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Novas práticas sociais na constituição do direito à saúde: a experiência de um movimento fitoterápico comunitário

Nuevas prácticas sociales en la constitución del derecho a la salud: la experiencia de un movimiento fitoterapéutico comunitario

New social practices constituting the right to health: the experience of a community phytotherapy movement

Resumos

O objetivo deste trabalho foi analisar como a experiência de um movimento popular se afirma como um campo de constituição do direito à saúde. Para tanto, partimos da problematização da concepção de direito à saúde usualmente referida na reforma sanitária brasileira, procurando afirmar as dimensões constituintes dos movimentos societários. Nosso objeto de estudo foi a experiência das farmácias fitoterápicas da Pastoral da Saúde, nos municípios de Vitória e Vila Velha, ES, Brasil. Como resultado, identificamos três aspectos da experiência comunitária desse movimento que concorrem para a afirmação de outras práticas e sentidos de saúde: o recurso à fitoterapia, as relações de cuidado e a rede de vínculos sociais baseados na solidariedade. Por meio deles observamos que o fazer da Pastoral da Saúde estabelece uma contraposição com os dispositivos e mecanismos de poder que configuram o campo da saúde, abrindo novas possibilidades de constituição de direitos de cidadania.

Direito à saúde; Fitoterapia; Movimentos populares em saúde


El objeto de este trabajo ha sido analizar como la experiencia de un movimiento popular se afirma como un campo de constitución del derecho a la salud. Para tanto, partimos de la problematización de la concepción de derecho a la salud usualmente referida en la reforma sanitaria brasileña, buscando afirmar las dimensiones constituyentes de los movimientos societarios. Nuestro objeto de estudio fue la experiencia de las farmacias fitoterapéuticas de la Pastoral de la Salud, en las ciudades de Vitória e Vila Velha, estado de Espírito Santo, Brasil. Como resultado, identificamos tres aspectos de la experiencia comunitaria de ese movimiento que contribuyen para la afirmación de otras prácticas y sentidos de salud. Son ellos: el recurso a la fitoterapia, las relaciones de cuidado y la red de vínculos sociales basados en la solidariedad. Por medio de ellos observamos que el hacer de la Pastoral de la Salud establece una contraposición con los dispositivos y mecanismos de poder que configuran el campo de la salud, abriendo nuevas posibilidades de constitución de derechos de ciudadanía.

Derecho a la salud; Fitoterapia; Movimientos populares en salud


The aim of this study was to analyze how experiences within a popular movement have been affirmed as a field for constituting healthcare rights. The starting point was the question posed by the usual concept of healthcare rights cited in relation to Brazilian healthcare reforms, in seeking to affirm the constituent dimensions of movements within society. The study focused on experiences of phytotherapeutic pharmacies belonging to healthcare chaplaincies in the municipalities of Vitória and Vila Velha, ES, Brazil. The result was that we identified three aspects of the community experience of this movement that contribute towards affirming other practices and meanings within healthcare: phytotherapy usage, care-based relationships and solidarity-based social networks. Through these, we observed that healthcare chaplaincies' actions establish a counterbalance to the power devices and mechanisms that constitute the field of healthcare, thus opening up new possibilities for constructing citizenship rights.

Right to health; Phytotherapy; Popular movements within healthcare


ARTIGOS

Novas práticas sociais na constituição do direito à saúde: a experiência de um movimento fitoterápico comunitário

New social practices constituting the right to health: the experience of a community phytotherapy movement

Nuevas prácticas sociales en la constitución del derecho a la salud: la experiencia de un movimiento fitoterapéutico comunitario

Francini Lube GuizardiI; Roseni PinheiroII

IPsicóloga. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Brasil, 4365 EPSJV sala 321 Manguinhos Rio de Janeiro RJ 21.040-900 flguizardi@hotmail.com

IISanitarista. Instituto de Medicina Social, Universidade Estadual do Rio de Janeiro

