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Rupturas e resoluções no modelo de atenção à saúde: reflexões sobre a estratégia saúde da família com base nas categorias kuhnianas

Ruptures and resolutions in the health care model: reflections on the Family Health Strategy based on Kuhn's categories

Rupturas y resoluciones en el modelo de atención a la salud: reflexiones sobre la estrategia salud de la familia con base en las categorías kuhnianas

Resumos

O ensaio propõe uma reflexão sobre as possibilidades da Estratégia de Saúde da Família significar uma ruptura com o modelo clínico/biológico/flexneriano historicamente hegemônico na conformação das políticas de saúde do Brasil. Aborda a mudança do modelo de atenção à saúde implicada na consolidação do SUS, com foco principal em sua dimensão político-operacional, a partir de categorias propostas por Thomas Kuhn (1922-1996) acerca do desenvolvimento da ciência. Elege o modelo flexneriano e o SUS como expressões paradigmáticas exemplares para a análise do processo de transição e de crise que caracteriza o atual momento de reformulação do pensamento e das práticas em saúde. Finaliza considerando que a mudança paradigmática na saúde não se limita à Estratégia Saúde da Família, mas engloba todo o Sistema de Saúde. A explicação da realidade social do setor saúde vai além da possibilidade de aplicação das categorias estudadas.

Saúde da Família; filosofia da ciência; sistema de saúde; normas básicas de atenção à saúde


This paper reflects upon the possibilities for the Family Health Strategy to establish a rupture with the clinical/biological/Flexnerian model that has been historically hegemonic in the configuration of health policies in Brazil. It analyzes the change in the health care model implied in the consolidation of the Brazilian Unified Health System (Sistema Único de Saúde - SUS), and focuses on its political-operational dimension, based on the categories proposed by Thomas Kuhn (1922-1996) concerning the development of science. It elects the Flexnerian model and SUS as exemplar paradigmatic expressions for the analysis of the process of transition and crisis that characterizes the current moment of reformulation of health models and practices. Finally, the article considers that the paradigmatic change in health care isn't limited to the Family Health Strategy, but encompasses the entire Health Care System. The knowledge of the health sector's social dimensions goes beyond the use of the categories studied.

Family health; science philosophy; health system; basic standards for health care


El artículo propone una reflexión sobre las posibilidades de la Estrategia de Salud de la Familia de significar una ruptura con el modelo clínico/biológico/flexneriano hegemónico históricamente en la conformación de la política de salud de Brasil. Aborda el cambio del modelo de atención a la salud implicada en la consolidación del SUS, con el enfoque principal en su dimensión político-operacional, según las categorías propuestas por Thomas Kuhn (1922-1996) acerca del desarrollo de la ciencia. Son escogidos el modelo flexneriano y el SUS como las expresiones paradigmáticas ejemplares para el análisis del proceso de transición y de crisis que caracteriza el momento actual de reformulación del pensamiento y de las prácticas en la salud. Finaliza considerando que el cambio paradigmático en la salud no se limita a la Estrategia Salud de la Familia, sino que engloba todo el Sistema de Salud. La explicación de la realidad social del sector de la salud va más allá de la posibilidad de aplicación de las categorías estudiadas.

Salud de la Familia; filosofía de la ciencia; sistemas de salud; normas basicas de atención a la salud


DOSSIÊ

Rupturas e resoluções no modelo de atenção à saúde: reflexões sobre a estratégia saúde da família com base nas categorias kuhnianas

Ruptures and resolutions in the health care model: reflections on the Family Health Strategy based on Kuhn's categories

Rupturas y resoluciones en el modelo de atención a la salud: reflexiones sobre la estrategia salud de la familia con base en las categorías kuhnianas

Magda Duarte dos Anjos SchererI,1 1 Rua Desembargador Pedro Silva, 2630 BL C, apto. 21 Florianópolis, SC 88080-701 ; Selma Regina Andrade MarinoII; Flávia Regina Souza RamosIII

IPrograma de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Federal de Santa Catarina; bolsista do CNPq. <magscherer@hotmail.com>

IIPrograma de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Federal de Santa Catarina. <selma@big.univali.br>

IIIDepartamento de Enfermagem, Universidade Federal de Santa Catarina.<flaregina@brturbo.com>

RESUMO

O ensaio propõe uma reflexão sobre as possibilidades da Estratégia de Saúde da Família significar uma ruptura com o modelo clínico/biológico/flexneriano historicamente hegemônico na conformação das políticas de saúde do Brasil. Aborda a mudança do modelo de atenção à saúde implicada na consolidação do SUS, com foco principal em sua dimensão político-operacional, a partir de categorias propostas por Thomas Kuhn (1922-1996) acerca do desenvolvimento da ciência. Elege o modelo flexneriano e o SUS como expressões paradigmáticas exemplares para a análise do processo de transição e de crise que caracteriza o atual momento de reformulação do pensamento e das práticas em saúde. Finaliza considerando que a mudança paradigmática na saúde não se limita à Estratégia Saúde da Família, mas engloba todo o Sistema de Saúde. A explicação da realidade social do setor saúde vai além da possibilidade de aplicação das categorias estudadas.

Palavras-chave: Saúde da Família; filosofia da ciência; sistema de saúde; normas básicas de atenção à saúde.

