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Máquinas de sentido: processos comunicacionais em saúde

LIVROS

Inesita Soares de Araújo

Pesquisadora, Centro de Informação científica e Tecnológica, Departamento de Comunicação e Saúde, Núcleo de Ensino e Pesquisa, Fiocruz <inesita@cict.fiocruz.br>

Palavras-chave: Comunicação; saúde; mídia.

Key words: Communication; health; media.

Palabras clave: Comunicación; salud; midia.

Máquinas de sentido: processos comunicacionais em saúde

SILVA, J. O.; BORDIN, R. (Orgs.). Porto Alegre: Dacasa Editora/Escola de Gestão Social em Saúde, 2003. Série Comunicação e Saúde. vol. 2, 164 páginas.

Os muitos sentidos da comunicação e saúde

Apesar de as relações entre a comunicação e a saúde serem bastante antigas, só nos últimos quinze anos é que começaram a configurar um campo não apenas de práticas, mas de produção sistemática de conhecimentos. Na formação desse campo, os cursos de pós-graduação e os livros têm desempenhado papel relevante. "Máquinas de sentido: processos comunicacionais em saúde" encontra-se na confluência desses dois espaços: é o segundo livro de uma série que se propõe a divulgar os trabalhos de conclusão do curso de especialização em Comunicação e Saúde, da Escola de Gestão Social em Saúde da UFRGS. Neste sentido, é uma iniciativa muito bem-vinda, pois amplia o escasso número de publicações que se dedicam ao tema; assim, fortalece e legitima a própria existência do campo como produtor de conhecimentos e não só como conjunto de instrumentos a serviço da circulação de conhecimentos produzidos por terceiros.

Por outro lado, o curso é uma atividade do PROMED/OPAS/MS, o Programa de Incentivo às Mudanças Curriculares para as Escolas Médicas, o que aponta para um crescimento da importância do tema da comunicação para a formação dos profissionais da saúde.

O livro foi organizado em duas partes. Na primeira, "Discutindo conceitos", seis professores ou especialistas escrevem sobre formação histórica do campo, interesses mercadológicos, construção midiática da aids, confiança, interface educação popular / comunicação e ética. Na segunda, "Mapeando o campo", são apresentados ao leitor igual número de trabalhos de alunos, cinco dos quais são estudos sobre o tratamento conferido pela grande mídia a temas como uso de drogas, corpo feminino, maternidade adolescente, PSF e saúde. Um último texto apresenta uma experiência de produção participativa de uma cartilha sobre a Aids.

Da mesma forma que em outros processos de constituição e afirmação de um conjunto de saberes, a comunicação e saúde têm sido espaço de expressão de modos diferentes de observar, recortar, denominar, enfim, de pensar a relação entre estes campos. Assim, podemos observar hoje a formação de duas grandes tendências, marcadas predominantemente pelo lugar de onde falam seus agentes: uma que pensa e produz conhecimentos a partir do locus da saúde e outra cujo ponto de partida é a comunicação.

A primeira tende a reconhecer e localizar os processos de comunicação no contexto dos movimentos da saúde e das lutas pela consolidação do SUS; percebe a comunicação como condição para a eqüidade, a integralidade e a universalidade da saúde; considera o direito à comunicação como indissociável do direito à saúde; agenda a comunicação no rol dos requisitos indispensáveis para um efetivo controle da sociedade sobre as políticas de saúde; questiona os modelos hegemônicos centralizadores da palavra e buscam outras possibilidades. O interesse pela mídia, aqui, aparece subordinado a estes outros, sendo percebida como uma das vozes relevantes nos cenários estudados.

A segunda demarca a mídia como seu objeto preferencial: as estratégias de construção dos significados, os dispositivos de construção dos sentidos, os embates discursivos na mídia impressa, audiovisual ou eletrônica. A mídia aqui é o ator principal no cenário da saúde.

