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"Shiva: um médico entre a construção e a destruição"

LIVROS

Nelson Filice de Barros

Professor, Área de Ciências Sociais, Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Unicamp. <nelfel@uol.com.br>

"Shiva: um médico entre a construção e a destruição"

Yeoshua, A. B. Companhia das Letras, 2000. 532p.

"Shiva", publicado pela Companhia das Letras em 2000 e traduzido do hebraico por George Sschlesinger, é o primeiro livro de A.B.Yeoshua publicado no Brasil. O autor, nascido em Jerusalém em 1936, atualmente ensina literatura da Universidade de Haifa.

Yeoshua é um reconhecido escritor de prosa e nesse longo romance, com 532 páginas, organizou sua narrativa em quatro partes: paixão, casamento, morte e amor. O período do desenrolar da estória é relativamente curto, mas é todo marcado por rupturas racionais e transcendentais, pois seu personagem central é um jovem médico residente, que ama de maneira transformadora e ingressa "na idade da razão" convidando-nos a deter o pensamento sobre o sagrado, o profano, a morte e a vida.

O título do livro detém um jogo de significados, explica o autor, pois, por um lado, recupera do hebráico as palavras "shivá" e "shivayon", além da expressão "Shivíti Elohim legendi", que significam, respectivamente, retorno, igualdade ou eqüidade e "coloquei Deus à minha frente"; e, por outro lado, abre as portas para a transcendência narrando, a partir da trilogia Hinduísta, na qual Shiva é o deus da destruição, o complemento de Brahma, deus da criação e de Vishnu, deus da preservação.

A narrativa é longa e lenta, convidando para a percepção do processo mítico contínuo de construção e destruição, física e metafísica. Aos 28 anos Benjamim Rubin, ou Benjy, está finalizando o primeiro ano da residência no setor de cirurgia do hospital de Tel Aviv, quando, de súbito, é convidado para viajar à Índia com o superintendente do Hospital, Lazar, e sua mulher, Dori, para resgatar a jovem filha do casal, Einat, que desenvolveu quadro grave de hepatite.

O autor inspira-se em certa normalidade da existência, que faz com que seus personagens assumam um padrão universal. À medida que desenrola detalhes, obtidos em pesquisa detida, apresenta ao leitor uma profusão de situações em que aproxima sua ficção de um texto acadêmico. Por isso, no livro, identifica-se um quase tratado sociológico e antropológico da vida e do trabalho de um jovem médico no campo de saúde Israelense, no Indiano e no Inglês.

Ainda de maneira quase sócio-antropológica, Yeoshua explora as diferentes maneiras da prática médica para anunciar os detalhes que não fariam de Benjy um bom cirurgião. De acordo com Hishin, seu preceptor e chefe do departamento de cirurgia, "vai ser um médico excelente, mas o seu talento verdadeiro está na alma, não nas mãos. Não é que suas mãos não sejam boas; é que ele gosta de penar(sic) demais antes de abrir e costurar, e enquanto isso o tempo passa, e o tempo numa operação não é só muito caro como também muito perigoso". É possível, e cremos que seja o caso, que tenha havido um erro de impressão e que o correto seja pensar e não penar, pois em outro diálogo, agora com o Dr. Nakash, chefe da anestesia e em certo sentido outro preceptor de Benjy, o primeiro afirma: "acredite Benjy, já deparei com muitos cirurgiões (...). E eu lhe digo: vi um pouco o seu trabalho, e isso não é para você. O seu bisturi hesita, porque você pensa demais. Não porque não tem prática, mas porque é responsável demais. E não se pode ser responsável demais em cirurgia, porque assim a operação não progride e não se faz nada. É preciso correr riscos, para cortar um homem e ainda lhe dizer que é bom para a saúde, é preciso ter um pouco de charlatão e um pouco de jogador".

Em várias passagens, é explorada a cultura interna dos hospitais e são enfatizados alguns procedimentos para explorar a hierarquização e distribuição de poder no seu interior. Por exemplo, na viagem de volta da Índia, Benjy avaliou que a única chance que Einat tinha de continuar a viver estava condicionada a uma transfusão sangüínea direta de sua mãe, que ele conduziu de maneira muito pouco controlada e quase intuitiva, que lhe valeu uma tremenda repreensão e quase acusação de negligência, por parte do chefe do departamento de medicina interna. Outro momento é a cirurgia cardíaca de Lazar, para implantação de pontes de safena, e sua morte inesperada. Por causa da sua morte, que é a morte do superintendente do hospital, escancaram-se as relações de poder e disputas entre departamentos do hospital e profissionais. Mais um aspecto em que o autor nos convida a pensar na cultura da instituição hospitalar é no nascimento de Shiva, filha de Benjy com Micaela. Como esclarecimento, retomemos a narrativa. Na parte inicial, a paixão, tudo fazia crer que haveria um romance entre Benjy e Einat, porém o que se revela é um avassalador amor de Benjy pela mãe de Einat, Dori, que é também mulher de Lazar. Essa relação de difícil aceitação, pela idade e posição de Dori, acaba fazendo com que Benjy se case com a amiga de Einat, Micaela, cujo plano era retornar à Índia. Do casamento resulta Shiva, que nasceu de parto natural, realizado no próprio domicílio do casal. A cena do nascimento é tensa, pois entremeia a beleza da responsabilização pela vida com a sensação de risco crescente e quase pânico. Ouçamos o narrador: "a criança nasceu numa noite fria de inverno, no nosso pequeno apartamento, a algumas centenas de metros do hospital. Até agora não entendo como Micaela conseguiu me convencer. (...) Isso parecia estar na moda entre as mulheres jovens dos bairros no norte de Londres, que buscavam um sentido no retorno aos costumes simples das velhas gerações. (...) Três horas se passaram desde que fora chamada [a parteira]. (...) Então percebi que caberia a mim o parto de minha filha, e a situação para a qual eu fora manipulado era sem dúvida absolutamente descabida. (...) Entre seis e sete da manhã, enfim chegou a hora do parto em si, após mais uma injeção e um corte de aproximadamente quatro centímetros na vagina feito às duas da madrugada: o canal começou a se abrir e dar passagem lentamente (...) profunda e intensa era a fadiga que se abatera sobre os quatro lados da minha personalidade mobilizados durante aquela noite – médico, marido, pai e filho..."