ABSTRACT

This paper reflects upon the possibilities for the Family Health Strategy to establish a rupture with the clinical/biological/Flexnerian model that has been historically hegemonic in the configuration of health policies in Brazil. It analyzes the change in the health care model implied in the consolidation of the Brazilian Unified Health System (Sistema Único de Saúde - SUS), and focuses on its political-operational dimension, based on the categories proposed by Thomas Kuhn (1922-1996) concerning the development of science. It elects the Flexnerian model and SUS as exemplar paradigmatic expressions for the analysis of the process of transition and crisis that characterizes the current moment of reformulation of health models and practices. Finally, the article considers that the paradigmatic change in health care isn't limited to the Family Health Strategy, but encompasses the entire Health Care System. The knowledge of the health sector's social dimensions goes beyond the use of the categories studied.

Key words: Family health; science philosophy; health system; basic standards for health care.

RESUMEN

El artículo propone una reflexión sobre las posibilidades de la Estrategia de Salud de la Familia de significar una ruptura con el modelo clínico/biológico/flexneriano hegemónico históricamente en la conformación de la política de salud de Brasil. Aborda el cambio del modelo de atención a la salud implicada en la consolidación del SUS, con el enfoque principal en su dimensión político-operacional, según las categorías propuestas por Thomas Kuhn (1922-1996) acerca del desarrollo de la ciencia. Son escogidos el modelo flexneriano y el SUS como las expresiones paradigmáticas ejemplares para el análisis del proceso de transición y de crisis que caracteriza el momento actual de reformulación del pensamiento y de las prácticas en la salud. Finaliza considerando que el cambio paradigmático en la salud no se limita a la Estrategia Salud de la Familia, sino que engloba todo el Sistema de Salud. La explicación de la realidad social del sector de la salud va más allá de la posibilidad de aplicación de las categorías estudiadas.

Palavras clave: Salud de la Familia; filosofía de la ciencia; sistemas de salud; normas basicas de atención a la salud.

Por que propor tal reflexão?

A Saúde está em crise. Esta poderia ser apenas mais uma frase solta, de efeito moral, sem criatividade, já tantas vezes repetida no campo do debate sanitário, se crise não representasse uma "pré-condição necessária para a emergência de novas teorias" (Kuhn, 2001, p.107). O significado das crises no processo das revoluções científicas, descrito por Kuhn (2001), consiste no fato de que estas indicam a necessidade de renovar os instrumentos, ou seja, de produzir novos instrumentos, alternativos aos existentes, capazes de resolver os problemas, aparentemente sem respostas até então oferecidas pelo modelo teórico vigente. A superação da crise estrutural sanitária exige mudança substantiva no modelo médico, o que implica um novo sistema, mudanças políticas, culturais e cognitivo-tecnológicas (Mendes, 1996).

No caso do setor de saúde brasileiro, o modelo legalmente instituído e praticado até 1988 estava estabelecido na Lei 6.229/75, criando dicotomias entre curativo e preventivo, individual e coletivo, por meio de práticas assistenciais fortemente centradas em hospitais, restritas aos contribuintes previdenciários. Esta concepção de modelo de atenção à saúde seguia, em parte, a herança do pensamento médico ocidental do século XVIII, descrito por Foucault (1999), fundado no desenvolvimento da clínica e no surgimento do hospital, como forma de compreender a doença a partir da disfunção de seus elementos orgânicos e como espaço privilegiado de intervenção e sistematização de um saber sobre esta doença. De outra parte, as influências da Escola Norte-Americana, via modelo flexneriano, fundamentado na especialização da medicina orientada ao indivíduo, tiveram profundas repercussões não só na formação médica, mas, sobretudo na estrutura organizacional e funcional do sistema público de saúde.

A história recente da Saúde Pública brasileira tem sido descrita com o movimento da reforma sanitária, cujo marco fundamental foi a VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986. Nela foram deliberados os princípios e diretrizes incorporados na Política Nacional de Saúde, aprovados na Constituição de 1988. Demarca-se, legalmente, um novo modelo de atenção à saúde, em substituição ao existente.

Modelo de atenção à saúde, segundo Paim (1999), é a forma de organização das relações entre sujeitos (profissionais de saúde e usuários) mediadas por tecnologia (materiais e não materiais) utilizadas no processo de trabalho em saúde, cujo propósito é intervir sobre problemas (danos e riscos) e necessidades sociais de saúde historicamente definidas. O atual modelo de atenção à saúde inclui elementos de diferentes modelos, ao propor ações de promoção, proteção, recuperação e reabilitação, tanto ao indivíduo, quanto à família e comunidade, por meio de serviços assistenciais (ambulatoriais, hospitalares e de apoio diagnóstico), quanto de vigilância em saúde (ambiental, epidemiológica e sanitária).

A adoção de novos pressupostos e métodos, compartilhados por membros de uma comunidade, para a resolução de problemas, implica uma mudança paradigmática. Nos diversos campos da investigação científica, abordagens alternativas indicam uma clara insatisfação com o paradigma dominante. O campo científico da saúde, segundo Paim & Almeida Filho (2000, p.26), "também passa por uma crise epistemológica, teórica e metodológica, isto é, uma crise paradigmática". O conceito de paradigma é particularmente importante para compreender, não apenas a ciência, mas a própria vida em sociedade. Na análise do desenvolvimento científico, paradigmas correspondem às "realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência" (Kuhn, 2001, p.13).