Embora as combinações entre os dois enfoques venham se tornando cada vez mais comuns, principalmente por meio da produção acadêmica de agentes da saúde que optam pelos estudos pós-graduados em comunicação, em geral as publicações e os eventos (congressos, cursos) tendem a fortalecer esta ou aquela abordagem. O livro "Máquinas de sentido" situa-se, porém, no entremeio das duas, ficando para o leitor a incumbência de estabelecer a articulação e um debate produtivo entre as vozes heterogêneas.

No seu artigo sobre "Aids e novas 'políticas de reconhecimento'", ao analisar os processos de nomeação e construção da Aids pelos meios de comunicação, Antônio Fausto Neto lembra que

a ação comunicativa se estrutura em processos complexos de reconhecimentos, que são atravessados por diferenças, negociações e estratégias multidiscursivas. A ação comunicativa é mais larga seja por que se funda em construções teóricas mais amplas do que a performance instrumental, seja porque envolve uma questão central, hoje, na problemática relacionada com a produção de sentido, que são as diversidades estruturais, de interesse, e de ordem simbólica, dos campos sociais. (p.50)

Sua observação veio no bojo de uma crítica ao reducionismo da maioria das metodologias e práticas atuais da comunicação na saúde, que ignoram a multidiscursividade social. E aí podem ser incluídas tanto as crenças e práticas difusionistas, como as abordagens que atribuem à mídia o poder absoluto de construção da realidade, sem levar em conta os múltiplos interesses em jogo e as mediações de toda ordem que se estabelecem no complexo processo de produção dos sentidos sociais.

Tal enfoque encontra ressonância, no livro, no primeiro artigo da parte I, no qual Janine Cardoso traça a trajetória histórica da articulação entre comunicação e saúde, suas estreitas ligações com o campo da educação, suas relações intrínsecas com o contexto político do país e mapeia crescentes

questionamentos e experiências que subvertem as idéias e as práticas de uma participação comunitária restrita e regulada, própria dos discursos desenvolvimentista e populista. Percebe-se que as práticas e demandas de comunicação também passam a integrar processos mais amplos que buscam democratizar relações e estruturas sociais. Geram e fortalecem demandas de políticas públicas, que requalificam esse atributo: as políticas devem ser públicas não só pelos objetivos que perseguem, mas por considerar e negociar com a pluralidade de interesses existentes na sociedade. (p.23-4)

Cardoso também fala de um redimensionamento atual da área de comunicação no âmbito do Ministério da Saúde, apontando que a educação em saúde se vê cada vez mais a braços com o "componente comunicação". Neste sentido, é interessante notar que a área de materiais educativos tem recebido crescente atenção das instâncias públicas e privadas (movimentos e ONGs, sobretudo). Tendo sido objeto de atenção em outras décadas, sobretudo a partir dos campos da agricultura e desenvolvimento, os modos de constituição da realidade por meio de impressos ditos educativos readquirem hoje importância no âmbito da saúde, processo alimentado pela compreensão que ali estão não só expressos um modo de entender e propor identidades e, portanto, de constituir relações de poder, mas também que os impressos constituem espaços de consolidação de uma abordagem da saúde que hoje não se considera mais desejável.

O último trabalho dos alunos representa bem este movimento, ao operar na interseção da educação e da comunicação em saúde e ao fazer uma crítica ao modo dominante de concepção, elaboração e uso dos materiais educativos. As autoras Margarita Diecks, Renata Pekelman e Daniela Wilhelms relatam uma experiência de produção participativa de materiais impressos sobre a prevenção das DST/Aids, com mulheres de bairros periféricos de Porto Alegre. A partir da crítica à abordagem biomédica e à concepção linear, técnica e normativa de comunicação dos materiais, elas desenvolveram uma proposta que leva em conta a complexidade da realidade local e do cotidiano popular.

