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Inovação/construção do conhecimento

Innovation/building of knowledge

DEBATES

Inovação/construção do conhecimento

Innovation/building of knowledge

Gaudêncio Frigotto

Professor, Universidade Federal Fluminense, UFF, RJ. <gfrigotto@globo.com>

O texto de Cunha revela a acuidade de uma intelectual atenta aos dilemas e impasses de nosso tempo histórico e a compreensão de que os processos de construção do conhecimento e os processos educativos estão vinculados às práticas sociais. De imediato se situa, de forma clara, na perspectiva da não neutralidade do conhecimento e das práticas pedagógicas. Em sociedades cindidas por interesses de classe ou frações de classe, as teorias e as práticas educativas são produzidas dentro de determinadas visões de mundo e articulam ou reproduzem a manutenção da ordem estabelecida ou se afirmam na desarticulação e transformação da mesma.

O foco da análise centrado na crítica à atual tendência da "visão única", da padronização e da homogeneização abstrata da construção do conhecimento capta um dos problemas centrais da teoria social e da teoria educacional e suas conseqüências em termos de concepção pedagógica. No plano mais amplo, a visão única está vinculada à tese de Francis Fukuyama do fim da história, cuja mensagem letal é de que a única alternativa para a produção da vida humana efetiva-se sob as relações sociais capitalistas por tratar-se de uma sociedade de tipo "natural". A força desta visão única, como sinaliza Jameson (1997), é querer nos convencer que as relações capitalistas têm de ser eternas. "Parece que hoje é mais fácil imaginar a deterioração total da terra e da natureza do que o colapso do capitalismo tardio; e talvez isso possa ser atribuído à debilidade de nossa imaginação" (p.10-1). No campo educacional esta visão única se explicita pelo retorno das perspectivas pragmáticas, fragmentárias, positivistas e funcionalistas de conhecimento afirmadas na pedagogia das competências, na noção de empregabilidade e, como mostra Cunha, no processo padronizado e homogeneizante de avaliação em todos os níveis de ensino.

Partindo das instigações da autora e da sinalização de que as formas alternativas de saberes "imbricam objetividade com subjetividade, senso comum e ciência, teoria e prática, cultura e natureza" aponto alguns aspectos centrais para que as inovações e as mudanças paradigmáticas, epistemológicas e pedagógicas se desenvolvam no plano da historicidade aqui sinalizado. Cabe reconhecer que o embate de visões de mundo, concepções de conhecimento e perspectivas pedagógicas não é novo. No âmbito do modo de produção capitalista, a radicalização da visão única se explicita pelo retrocesso às visões dogmáticas e pragmáticas de conhecimento e de práticas educativas, retrocesso que se deve à radicalização da materialidade das relações capitalistas, cada vez mais violentas, geradoras de desigualdade e de exclusão. Trata-se de um capitalismo tardio, como o caracteriza Jameson (1996) ou de um "sistema capital" que esgotou sua capacidade civilizatória e, para manter-se, tem que ser profundamente mais destrutivo (Mészáros, 2002). Na teoria pedagógica a noção de competência vinculada à de empregabilidade explicita o deslocamento das relações de classe e de poder cada vez mais violentas deste capitalismo tardio e destrutivo para relações individuais.

Esta percepção nos encaminha para uma compreensão de que a mudança paradigmática, no âmbito do conhecimento e das práticas educativas, incluem, ao mesmo tempo, mudanças no plano ontológico, campo da materialidade das relações sociais, e mudanças no plano epistemológico. A inovação, neste particular, está sendo gestada no plano da contradição e não da simples antinomia ou em perspectivas voluntaristas. Parece que o grau de radicalidade das contradições do capitalismo tardio coloca em crise todos os paradigmas. Seus conceitos e categorias já não permitem dar conta da leitura da realidade. O denominado paradigma da pósmodernidade como alternativa ao dogmatismo, com ampla penetração na teoria e práticas pedagógicas, parece um atalho que, mesmo colocando questões importantes, não permite saída no plano societário e no plano das práticas pedagógicas. Por negar ou desconsiderar o plano das contradições, o conflito de classe ou frações de classe e a perspectiva histórica, dando por superado o paradigma da modernidade, pode estar reforçando as visões fragmentárias e individualistas de conhecimento e de práticas educativas. É nesta direção que Jameson (1996), provocativamente, intitula uma das suas obras de "Pós-modernismo, a cultura do capitalismo tardio"1 1 Vale ressaltar que várias questões trazidas pelo debate da pós-modernidade têm contribuição importante para a crítica da razão instrumental e do mecanicismo e dogmatismo dominantes na ciência moderna. Neste particular, como adverte Jameson (1996), a crítica à pós-modernidade não pode ser moralista e maniqueísta, mas uma postura de compreensão de seu sentido e de suas conseqüências. Para um aprofundamento desta questão ver Jameson (1997, 1994), Anderson (1999) e Harvey (1993). .