Paim & Almeida Filho (2000) argumentam que o paradigma dominante no campo científico da saúde fundamenta-se em uma série de pressupostos oriundos do positivismo. Neste paradigma, a realidade é que determina o conhecimento e

opera como se todos os entes constituíssem mecanismos ou organismos, sistemas com determinações fixas, condicionados pela própria posição dos seus elementos. Esta visão ainda é adotada na saúde, em especial na clínica médica, cuja aplicação é individualizada. (Paim & Almeida Filho, 2000, p. 24)

A conotação do termo paradigma no sentido de movimento ideológico, que se tem apresentado no campo da saúde, corresponde a um "conjunto de noções, pressupostos e crenças, relativamente compartilhados por um determinado segmento de sujeitos sociais, que serve de referencial para a ação" (Paim & Almeida Filho, 2000, p.30), dentre os quais são identificados, por exemplo, os modelos flexneriano, da medicina preventiva, da saúde comunitária, da saúde coletiva e da promoção da saúde, sendo que os quatro últimos opõem-se em seus princípios ao primeiro e que, em certa medida, estão incluídos no Sistema Único de Saúde – SUS, compreendido como atual modelo de atenção à saúde legalmente instituído no país. Outras denominações vêm sendo propostas para essa mudança paradigmática, tal como produção social da saúde (Mendes, 1996); vigilância à saúde (Mendes, 1993); campo de saúde (Dever, 1998), promoção da saúde (Ferraz, 1994), Saúde Coletiva (Paim & Almeida Filho, 2000).

O SUS, fruto de um processo de longo debate e de lutas por melhores condições de saúde, surge como um novo paradigma na atenção à saúde, cujos princípios e diretrizes rompem com o paradigma clínico flexneriano, porém cria a necessidade de imprimir uma nova forma de produzir e distribuir as ações e serviços de saúde, ou seja, de configurar e definir este novo modelo de atenção em saúde.

Segundo Mendes (1993), a mudança no modelo de atenção à saúde delimita o processo de construção do SUS em, pelo menos, três dimensões ou espaços de transformação: político-jurídico, político-institucional e político-operacional. As duas primeiras dimensões dizem respeito ao conjunto de regras básicas de ordenação e funcionamento do sistema, contemplando a doutrina, os princípios e as diretrizes do sistema, além de direitos, deveres e responsabilidades do cidadão, da sociedade e do Estado (Castro & Westphal, 2001). Na primeira dimensão pode-se afirmar que a criação do SUS já constitui um novo paradigma e, na segunda, observa-se um grande avanço na transformação dos meios e estruturas, consubstanciado na descentralização da gestão e na definição das competências e atribuições para os Estados e municípios. Embora sejam consideradas condição necessária para o funcionamento do sistema de saúde, as dimensões político-jurídico e político-institucional não são suficientes para garantir a mudança paradigmática.

A dimensão político-operacional diz respeito a

existência de serviços de saúde, públicos e privados, ambulatoriais, hospitalares e de apoio diagnóstico e à forma de produção e distribuição destes serviços, numa relação direta e de reciprocidade com uma dada população definida, em termos de suas necessidades, problemas e demandas de atenção à saúde. (Castro & Westphal, 2001, p.93)

É nesta dimensão que se encontra o maior desafio: implementar novas práticas de atenção à saúde que de fato garantam à população o acesso universal, a integralidade e a eqüidade, numa rede hierarquizada de serviços resolutivos.

Como uma possível resposta ao desafio de reorientar o modelo de atenção no espaço político-operacional, o Ministério da Saúde lançou, em 1994, o Programa de Saúde da Família – PSF, que em 1998 passa a ser chamado de Estratégia de Saúde da Família, por ser considerado estratégia estruturante dos sistemas municipais de saúde.

Nesse contexto, e tendo como foco principal a dimensão político-operacional do SUS, este ensaio apresenta, como motivação ao debate, o seguinte questionamento: as diretrizes da Estratégia de Saúde da Família significam ruptura com o modelo clínico/biológico/flexneriano? A reflexão tem o objetivo de apresentar algumas considerações sobre esta questão, formuladas a partir das categorias propostas por Thomas Kuhn (1922-1996) acerca do desenvolvimento da ciência, descritas no livro A Estrutura das Revoluções Científicas (Kuhn, 2001). A tematização é desenvolvida em três tópicos, sendo o primeiro relativo aos elementos constituintes dos modelos de atenção à saúde (flexneriano e SUS), o segundo sobre a Estratégia de Saúde da Família e, por fim, o PSF à luz das categorias kuhnianas, procurando destacar sua possibilidade de provocar ruptura e/ou resolução (mudança) do modelo de atenção à saúde, no plano político-operacional do sistema.

Elementos do modelo flexneriano e os princípios do Sistema Único de Saúde

Paim & Almeida Filho (2000) afirmam que as modificações do panorama político e social do mundo e da situação de saúde, principalmente a falta de mudanças esperadas, põem em xeque as premissas e previsões de antigos modelos, em especial do clínico/biológico/flexneriano. Argumentam que talvez a lacuna para as mudanças esteja localizada em nível mais profundo, não apenas dos modelos, mas também do paradigma científico que fundamenta esse campo de prática social e técnica.

Até a Constituição de 1988, quando, por força legal, foi prescrito o novo modelo denominado Sistema Único de Saúde, o modelo clínico/biológico/ flexneriano era adotado oficialmente como paradigma da saúde. Este modelo consolidou-se em virtude das recomendações apontadas por Abraham Flexner (1866-1959) em relatório encomendado pela Fundação Carnegie dos Estados Unidos, em 1910 (Novaes, 1990), cujas conclusões tiveram amplo impacto na formação médica em quase todo continente americano.