Complexidade que inclui, certamente, a presença da mídia impressa e audiovisual na vida da população, mas a ela não se reduz. Cardoso afirma, em seu artigo já comentado, que na atualidade outros interesses passaram a interpelar e pressionar as práticas e estruturas de comunicação e cita a "crescente midiatização das formas de relação social". Em outro momento, menciona que o Ministério da Saúde, tendo deslocado para a educação e para a sociedade as atividades mais relacionadas com a educação popular, tende a concentrar esforços, na comunicação, em meios de largo alcance, como a TV. Desta forma, ganham relevância os "cânones, lógicas, práticas, regras, perfil profissional, cadeia produtiva etc" da publicidade e do meio televisivo. Adquirem importância estudos que busquem compreender os dispositivos de produção de sentidos das mídias, bem como o contexto mais macro que é objeto da economia política da comunicação, campo que vem crescendo rapidamente no país.

Se tivermos estes parâmetros, fica mais fácil estabelecer uma conexão e uma conversação com outros textos da parte II do livro, que apresentam análises do modo como a mídia – TV e jornais impressos – tratam temas relevantes para a saúde. Esta vertente recebe sua fundamentação teórica na parte I, pelo trabalho de José Ricardo Soethe, denominado "Media, construção de sentido e saúde", no qual discute a construção midiática de sentidos na área da saúde, a partir das categorias analíticas da agenda setting e marketing e conclui que a saúde está sim, na mída, mas atrelada a interesses mercadológicos (p.27-37).

Os outros trabalhos sobre mídia são análises de conteúdo, que remetem para medições quantitativas (freqüência, localização, fontes) ou para a inferência de valores presentes nos textos analisados. De um modo geral, a observação de Sara Feitosa, em "Quando a saúde é notícia em Veja", resume uma das principais conclusões dos trabalhos: "A saúde é notícia, essencialmente, porque há um público consumidor dessa informação" (p.138). Assim são "Corpo e saúde na revista Cláudia" (Andiara Cavagnoli e outros), que também conclui pela prática de merchandising e pela reafirmação dos padrões hegemônicos de corpo feminino; "A maternidade negada: o caso da revista capricho" (Milena Klippel e outros), que investiga como os textos na revista participam da constituição das identidades das mães adolescentes e conclui pela "inexistência de matérias e referências à maternidade na adolescência, desta forma negando a sua existência". O texto "O Programa de Saúde da Família como notícia" (Andréa Araújo e outros) verifica a presença do PSF na imprensa gaúcha e conclui que este não é agenda de interesse, uma vez que

o discurso dos jornais reflete o modelo tradicional de assistência, "o curativo", onde têm destaque notícias sobre novas tecnologias no tratamento dos males, os medicamentos, as doenças já instaladas e as mazelas no atendimento de saúde. (p.131)

Este diagnóstico se complementa com o de Sara Feitosa, quando diz que "saúde é notícia a partir da existência de um fato 'novo', 'espetacular', 'fantástico' que justifique sua publicação" (p.138).

Por fim, o texto "Hermes e Renato - as drogas na MTV" (Helena Fernandes e Carlos Amaral) utiliza o método de grupo focal com jovens para analisar a visibilidade dada ao assunto por um programa de televisão.

Se considerarmos que o objetivo do curso e do livro, segundo a apresentação dos organizadores, é dar relevo justamente à mídia e seus dispositivos de construção dos sentidos, certamente o intento foi atingido. Mas, seria interessante dialogar um pouco com a escolha do título do livro, assim como com alguns dos pressupostos teóricos mobilizados na apresentação.

"Máquinas de sentido" é uma expressão pinçada do artigo de Fausto Neto e ali encontra sua pertinência. Mas, dali extraída e se estamos justamente falando de "processos comunicacionais", de pluralidade de vozes, de sentidos que não se fecham na esfera da produção, de contextos que exercem coerções sobre as práticas midiáticas, institucionais e do cotidiano, então fica difícil entender como a metáfora "máquina" pode expressar aquilo que é jogo de relações. Máquina remete para uma relação mecânica e não para dispositivos de construção da realidade. Nesta perspectiva, o título acaba por diminuir a importância da proposta que o conjunto da obra nos apresenta.