Neste horizonte de compreensão e de embate contra-hegemônico, é importante afirmar uma perspectiva de conhecimento e de práticas educativas que superem tanto a homogeneização e padronização abstratas da visão única quanto as visões que se afirmam unicamente na particularidade, na diferença e na alteridade dos sujeitos. Numa perspectiva histórica e, portanto, dialética de conhecimento e de práticas educativas, trata-se de relacionar, como aponta Cunha, objetividade/subjetividade, parte/todo, indivíduo/história ou sujeitos e estruturas sociais. O conhecimento, em todas as áreas, é entendido como um processo de construção histórica que se diferencia do conhecimento espontâneo e do senso comum e se explicita mediante categorias e conceitos. Enquanto conhecimento histórico sempre será relativo e aberto e, portanto, passível de ser reconstruído e ampliado. Para ser histórico se constrói ou é apropriado dentro da relação entre a particularidade (espaço e tempo das mediações) e um grau crescente de universalidade (historicamente construída). Esta relação historicamente construída permite superar a homogeneização abstrata que violenta as particularidades (e, portanto, a complexidade e diversidade da realidade dos sujeitos) e a atomização do real em infinitas e desconexas particularidades.

Concluindo: os sujeitos educandos (individuais e coletivos), em sua realidade complexa e diversa no plano social, cultural e geopolítico, são o ponto de partida às práticas educativas. A perspectiva não é de uma visão única e padronizada e unidimensional, mas unitária, sempre síntese do diverso. O eixo dos processos educativos e de aprendizagem será, pois, a relação entre ciência, cultura e vida, articulando e apropriando criticamente os conhecimentos socialmente construídos no patamar mais elevado do momento histórico em curso. Trata-se de reconhecer que os sujeitos educandos têm a prerrogativa de um duplo direito: de ver seus valores, conhecimentos e cultura reconhecidos e, ao mesmo tempo, de poder apropriar-se do patrimônio socialmente construído em termos de avanço científico, tecnológico e cultural. Se a escola e as práticas educativas não incorporam esse papel de transcender às realidades particulares na construção de "universalidades" históricas, relativas e sínteses do diverso, elas não têm nenhum sentido histórico e humano.

  • ANDERSON, P. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1999.
  • FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M. (Orgs.). Teoria e educação no labirinto do capital. Petrópolis: Vozes, 2002.
  • HARVEY, D. A condição pós-moderna. São Paulo, Loyola, 1993.
  • JAMESON, F. As sementes do tempo. São Paulo: Ática, 1997.
  • JAMESON, F. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996.
  • JAMESON, F. Espaço e imagem: teorias do pós-moderno e outros ensaios. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1994.
  • MÉSZÁROS, I. Para além do capital. Campinas: Ed. Unicamp/Boitempo, 2002.
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    Vale ressaltar que várias questões trazidas pelo debate da pós-modernidade têm contribuição importante para a crítica da razão instrumental e do mecanicismo e dogmatismo dominantes na ciência moderna. Neste particular, como adverte Jameson (1996), a crítica à pós-modernidade não pode ser moralista e maniqueísta, mas uma postura de compreensão de seu sentido e de suas conseqüências. Para um aprofundamento desta questão ver Jameson (1997, 1994), Anderson (1999) e Harvey (1993).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Fev 2009
    • Data do Fascículo
      Ago 2003
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