O modelo flexneriano, baseado num paradigma fundamentalmente biológico e quase mecanicista para a interpretação dos fenômenos vitais, gerou, entre outras coisas, o culto à doença e não à saúde, e a devoção à tecnologia, sob a presunção ilusória de que seria o centro de atividade científica e de assistência à saúde.

A evolução do conceito de saúde influenciou e continua influenciando a forma como a comunidade científica incorpora o paradigma da saúde, num processo de reconstrução, tanto por força das inovações científicas, quanto dos métodos e das práticas sanitárias. "O paradigma flexneriano é coerente com o conceito de saúde como ausência de doença e constitui uma âncora que permite sustentar a prática sanitária da atenção médica" (Mendes, 1996, p.239).

A formação médica e o modelo de assistência em proposição neste modelo revelava diversas influências (Mendes, 1996; Novaes, 1990), como o mecanicismo, o biologismo, o individualismo, a especialização e o curativismo. O mecanicismo tomou o corpo humano em analogia a uma máquina, cujas estrutura e funções pudessem ser meticulosamente analisadas e tratadas de modo instrumental, isolando-se a parte adoecida do resto do corpo. O biologismo ocultou a causalidade social da doença ao reconhecer a natureza biológica de suas causas e conseqüências, dada a ênfase na microbiologia e nas teorias dos germes e da história natural das doenças. O individualismo constituiu o objeto individual da saúde, ao considerar o paciente como abstração à parte da coletividade e, portanto, excluído de todos os demais aspectos sociais da vida. Associada ao individualismo, a especialização impôs a parcialização abstrata do objeto global, cuja preocupação dirigia-se principalmente para a excelência técnica de especialidades clínicas orientadas ao indivíduo, além da tecnificação do ato médico, que estruturou a engenharia biomédica, mediadora da ação entre profissional de saúde e paciente. Finalmente, o curativismo, que centrou a prática sanitária, em todos os seus níveis, nos aspectos curativos, prestigiando o processo fisiopatológico, em detrimento da(s) causa(s) geradoras do processo.

O modelo de atenção à saúde no Brasil tem sido historicamente marcado pela predominância da assistência médica curativa e individual e pelo entendimento de saúde como ausência de doença, princípios definidores do modelo flexneriano. O rompimento deste paradigma veio com o ordenamento jurídico-institucional de criação e implantação do SUS, uma vez que o modelo clínico/flexneriano não respondia aos problemas da organização das ações e serviços de saúde de maneira a atender às necessidades de saúde da população. Ao mesmo tempo novos princípios emergiam da sociedade como apelo à sedimentação do conceito de saúde como condição de cidadania. Convém assinalar que princípios são os mandamentos básicos e fundamentais nos quais se alicerça uma ciência, isto é, são as diretrizes que orientam uma ciência e dão subsídios à aplicação de suas normas. Os princípios são considerados como normas hierarquicamente superiores às demais normas que regem uma ciência.

Neste sentido, são incorporados, além de princípios de organização do sistema (descentralização, regionalização, hierarquização, resolubilidade e complementaridade do setor privado), os princípios doutrinários de universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; de integralidade da assistência, entendida como um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; de eqüidade na assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie; e de participação da comunidade (Brasil, 1990).

O Programa de Saúde da Família: mudança "no ou do" modelo assistencial?

A política do Ministério da Saúde (MS) tem se pautado por três grandes eixos que constituem os pilares do Sistema Único de Saúde: no plano administrativo, a descentralização, no plano assistencial, os Programas de Saúde da Família e de Agentes Comunitários e no plano político, o controle social.

A ênfase na implantação do Programa de Saúde da Família – PSF – é justificada pela necessidade de substituição do modelo assistencial historicamente centrado na doença e no cuidado médico individualizado por um novo modelo sintonizado com os princípios da universalidade, eqüidade e integralidade da atenção. O indivíduo deixaria de ser visto de forma fragmentada, isolado do seu contexto familiar, social e de seus valores e seria possível o desenvolvimento de novas "ações humanizadas, tecnicamente competentes, intersetorialmente articuladas e socialmente apropriadas" (Brasil, 2000, p.9).

O Programa Saúde da Família foi criado na década de 1990, inspirado em experiências advindas de outros países, cuja Saúde Pública alcançou níveis de qualidade com o investimento na promoção da saúde e prevenção de doenças, tais como Cuba, Inglaterra e Canadá, sendo precedido pela criação do PAS - Programa Agentes de Saúde (Ceará-1987) e PACS - Programa Agentes Comunitários de Saúde (Brasil-1991).

Os princípios que norteiam o PSF são originários de propostas de diferentes grupos e articulações, tais como a Medicina Comunitária, as Ações Primárias de Saúde e os Sistemas Locais de Saúde – SILOS. O que parece diferenciá-lo é sua inserção no escopo das políticas públicas de saúde, fazendo com que seus princípios sejam assumidos, pelo menos no discurso, por praticamente todos os gestores do país.

