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Réplica

DEBATES

Réplica

Regina Benevides; Eduardo Passos

Hentre

Hos

Hanimais

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Hescolho

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Humanos

Arnaldo Antunes

Nunca escrevemos sós, não apenas porque podemos fazer um texto em parceria (como é o nosso caso), mas também e, sobretudo, porque em qualquer situação escrevemos para alguém, sempre acompanhados e provocados por esse outro que, geralmente, se mantém invisível: o leitor. É um privilégio, portanto, escrever na sessão Debates da revista Interface, quando podemos dar visibilidade ao plano de interlocução que faz do texto uma realização de muitos. Ter Gastão Wagner, Denise Gastaldo e Suely Deslandes como debatedores nos auxilia na tarefa sempre incompleta de construção de argumentos acerca de um tema complexo como o da humanização da saúde. Mais ainda, ter estes debatedores que se colocam ao lado para pensar o tema é prazer e certeza do compromisso de construção da saúde pública no Brasil.

Vamos tomar como caminho, nesta réplica, não uma discussão individualizada com cada um dos debatedores, cujos textos mais que comentar, propuseram inflexões singulares e clarificadoras para o problema em debate. Extrairemos algumas linhas que atravessam os textos e que, acreditamos, nos auxiliam no esclarecimento das idéias.

Linha 1: desnaturalização e não relativismo

Defendemos a humanização como um conceito-experiência que enquanto tal exige a crítica à maneira sintomática com que ele vem se apresentando no campo da saúde. Ir do conceito-sintoma ao conceito-experiência é realizar a desnaturalização de práticas ditas humanizantes que perderam a força de problematização do já instituído. Desnaturalizar o conceito de humanização impõe, portanto, apontar para o jogo de forças, conflitos ou poder que institui sentidos hegemonizados nas práticas concretas de saúde, apostando, em contrapartida, na criação de um novo modo de fazer.

Mais do que um novo objetivo ou uma nova meta, este modo de fazer pressupõe, então, um reposicionamento dos sujeitos implicados no processo de produção de saúde, criando-se as condições para a crise de uma subjetividade assujeitada a padrões já cristalizados em práticas de saúde não democráticas, com baixo padrão de responsabilização e de manutenção de privilégios de classes socio-culturais, de gênero, de categorias profissionais etc.

A operação de desnaturalização desestabiliza as formas dadas e os seus sentidos sedimentados, fazendo aparecer o plano de produção tanto das práticas instituídas no campo da saúde quanto dos sujeitos comprometidos com a reprodução dessas práticas. Tal plano se caracteriza, de fato, por uma multiplicidade de determinantes, de maneira que esta sobredeterminação nos impede de supor uma relação de causalidade linear que garantiria a primazia de qualquer um dos vetores (econômicos, culturais, de gênero, étnicos etc) e, conseqüentemente, uma homogeneidade dos efeitos. São muitos determinantes, sendo múltiplos também os seus efeitos, o que torna o campo da saúde uma realidade complexa e heterogênea, onde convivem diferentes práticas, diferentes valores e diferentes atores. Cairíamos assim num relativismo? Afirmar que a aposta da humanização do SUS se faz pela produção de subjetividades nos levaria a ter que equivaler, igualar os diferentes atores presentes no campo?

Precisamos dizer, então, que subjetividades díspares produzem a realidade e são produzidas (não são naturais, portanto) a partir deste plano de multideterminação que não deixa de ter direções em conflito, lutas por hegemonia. Há seguramente subjetividades-vítima, subjetividades-privilegiadas que, mais do que serem produzidas, reproduzem modos de funcionamento que ainda prevalecem. É justamente por entendermos que as subjetividades são produzidas, que o trabalho de explicitação do plano de produção do instituído deve ser acompanhado por um outro trabalho que é o de criar condições para a emergência de efeitos-subjetividades compatíveis com as mudanças das práticas de saúde preconizadas pelo SUS. Trata-se, portanto, de uma aposta na produção de subjetividade com uma orientação que retoma, é verdade, os princípios do SUS (o que faz do conceito da humanização um "conceito-princípio"). No entanto, esta orientação não ganha um sentido prescritivo forte nem tampouco programático, mantendo-se apoiada em valores que norteiam um processo de produção sem a definição explícita dos tipos de subjetividade a serem alcançados ou da imagem ideal de uma realidade almejada. Mas como valorar a autonomia, o protagonismo, a co-responsabilidade, a co-gestão, pré-determinando o que se espera alcançar a partir da ação inventiva desses sujeitos comprometidos com o processo de produção de saúde?