No mesmo exercício de detalhamento e universalidade, Yeoshua toma por dentro a racionalidade biomédica para apresentar a fenomenologia de algumas das questões da medicina. Assim, conduz o leitor a refletir sobre os problemas psiquiátricos, especialmente a depressão, que leva o Dr. Levin, chefe da medicina interna, a internações sucessivas. Conduz o leitor a pensar sobre a relação médico-paciente em diferentes passagens, mas especialmente, quando afirma que "sempre existe algo de teatral na relação de um médico com o seu paciente, pois somente por meio de um jogo delicado é possível superar o constrangimento natural e devido à presença de um completo estranho que se despe à nossa frente para que examinemos a sua boca, palpemos sua barriga, auscultemos seu coração e toquemos seus órgãos sexuais". Convida, ainda, para que se pense sobre a morte, principalmente os médicos, colocando, entre outras, a indagação: "como a morte seria possível na presença de um conselho de médicos que, a despeito de suas divergências, estão determinados a combatê-la e, com auxílio de aparelhos sofisticados e dos mais eficientes medicamentos, defendem o bem-estar do corpo, que insiste não só em continuar existindo, mas também em apreciar sua própria existência?" Adiantando para a conclusão das reflexões motivadas pela questão, o autor coloca no coração e na mente de seu personagem a idéia de que "para um médico não existe morte totalmente inevitável. (...) Porque se admitíssemos a possibilidade da morte inevitável, o espírito competitivo obrigatório entre os médicos se perderia".

No entanto, a mais importante reflexão do autor é sobre o tempo. Há relativamente poucas passagens explícitas sobre o tempo, mas esta dimensão sustenta toda a arquitetura das tramas na narrativa. Ainda na primeira parte do livro, no embarque para a Índia, é apresentada a primeira referência, quando é dado a Benjy, por seu pai, o presente para acompanhá-lo, o livro "Uma breve história do tempo", de Hawking. Mais adiante no livro as questões são retomadas quando Benjy discute com um amigo doutorando em física, que defende que "é preciso excluir a medicina das ciências naturais", sobre o tempo na física quântica. Então, desenrola-se a paixão do jovem pela mulher quase da mesma idade de sua mãe. Na prática médica, refere-se ao tempo no exercício da anestesia, que exige a concentração durante horas, para que a alma dos pacientes seja guiada "decolando" para o vazio do sono e para a "aterragem" de volta ao corpo.

Uma última referência sobre o tempo, para mim fundamental e motivadora dessa resenha, marca a diferença entre o tempo civilizacional do oriente e do ocidente. Há alguns anos, tive a oportunidade de passar três meses na Índia e entendo que essa foi uma experiência definitiva na minha vida. Em vários momentos, identifiquei que sentia muita saudade de alguns lugares ou situações, mas nunca ficava muito claro o sentimento, até que Micaela falou: "Muita coisa atrai [para a Índia]. Mas especialmente a sensação do tempo. Lá o tempo é outro, mais livre, aberto, não preso a um objetivo. Sem ansiedade. No começo, a gente pensa que não é um tempo real, depois percebe que esse é o verdadeiro tempo, o tempo que ainda não foi estragado. Ás vezes, lá parece que o globo terrestre parou de girar, ou que nunca chegou a começar. E cada hora só existe para si mesma, como se ela se bastasse. E, dessa forma, nada se perde".

À parte o presente pessoal que ganhei com a leitura do livro e que me despertou para outras descobertas, como o movimento "slow", uma estória para outro tempo, gostaria de finalizar essa resenha afirmando que leria o livro novamente... Bem escrito e profundo, "Shiva" é uma obra de ficção que revela, mais que muitos textos científicos, as entranhas do trabalho no campo da saúde.

Recebido para publicação em: 06/10/05.

Aprovado para publicação em: 17/11/05.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Ago 2012
  • Data do Fascículo
    Dez 2005
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