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Apresentação

APRESENTAÇÃO

"Onde estão nossas crianças?". Era este o título de um quadro muito colorido, figurativo, que expressava uma cena do cotidiano na rua de um país da África e que em nada evocava crianças. Subitamente, o título inquietante fez sentido para o estranho mal estar que havia me tomado durante a visita aos pavilhões da última Bienal de São Paulo. É que havia uma profusão de imagens de crianças, especialmente em fotos do leste europeu (mini-modelos, pintadas e vestidas de maneira sexualizada, glamourosa e adulta). Neil Postman já havia constatado o desaparecimento da infância. Se ela surgiu a partir da invenção do livro, que trouxe a necessidade da escolarização, teve auge no século XIX e desapareceu na metade do século XX, com a invenção e a popularização da televisão, , que eliminou fronteiras entre o universo infantil e o adulto. Escândalos cada vez mais visíveis de pedofilia apontam efeitos de práticas da cultura do momento atual.

Expostos ficamos, também, ao espetáculo midiático dos aviões que atingiram as torres gêmeas em Nova York, que fomos compelidos a ver, hipnoticamente fascinados em nosso horror. Ao ver o suicídio transformado na mais nova, letal e caótica arma de guerra e destruição (que em matéria de inventividade deixa para trás a câmara de gás, o desaparecido político e o estupro de mulheres em massa) temos a sensação de que se ultrapassou uma zona até então não atingida, talvez a exposição da pura pulsão de morte à impotência de contê-la.

O suicídio é a maneira como se nega o corpo, em sua materialidade imperfeita, mortal, em nome dos ideais culturais e sociais erigidos como norma tirânica, como destino final, esperança de imortalidade descorporificada, ainda que com o sacrifício da vida prazerosa ou desprazerosa possível na habitação de um corpo mortal. Existe maior negação do corpo do que transformá-lo em pura bomba de energia detonadora do assassinato em massa, a serviço da fantasia de imortalidade, que uma vida mais além contemplaria como sendo a verdadeira vida? Na época dos clones, da criônica, o suicídio transformado em arma de guerra é um mega sintoma somático no limite daquilo que está além ou aquém do humano-inumano, pois faz desaparecer o próprio corpo, que se torna puro combustível.

Puro combustível é o que encontramos no centro do espetáculo midiático do estado de guerra dos EUA contra o Iraque. O óleo da pedra, que qual bílis negra jorra da torre fálica que o contém na ânsia maníaca de mais e mais riqueza, poder e controle, é seu único motivo real. Que importam as milhares de vítimas que perecerão, caso a guerra passe ao ato, para os donos do poder americano, talvez os mesmos que vetam a fabricação e distribuição de genéricos para o tratamento da Aids para cerca de trinta milhões de infectados na África, causando um genocídio sem precedentes, por razões puramente econômicas?

Os corpos do clone, do suicida e do congelado, o pedófilo, a guerra suscitam a imagem de uma serialidade que se torna expressão do império do mesmo. Trazem uma estranha materialidade para uma forte pulsão de morte, na sua manifestação muda pela compulsão de repetição. É a expressão da fantasia de ser único, imortal e auto-engendrado, que habita, desde os primórdios, cada um de nós. Ela é o germe daquilo que Freud chamou de fúria narcísica destrutiva, que elimina todo obstáculo outro à sua ilusão ou que compele à constituição de um supereu pedófilo, tão rígido e destrutivo como a fúria contra a qual se ergue. Em Mal estar na cultura, Freud mostrou este narcisismo como a raiz da agressividade, obstáculo contra o qual a civilização e a vida social tem que dar conta e que torna difícil pensar num humanismo natural. O homem é o lobo do homem. É este narcisismo destrutivo, que insiste constantemente que temos que nos desfazer para permitir a reinvenção da heterossexualidade, da relação com o outro, do desejo pelo outro na assunção de nosso desamparo originário e da dependência relativa do outro, sempre presente, intersubjetividade constituinte do processo de humanização. Os destinos sublimatórios desta fantasia, o ditado popular já aponta: gerar um filho, escrever um livro, plantar uma árvore. Mas isto implica uma tarefa árdua ao espírito que se quer livre: aceitar habitar um corpo mortal.

Nesse complexo panorama surge este número de Interface, tendo como eixo organizador a Ética e os Direitos Humanos, temas desdobrados em quatro vertentes:

1) O enquadre da questão geral do ponto de vista político e social.

2) Questões focais apontando seus desdobramentos em termos de direito e legislação: o abuso sexual infantil, a violência contra a mulher e o poder e as injustiças presentes na pesquisa científica.