Afirmar a inseparabilidade entre processo de produção de saúde e processo de produção de subjetividade é para nós uma direção ético-metodológica que deve sustentar uma política de humanização do SUS. É bem verdade que a noção de método, aqui, subverte seu sentido tradicional, pois que no lugar de pressupor uma definição prévia da meta a ser alcançada (meta-hódos), investimos num processo de construção coletiva das metas elas mesmas. Humanizar ganha, então, este sentido de uma prática coletiva ou de um caminhando (hódos) que só coletivamente constrói suas metas (hódo-meta).

Linha 2: A noção de coletivo como um terceiro termo

O conceito de humanização, como direção privilegiada para uma política pública de saúde, pressupõe a desestabilização do caráter unitário e totalitário de Homem. É no concreto das práticas de saúde que experiências subjetivas singulares ganham efetivamente a capacidade de transformação dos modelos de gestão e atenção. Tais experiências concretas se dão numa tensão com um padrão-ideal que se impõe como força sobrecodificadora e repetidora do instituído. Humanizar, neste sentido, é valorizar menos o Homem do que um homem-qualquer que, em sua concretude, é sempre variação do padrão trazendo sua história, suas características, seu gênero, etc, como fatores decisivos no processo de produção de si e do mundo.

O SUS enquanto resultado de um movimento instituinte pela democratização na saúde, se fez tomando a saúde como um tema a um só tempo público e coletivo. Qual o lugar do indivíduo aí? A defesa dos direitos à saúde não pode ser entendida sem consideramos o dever do Estado em garantir aos indivíduos universalidade de acesso, integralidade na atenção e equidade na distribuição dos recursos com participação em todas as instâncias. Para o SUS , o que é direito de qualquer um só se sustenta no direito que é de todos. Assim, coloca-se como desafio a superação da dicotomia indivíduo/sociedade. Esta superação, acreditamos, deve ser orientada pelo conceito de coletivo enquanto um terceiro termo que não se reduz nem a um conjunto de indivíduos com sua heterogeneidade em conflito, nem ao pertencimento a uma cultura entendida como um conjunto de regras ou formas de sociabilidade. O coletivo é por nós pensado como um plano que está aquém ou além das formas, portanto, aquém e além das pessoas e aquém e além das regras instituídas. Este plano é o das forças instituintes identificadas com os movimentos sociais, plano impessoal para o qual não podemos ter uma atitude prescritiva nem determinar antecipadamente as formas nas quais os princípios do SUS se atualizarão.

Afirmar, como insistimos, a inseparabilidade entre singular e coletivo não pode significar o encobrimento de conflitos e tensões que caracterizam o plano das forças de produção da realidade, seja das práticas de saúde, seja das práticas de si. Esta inseparabilidade não equivale a uma indiferenciação, mas ao contrário, indica o sentido positivo do processo de produção enquanto diferenciação. A ênfase, portanto, para uma política de humanização da saúde deverá incidir mais nos processos de diferenciação do que numa coletânea de diferentes. A questão não é da defesa dos diferentes tipos de práticas e sujeitos atuantes no campo da saúde, mas sim do que pode diferir do já instituído.

Linha 3: A ressonância das lutas pela democracia e a humanização como prática de resistência

Sim, a humanização é um conceito-experiência, um conceito-princípio, um conceito- síntese. É só pelo "reencantamento do concreto" que o conceito de humanização deixa o domínio abstrato dos princípios para se atualizar como política pública agindo nos e pelos coletivos. O que o conceito sintetiza, portanto, é uma dupla face da concretude na qual ele está sempre inscrito: a das práticas e a dos sujeitos.

Humanizar a saúde nos compromete não com regras abstratas, que poderiam conduzir a um fundamentalismo dos princípios do SUS, mas à alteração das práticas de saúde e dos sujeitos aí implicados.

São exatamente nestas práticas (concretas) e com estes sujeitos (concretos) que o processo de mudança pode garantir a continuidade do movimento instituinte do SUS. Seguir este movimento significa, por outro lado, manter-se numa atitude de resistência no duplo sentido da palavra: de oposição e de criação. Resistimos quando nos opomos ao modo como o socius está organizado de maneira a reproduzir valores, práticas e instituições competitivas e violentas. Por outro lado, no sentido positivo de resistência, a humanização deve ser entendida como afirmação da solidariedade e da potência de criação do coletivo. Neste sentido, consideramos que diferentes lutas ressoam na direção da democratização das relações, fazendo com que políticas públicas de saúde estejam conectadam com todas essas outras lutas que no contemporâneo se sintonizam com a defesa da vida.

Recebido para publicação em: 07/07/05.

Aprovado para publicação em: 11/07/05.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Ago 2012
  • Data do Fascículo
    Ago 2005
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