumem o nível municipal de gestão, tem faltado muito empenho em destacar o caráter comunitário do envolvimento do ACS no SUS, distinguindo-o daquilo que é a missão mais ampla cumprida pelo PSF, enquanto um sub-sistema de prestação de serviços criado pelo Estado. Portanto, não poucas vezes os governantes apresentam o trabalho dos ACS como mais uma "obra de governo"...

Se analisarmos objetivamente a proposta universalmente aceita de que o ACS é um elo de ligação entre o Estado e a comunidade, resulta evidente que, de um ponto de vista filosófico e administrativo, ele não deveria ser considerado como membro da equipe do PSF _ primeiro porque não é um profissional, segundo, porque deveria manter um vínculo permanente de pertinência com a comunidade e suas organizações. Mas esta proposta está longe de receber uma expressão organizacional e política adequada de tal modo que o ACS se mistura e se confunde, na prática, com tudo o que é feito pelo PSF, pelo SUS e pelo Estado, de um modo geral. Assim, as ambigüidades e a polêmica que cercam a figura do ACS continuam e, provavelmente, ainda vão continuar por muito tempo. Com um preço que, infelizmente, é pago pelo próprio ACS.

Recebido para publicação em: 08/01/02. Aprovado para publicação em: 23/01/02.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Maio 2009
  • Data do Fascículo
    Fev 2002
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