3) A ética em ato, na complexidade das múltiplas linhas de força que atravessam os encontros, dando sua espessura (seja no encontro do médico que tem que compartilhar um difícil diagnóstico com uma gestante, na importância das representações sociais e familiares da doença mental, ou na subjetividade profissionalizante constituída nas visitas domiciliares das enfermeiras). Como diz Aragon, pela delicadeza e sutileza contrárias à rapidez asséptica e ríspida da visão tecnicista que se quer hegemônica no campo da Saúde Coletiva, pode-se ralentar o tempo para se deixar tocar pelo desconhecido e observar, interagir, encontrar a medida que permita uma singularização do contato. Ética em ato que valoriza a escuta de falas expressivas, rompendo distâncias hierárquicas ilusórias ao compartilhar afetos. É o processo de formação de conhecimento em pauta no artigo que traz à tona interessante experiência de educação preventiva entre pares e no instigante debate sobre educação a distância no ensino superior. É, ainda, na singularidade em ato, e não de maneira abstrata, que se avalia a operacionalização dos princípios de promoção de saúde em projetos de várias regiões do Brasil.

4) A ética na Medicina, no questionamento da Medicina institucionalizada, com a tecnicização do cuidado e a hiperespecialização médica. O afã de querer saber, que se torna jogo de poder, lança a maquinária médica numa intrusividade que ao invés de intervir no sofrimento apenas busca um, causando dor. Há uma iatrogênese da Medicina institucionalizada, mas, como aponta Illich, também a desmedicalização ardilosa da saúde trouxe o surgimento do fenômeno social da iatrogênese do corpo, fundada numa busca de saberes não-médicos que mudam a auto-percepção corporal. Daí a preocupação com uma melhor formação médica que diminua o distanciamento das escolas das necessidades da população.

Nos últimos anos, o clamor pela ética na sociedade brasileira é uma espécie de ponto de apoio condensando angústias e inquietações suscitadas pelas desigualdade, injustiça e miséria, que provocam perplexidade e não mais se sustentam. A recente eleição para presidente é um marco simbólico inusitado e deu visibilidade ao clamor pela ética enquanto fato social: a delicadeza da democracia emergiu, impossibilitando a tomada de posições rígidas e radicais. Ela exige o tempo do conflito, a paciência das argumentações, a consideração das diferenças. Ao situar as quatro gerações de direitos humanos, civis, políticos, sociais e relativos à natureza, Janine enfatiza a democracia como regime do desejo, do desejo na dimensão pública. Afirma que não podemos pensar a política e a sociedade apenas em função das idéias de interesse e necessidades. Reconhecer a legitimidade do desejo e todo seu caráter ambíguo, diz ele, é tão complicado como raro no pensamento político. Difícil a passagem do desejo do plano individual para o público.

A concepção da ética como atitude espiritual e intelectual talvez possa propiciar esta passagem, afastando a moral como sua sombra. A ética pressupõe uma conjunção do singular com o social de natureza totalmente diferente da moral, que guia os homens de fora para dentro, a partir da internalização das condutas, que trabalha com uma imagem abstrata e homogeneizadora do social. Já a demanda de ética pede uma resposta à questão da felicidade humana. Servo, dilacerado, infeliz, são essas as únicas formas de existência do ser humano? Essa a severinidade, de que falam as palavras e imagens do Natal Severino? Já nos dizia Espinosa, o alvo ético é um desejo interno de existir em ato, ser feliz, agir bem, viver bem, perseverando na existência, aumentando nossa potência, visando a liberdade possível ao homem. O texto visionário de Freud, Mal estar na cultura, segue a trilha das reflexões de Espinosa. Afirma uma ética ao mesmo tempo da singularidade e da pluralidade, na qual vários caminhos para a felicidade são possíveis, mas a escolha é de cada um. Com ambos podemos dizer que se trata de agendar nos códigos sociais existentes aquilo que possibilita a criação única de um viver bem e de maneira bela, de acordo com o desejo de cada um e conhecendo a razão de seus próprios atos, ainda que não de uma maneira iluminista, mas por um entendimento e intuição complexos, portanto de maneira livre. A ética como invenção singular da vida.

Assim, destaco trecho do texto de Djalma, parte do poema de Melo Neto:

"...é difícil defender só com palavras a vida... E não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente se fabrica..."

"Sem novas perguntas, sem suicídio, Morte e Vida Severina se conclui com uma louvação à vida".

Renata Udler Cromberg,

Psicanalista, filósofa, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

<renatauc@uol.com.br>

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Fev 2009
  • Data do Fascículo
    Fev 2003
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