O PSF incorpora e reafirma os princípios do SUS. Além disso, tem como princípios básicos ser substitutivo do modelo bio-médico hegemônico, trabalhar em equipe multiprofissional, com território definido e adscrição da clientela e realizar a vigilância à saúde. Segundo o MS, o PSF prioriza as ações de proteção e promoção à saúde dos indivíduos e da família, tanto adultos, quanto crianças, sadios ou doentes, de forma integral e contínua.

Constitui atribuição das equipes do PSF o conhecimento da realidade, a identificação de problemas de sua área de abrangência e a elaboração do planejamento local. A execução das ações segue a lógica da vigilância à saúde e da valorização da relação com o usuário e a família. Espera-se a prestação de assistência integral – completa e contínua em todas as fases de vida de um indivíduo, no seu contexto de vida e que apenas 15% dos casos sejam referenciados em nível de maior complexidade. Cada equipe é responsável por até 3500 pessoas no seu território. Os profissionais devem promover atividades educativas de grupo, ações intersetoriais e parcerias para enfrentamento dos problemas, além de incentivar e participar da organização dos Conselhos de Saúde. O debate entre a equipe e desta com a população, em torno do conceito de saúde, cidadania e as bases jurídico-legais que legitimam o direito à saúde deve ser permanente.

Os documentos do MS têm abordado o PSF como uma estratégia estruturante dos sistemas municipais de saúde, com potencial para provocar importante reordenamento do modelo de atenção vigente. Nesse sentido, a operacionalização da estratégia de saúde da família não se coloca como uma tarefa simples, o que sugere a necessidade de compor uma equipe com capacidade de articular as diversas políticas sociais e recursos, de maneira a contribuir para a identificação das causalidades e das multiplicidade de fatores que incidem na qualidade de vida da população, bem como em relação à democratização do acesso e universalização dos serviços de saúde. Para as novas ações pressupõem-se mudanças nas abordagens do indivíduo, da família e da comunidade. Vale ressaltar que o termo comunidade tem sido muito utilizado, mas seu sentido não é muito preciso. Comunidade transmite a idéia de um local onde as pessoas vivem em condições homogêneas, mascarando as contradições entre os diferentes grupos sociais existentes em um determinado território. Entretanto, isso não significa que esta tenha sido a intenção dos formuladores da política de saúde.

Mudar o modelo assistencial curativo, centrado na figura do médico, requer fundamentalmente interferir nos microprocessos do trabalho em saúde, nas concepções deste mesmo trabalho e construir novas relações entre usuários e profissionais e destes entre si, na tentativa de transformá-los em sujeitos, ambos produtores do cuidado em saúde (Franco & Merhy, 1999). O entendimento de que o processo saúde–doença não tem uma dimensão apenas biológica torna necessário o desenvolvimento de ações intersetoriais e interdisciplinares na atenção básica. O desenvolvimento do aprendizado e da prática multiprofissional é um elemento estratégico para a construção de novos paradigmas na educação e na prática de saúde (Feuerwerker & Marsiglia, 1996).

Considerações sobre o PSF à luz das categorias Kuhnianas

A escolha por realizar a análise proposta com base nas categorias delimitadas por Kuhn (2001) pareceu, em princípio, adequada devido à compreensão de que se trata de uma concepção bastante produtiva na análise de paradigmas, que amplia idéias até então produzidas acerca de paradigmas como conjuntos de teorias, instrumentos, conceitos e métodos de investigação. Inicialmente, pensou-se no próprio PSF como possibilidade de mudança paradigmática, uma vez que havia indicações para considerá-lo o condutor na reorientação do modelo de atenção à saúde. No entanto, aprofundando a discussão entre as prováveis ligações entre as categorias kuhnianas e as diretrizes do PSF, que sempre serão relativas e aproximativas, o próprio PSF passou a ser evidenciado como uma dimensão operacional do modelo de saúde vigente – o Sistema Único de Saúde (SUS), este sim uma proposta de paradigma nesta área, que tenta romper com o modelo hegemônico.

Na obra A Estrutura das Revoluções Científicas, Kuhn (2001) tem como objetivo principal delinear um conceito de ciência distinto do advindo do estudo de realizações científicas acabadas, tais como estão registradas nos clássicos e nos manuais, que cada geração utiliza para aprender seu ofício. Para ele, a ciência não se desenvolve por acumulação de descobertas e invenções individuais e o conhecimento científico não cresce de modo cumulativo e contínuo. A ciência para Kuhn se desenvolve por meio de saltos qualitativos, processando-se em duas fases: a fase da ciência normal e a fase da ciência extraordinária ou revolucionária. A competição entre segmentos da comunidade científica seria o único processo histórico que resultaria na rejeição de uma teoria ou na adoção de outra. A validação do conhecimento seria dada pela própria comunidade científica.

Convém destacar que a visão kuhniana privilegia as ciências naturais por reconhecer o caráter pré-paradigmático das ciências sociais, atribuído ao fato de não haver ainda consenso paradigmático entre estas (Paim & Almeida Filho, 2000). Esta concepção é criticada por Santos (1995, p.43) que considera que

o avanço das ciências naturais e a reflexão epistemológica que ele tem suscitado tem vindo a mostrar que os obstáculos ao conhecimento científico da sociedade e da cultura são de fato condições do conhecimento em geral, tanto científico-social como científico-natural.