Por outro lado, curiosamente, na apresentação os organizadores assumem uma posição teórica que no mínimo contrasta com as escolhas da primeira parte do livro: ali vamos encontrar temas como ética (Marco Antônio Azevedo), políticas públicas e modelos institucionais (Janine Cardoso, Jaqueline Silva e outros), confiança e responsabilidade social (Egon Roque Frölich), que não se coadunam com o enfoque da "modernidade líquida" defendida brilhantemente por Silva e Bordin. Eles nos falam, apoiados principalmente em Baumann e Touraine, da fluidez e constante metamorfose que caracteriza nossos tempos, dizem que os processos comunicacionais são fluidos, "não se fixam no espaço e no tempo".

Mas, se essas constatações são irrecusáveis sob o aspecto teórico, não podemos ignorar que, na prática, os conteúdos se fixam em dispositivos que encontram materialidade nos suportes discursivos, como por exemplo o jornal (não fosse por isto, a História não estaria hoje sendo construída marcadamente pelos registros midiáticos, considerados fontes históricas fidedignas). Ou nas cartilhas e diversos materiais de comunicação que o campo da saúde produz e faz circular.

Desta forma, os processos comunicacionais, por meio dos suportes materiais, sedimentam sentidos, constróem hegemonias. É pela Comunicação que as relações de poder se estabelecem, é pela comunicação que o poder simbólico é exercido, é na comunicação que as forças sociais e políticas centrípetas e centrífugas se defrontam e disputam hegemonia. É, enfim, a comunicação o espaço que nos apresenta a possibilidade e o desafio de mudar a correlação de forças, de fazer ver e fazer crer na polifonia da saúde como fator de transformação da realidade atual.

Neste sentido, nossos tempos podem ser vistos otimistamente como lugar de crítica, de resistência e de transformação. O trabalho de produção coletiva das cartilhas sobre DST/Aids é um exemplo dessa crença, esforço e possibilidade. E é também neste sentido que trabalhos que explorem temas como ética, confiança e políticas públicas encontram seu lugar.

Tomando um outro ângulo, os organizadores falam que

os princípios universais não se encontram mais nas instituições sociais e sim nos indivíduos. Esta característica tende a destacar o eixo discursivo da ética e da política para o direito de escolha dos modos de vida por parte dos indivíduos em detrimento de agendas vinculadas à questão da justiça social. (p.7)

Poderíamos dizer, embora também concordando com a análise mais macro do cenário contemporâneo, que apesar disso os princípios são ainda determinados pelas instituições e pelo lugar de interlocução dos sujeitos, que determina quem e o que pode falar, as regras de interlocução e, sobretudo, quem tem o direito de fazer circular seus discursos e ser ouvido. E aí outra pergunta se impõe: quem são os sujeitos da saúde, os atores sociais e políticos da saúde, hoje? Só a partir dessa resposta é que poderíamos, de fato, analisar em profundidade o quanto a fluidez que marca nossos tempos imprime sua marca na produção dos sentidos da saúde. Sentidos que são, sem dúvida, construídos pelo campo midiático, mas não apenas, como nos mostra Fausto Neto, ao desvelar a complexidade deste cenário e fazer ver que as mídias são poderosas, criam realidades, mas não operam no vazio, não criam sentidos apenas a partir de suas próprias lógicas.

Enfim, estamos sem dúvida falando sobre e a partir de um campo que é profundamente marcado pelas tensões entre modelos, enfoques, práticas, interesses, discursividades, vozes. O livro aqui resenhado mostra-se um bom exemplo dessas tensões e, sobretudo, consiste numa relevante e meritória iniciativa no sentido da compreensão desse campo, da qual precisamos para construir nosso presente e nosso projeto de futuro. Que venham mais cursos, que venham mais livros.

Recebido para publicação em 20/07/04.

Aprovado para publicação em 28/07/04.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Set 2008
  • Data do Fascículo
    Ago 2004
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