Na ciência moderna o conhecimento é fragmentado e disciplinado, ou seja, "segrega uma organização do saber orientada para policiar as fronteiras entre as disciplinas e reprimir os que a quiserem transpor" (Santos, 1995, p.46). Diz o autor que estes problemas são reconhecidos hoje, mas as soluções propostas acabam por reproduzi-los de outra forma, utilizando como exemplo o médico generalista, "cuja ressurreição visou compensar a hiper-especialização médica, [correndo] o risco de ser convertido num especialista ao lado dos demais" (Santos, 1995, p.47). A questão verdadeiramente ambígua e problemática reside no caráter limitante de um paradigma dominante, ao constranger o conhecimento em suas demarcações.

Esta visão de limite pode ser complementada por Paim & Almeida Filho (2000), quando entendem que a característica mais definidora do chamado novo paradigma talvez seja a noção de não-linearidade, no sentido de rejeição da doutrina do causalismo simples também presente na abordagem convencional da ciência. Um problema teórico fundamental das diversas perspectivas paradigmáticas alternativas consiste na possibilidade de pensar que a realidade concreta se estrutura de modo descontínuo o que, portanto, exige admitir os próprios limites das concepções que se propõem a pensar este real.

Com base nessas reflexões e na relativização do próprio exercício de tematização, este trabalho buscou discutir as diretrizes da Estratégia de Saúde da Família e seu potencial de ruptura com o modelo clínico/biológico/flexneriano. Como ponto de partida, e em analogia ao descrito por Paim & Almeida Filho (2000) sobre Saúde Coletiva, buscou-se entender o SUS inserido em um campo científico e em um âmbito de práticas, nos quais se produzem saberes e conhecimentos acerca do objeto saúde e operam distintas disciplinas que o contempla sob vários ângulos e, também, onde se realizam ações em diferentes organizações e instituições por diversos agentes, especializados ou não, dentro e fora de espaço convencionalmente reconhecido como setor saúde.

Categorias Kuhnianas e princípios/diretrizes do PSF

Comunidade científica, um conceito central na obra de Kuhn, é formada pelos praticantes de uma especialidade científica, com formação similar, objetivos comuns e soluções coletivas, que compartilham um mesmo paradigma. Uma comunidade científica caracteriza-se pela prática de uma especialidade científica, por uma formação teórica comum, pela circulação abundante de informação no interior do grupo e pela unanimidade de juízo em assuntos profissionais.

A comunidade científica para mudança do modelo assistencial pode ser identificada nos grupos de gestores, na academia, na equipe multiprofissional, nos representantes de diferentes segmentos sociais que participam dos mesmos fóruns de decisão e de debates para consolidação do Sistema de Saúde, o que relativiza a própria idéia de Kuhn, ao tratar de grupos de experts dedicados ao desenvolvimento de áreas científicas tradicionais.

Paradigmas são as "realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência" (Kuhn, 2001, p.13). O paradigma é, neste sentido, uma concepção de mundo que, pressupondo um modo de ver e de praticar, compreende um conjunto de teorias, instrumentos, conceitos e métodos de investigação. A aquisição de um paradigma e do tipo de pesquisa mais esotérico que ele permite é considerado por Kuhn um sinal de maturidade da ciência.

O sentido de paradigma pode ser empregado relativamente ao PSF quando referido ao desenvolvimento teórico e de novas práticas sanitárias (vigilância em saúde, promoção da saúde, cidades saudáveis), que articulam ensino e serviço, a exemplo da criação de Pólos Educação Permanente para o SUS, das residências e cursos de pós-graduação latu e strictu senso em Saúde da Família e da efetivação de Conselhos Locais de Saúde impulsionados pelas equipes do PSF. A Estratégia Saúde da Família se propõe a dar conta da assistência individual e coletiva, com ações abrangentes, desde a promoção e prevenção até recuperação e reabilitação, cujas atividades são desempenhadas por equipe multiprofissional e não centrada apenas no médico. Antes de se tratar de realizações científicas universalmente reconhecidas, pode ser entendido como uma formulação que indica problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes.

O período em que predomina um paradigma é o da prática da ciência normal, que consiste na atualização das respostas aos problemas, obtida por meio da ampliação do "conhecimento daqueles fatos que o paradigma apresenta como particularmente relevantes, aumentando-se a correlação entre esses fatos e as predições do paradigma" (Kuhn, 2001, p.44). Articula-se ainda mais o paradigma, num processo chamado por Kuhn de operações de limpeza, que para ele é no que consiste a ciência normal. Nesta, os cientistas sabem de antemão os objetivos e que estes podem ser alcançados segundo determinadas regras, o que faz com que a ciência normal seja comparada à solução de complexos quebra-cabeças.

O SUS não se configura como uma prática de ciência normal, primeiramente porque se constitui no embricamento de conhecimentos científicos e práticas sociais e políticas, não podendo ser reduzido apenas à dimensão das teorias cientificas que traduz e aplica e, também, porque se situa num contexto de conflito entre diferentes posições paradigmáticas, perante o qual busca alcançar credibilidade e hegemonia. O modelo flexneriano, mesmo que perturbado em sua hegemonia, ainda orienta a prática do que, por aproximação, poderíamos chamar de ciência normal, ou paradigma dominante. A cultura das instituições setoriais e da sociedade, a formação dos profissionais e o processo de trabalho, entre outros, continuam reforçando as práticas do modelo flexneriano. Os saberes e as práticas destes dois modelos, desenvolvidos no mesmo espaço e tempo, encontram-se em forte confronto.

O modelo SUS em implantação, no qual o PSF constitui a dimensão operacional, pode ser entendido como o paradigma revolucionário, porque traz respostas aos problemas não solucionados pelo paradigma dominante e reorienta as pesquisas sobre os problemas.

No desenvolvimento da ciência normal ocorrem momentos em que o paradigma não responde aos problemas postos, ocorrendo anomalias, as falhas ou contra-exemplos do paradigma, que podem levar a uma crise. Kuhn reconhece que a existência de anomalias ou problemas é comum, ou seja, não é pela simples existência de uma anomalia que se instala uma crise. Somente sob determinadas condições as anomalias conseguem destruir a confiança dos cientistas no seu paradigma. Para que uma anomalia provoque uma crise, ela deve ser séria e representar grave ameaça aos fundamentos de um paradigma, pela resistência a todas as tentativas empreendidas pela comunidade científica para removê-la.

O paradigma flexneriano não responde à complexidade do processo saúde-doença, revelando problemas conceituais e estruturais de difícil solução e comprometendo a confiança da comunidade científica, aqui pensada a partir de diferentes atores sociais. Uma vez que o modelo flexneriano está centrado no indivíduo e com enfoque na cura, as decisões e condução do processo são exercidas quase exclusivamente por uma única categoria profissional, reificando-a, a despeito de princípios e valores universalmente assimilados no mundo ocidental, como os da integralidade e da eqüidade.

O período de crise, caracterizado pela transição de um paradigma a outro, pode ser bastante longo e leva à perda da confiança no paradigma anteriormente compartilhado. A seriedade de uma crise aprofunda-se quando surge um paradigma rival, muito diferente ou mesmo incompatível com o anterior. A transição de um paradigma para outro não é um processo cumulativo, mas uma reconstrução do campo de investigação a partir de novos fundamentos. A falta de confiança no paradigma vigente manifesta-se nas discussões filosóficas sobre fundamentos e métodos a que recorrem os cientistas sendo, porém, quase um diálogo de surdos, já que existe incompatibilidade de paradigmas, denominados por Kuhn de paradigmas incomensuráveis. Caracterizam visões radicalmente diferentes do mundo, o que torna impossível uma solução de compromisso, na tentativa de tornar compatíveis os dois paradigmas. Não só as descobertas de anomalias, mas as teorias que procuram explicar o mesmo fenômeno sob diferentes óticas geram esta instabilidade, que pode ser tratada como uma crise no modelo científico.

Esta pode ser resolvida de três maneiras: a ciência normal resolve o problema; o problema é arquivado; emerge um novo paradigma e se inicia uma batalha pela sua aceitação.

A frase inicial deste trabalho – "A saúde está em crise" - descreve a categoria na qual se encontra atualmente o modelo assistencial e as respectivas estratégias de consolidação, incluindo o PSF. A necessidade no momento é de renovar e produzir novos instrumentos, alternativos aos existentes, capazes de resolver os problemas de saúde da população brasileira, aparentemente sem respostas suficientes pelo modelo biomédico flexneriano. Cabe, no entanto, reconhecer que ao se eleger o modelo clínico-flexneriano e o SUS como expressões paradigmáticas exemplares (e não exclusivas de tudo que poderia ser indicativo desta crise), não se desprezam as bases que estes foram buscar em ciências básicas, estas sim consolidadas historicamente como teorias científicas ou ciência normal. Desta forma, a crise do modelo flexneriano (que é biologicista) não significa, de modo linear, crise de igual teor na ciência biológica, mas de como certas pretensões de uso e amplitude de teorias biológicas passam a ser contestadas quando constituem justificativas científicas para as formas de conceber e intervir sobre a doença. Do mesmo modo, quando o SUS denuncia as falhas do modelo flexneriano e propõe novos modos de conceber os problemas e buscar soluções, não invalida o conhecimento da biologia ou substitui as atuais teorias sobre os fenômenos biológicos, mas aponta os limites explicativos dessas teorias e sua insuficiência quando tomadas como base capaz de organizar as respostas que se pretende dar aos fenômenos em sua expressão mais social. Semelhante raciocínio pode ser aplicado aos diferentes fundamentos do modelo flexneriano (especialização, curativismo, entre outros), ao qual o SUS se coloca como crítica revolucionária e alternativa para a criação de novas concepções, abordagens e estratégias.

Apesar do PSF se propor a substituir o atual modelo, verifica-se uma grande lacuna na implantação deste programa na totalidade dos municípios brasileiros. Seu alcance ainda é limitado, o que parece tornar frágil sua própria existência. Em pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2002) em vários Estados brasileiros, foi avaliada a implantação das equipes, a infra-estrutura das unidades de saúde, o processo de trabalho, o acesso aos serviços e os procedimentos de referência e a situação dos recursos humanos. Tomando como exemplo o caso de Santa Catarina, alguns problemas identificados foram: cerca de 40% dos médicos e enfermeiras são contratados temporariamente ou como prestadores de serviços; mais de 60% dos médicos, 49,6% das enfermeiras, 54,5% dos auxiliares de enfermagem e 56,7% dos agentes comunitários não foram submetidos a nenhuma capacitação; mais de 50% das equipes não realizam investigação dos casos de doenças de notificação compulsória, ações de controle de casos e surtos e investigações de internações hospitalares; 59,6% das equipes não participam do Conselho de Saúde.

A emergência de um novo paradigma significa uma ruptura, na qual necessariamente são alterados os critérios que determinam a legitimidade tanto dos problemas, quanto das próprias soluções propostas. Conforme Kuhn (2001), a transição para um novo paradigma é a revolução científica, sendo a transição sucessiva de um paradigma para outro por meio de uma revolução, o modelo ideal de desenvolvimento de uma ciência madura. Na ciência, um paradigma raramente é suscetível de repetição, mas um objeto a ser mais bem articulado e definido em condições novas ou mais rigorosas. Como os novos paradigmas nascem dos antigos, incorporam comumente grande parte do vocabulário e dos aparatos, tanto conceituais como de manipulação do paradigma tradicional. Dentro do novo paradigma, termos, conceitos e experiências antigas estabelecem novas relações entre si.

A ruptura é uma das possibilidades de solução da crise, a partir da emergência de um novo paradigma. Acredita-se que a ruptura ocorrerá no modelo de atenção à saúde, caso se legitimem as soluções propostas pelo novo paradigma do SUS. Existe uma possibilidade de ruptura ou não do modelo hegemônico, na dependência do caminho a ser trilhado na consecução da dimensão operacional, em especial do PSF, que já está em andamento: ou se consolida como estratégia de reorientação dos sistemas de saúde ou como "apartheid sanitário", focalizado na atenção à população pobre (Paim, 2002, p. 268).

A dificuldade do PSF em contribuir para a ruptura do modelo hegemônico parece estar associada à proposta verticalizada deste programa, da sua gestão centralizada e, ainda, pela homogeneidade na oferta do serviço, sem se deter nas diferenças regionais de perfil epidemiológico. Pode-se afirmar que a escassez de recursos humanos capacitados e/ou com perfil adequado seja um dos entraves à ruptura.

A resolução dos problemas a que se propõe o novo paradigma pode ser limitada e a maioria das soluções está longe de ser perfeita. O paradigma deve muito mais orientar as pesquisas sobre problemas. Para que um paradigma possa triunfar é preciso que ele conquiste adeptos (persuasão e conversão), que o desenvolverão até o ponto em que os argumentos objetivos possam ser produzidos e multiplicados. Mas nem sempre esses argumentos são decisivos; é necessária uma crescente alteração na distribuição de adesões profissionais. A adesão da comunidade científica ao novo paradigma recoloca-a no exercício da ciência normal: os manuais precisam ser reescritos a cada revolução, mas dissimulam a existência da própria revolução que levou a sua mudança, e a ciência aparece mais uma vez como sendo cumulativa; os cientistas voltam-se para o enfrentamento de novos quebra-cabeças, ou seja, sabem de antemão os seus objetivos e que estes podem ser alcançados seguindo determinadas regras.

O sucesso, a legitimidade e o alcance da condição de hegemonia do novo paradigma dependem da conquista de novos adeptos. Além disso, como dito anteriormente, a resolução dos problemas pode ser limitada e a maioria das soluções estar longe da perfeição. A resolução, compreendida aqui no contexto do SUS, não pode se limitar à esfera do PSF, mas englobar todo o sistema de saúde, nos seus diferentes níveis de complexidade e deve implicar a efetivação de ações intersetoriais oriundas da articulação das diversas políticas públicas.

Considerações finais

As reflexões aqui apresentadas estão no campo das ciências sociais, em particular, no campo da ciência política, isto é, da estrutura político-social das populações, em articulação com a estrutura particular das práticas de saúde e, em especial, a modelos de atenção à saúde. Embora se tenha buscado analisar as possibilidades de ruptura do modelo hegemônico, entende-se que a teoria kuhniana e suas respectivas categorias de estudo são bastante específicas para os fins colocados pelo autor em sua análise epistemológica e historiográfica das ciências (e de uma certa concepção de ciência) e, neste contexto, tornam-se relativamente limitadas para explicar aspectos tão complexos e amplos da realidade social do setor saúde. Partiu-se da idéia de que categorias kuhnianas, mesmo quando transportadas para outros contextos de análise, podem ser produtivas em sua capacidade de exercitar o questionamento e a lógica do movimento crítico que está traduzido nos conceitos de crise e ruptura.

O sistema de saúde brasileiro encontra-se em transição, na luta entre o velho e o novo: ou o SUS se consolida, respeitando-se seus princípios e diretrizes, pela implantação efetiva de suas estratégias operacionais, tal como o PSF, especialmente por força e poder político do movimento da comunidade científica que o apóia; ou se mantém o modelo dominante, aqui destacado como modelo clínico/biológico/flexneriano.

Finalmente, pode-se afirmar que a reformulação do pensamento em torno dos modelos assistenciais "implica mudanças abrangentes na maneira pela qual o conhecimento científico se relaciona com, e é usado para a formulação e organização das práticas sanitárias" (Czeresnia apud Paim, 2002, p.377). Significa dizer que os modelos de atenção a serem propostos, com seus fundamentos teóricos e epistemológicos, devem respeitar cada realidade para que possam cumprir seu papel de atender às necessidades de saúde da população. Em síntese, precisam ser coerentes em suas bases e, ao mesmo tempo, suficientemente abertos ao reconhecimento e enfrentamento de suas próprias falhas e crises.

Recebido para publicação em 18/08/04. Aprovado para publicação em 20/11/04.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Set 2005
    • Data do Fascículo
      Fev 2005

    Histórico

    • Aceito
      20 Nov 2004
    • Recebido
      18 Ago 2004
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