RESUMO

O objetivo deste trabalho foi analisar como a experiência de um movimento popular se afirma como um campo de constituição do direito à saúde. Para tanto, partimos da problematização da concepção de direito à saúde usualmente referida na reforma sanitária brasileira, procurando afirmar as dimensões constituintes dos movimentos societários. Nosso objeto de estudo foi a experiência das farmácias fitoterápicas da Pastoral da Saúde, nos municípios de Vitória e Vila Velha, ES, Brasil. Como resultado, identificamos três aspectos da experiência comunitária desse movimento que concorrem para a afirmação de outras práticas e sentidos de saúde: o recurso à fitoterapia, as relações de cuidado e a rede de vínculos sociais baseados na solidariedade. Por meio deles observamos que o fazer da Pastoral da Saúde estabelece uma contraposição com os dispositivos e mecanismos de poder que configuram o campo da saúde, abrindo novas possibilidades de constituição de direitos de cidadania.

Palavras-chave: Direito à saúde. Fitoterapia. Movimentos populares em saúde.

ABSTRACT

The aim of this study was to analyze how experiences within a popular movement have been affirmed as a field for constituting healthcare rights. The starting point was the question posed by the usual concept of healthcare rights cited in relation to Brazilian healthcare reforms, in seeking to affirm the constituent dimensions of movements within society. The study focused on experiences of phytotherapeutic pharmacies belonging to healthcare chaplaincies in the municipalities of Vitória and Vila Velha, ES, Brazil. The result was that we identified three aspects of the community experience of this movement that contribute towards affirming other practices and meanings within healthcare: phytotherapy usage, care-based relationships and solidarity-based social networks. Through these, we observed that healthcare chaplaincies' actions establish a counterbalance to the power devices and mechanisms that constitute the field of healthcare, thus opening up new possibilities for constructing citizenship rights.

Key words: Right to health. Phytotherapy. Popular movements within healthcare.

RESUMEN

El objeto de este trabajo ha sido analizar como la experiencia de un movimiento popular se afirma como un campo de constitución del derecho a la salud. Para tanto, partimos de la problematización de la concepción de derecho a la salud usualmente referida en la reforma sanitaria brasileña, buscando afirmar las dimensiones constituyentes de los movimientos societarios. Nuestro objeto de estudio fue la experiencia de las farmacias fitoterapéuticas de la Pastoral de la Salud, en las ciudades de Vitória e Vila Velha, estado de Espírito Santo, Brasil. Como resultado, identificamos tres aspectos de la experiencia comunitaria de ese movimiento que contribuyen para la afirmación de otras prácticas y sentidos de salud. Son ellos: el recurso a la fitoterapia, las relaciones de cuidado y la red de vínculos sociales basados en la solidariedad. Por medio de ellos observamos que el hacer de la Pastoral de la Salud establece una contraposición con los dispositivos y mecanismos de poder que configuran el campo de la salud, abriendo nuevas posibilidades de constitución de derechos de ciudadanía.

Palabras clave: Derecho a la salud. Fitoterapia. Movimientos populares en salud.

Introdução

A abordagem que orienta este estudo* * Parte integrante e revisada da dissertação de mestrado da primeira autora, sob a orientação da segunda, intitulada Participação política e os caminhos da construção do direito à saúde: a experiência da Pastoral da Saúde nos municípios de Vitória e Vila Velha , defendida no Instituto de Medicina Social da UERJ em 2003. Pesquisa desenvolvida com apoio da FAPERJ e CNPq. compreende a participação política como condição e instrumento indispensável à construção do direito à saúde. Falamos em construção porque não o entendemos estritamente como garantia constitucional, formalização jurídica em si mesma definida, mas como práticas de sociabilidade, princípios reguladores "que estruturam uma linguagem pública" (Telles, 1994, p.92).

Neste sentido, a conquista constitucional é apenas uma faceta da construção efetiva da saúde como um direito. Construção coletiva, que não pretendemos relativa a modelos ou metas a serem alcançadas, mas como produção imprevisível de realidades sociais. Invenção política, não estritamente por implicar a instância estatal, mas por presumir a deliberação de rumos pertinentes ao fato de sermos politas: coletividade social. Reportamo-nos, com isso, à construção política do direito à saúde, com base na qual se tecem propriamente os "sentidos" do que entendemos e vivemos como "saúde", do que vivemos e entendemos como "direito". Caminhos que fazem do SUS espaço-tempo primordial desse processo histórico-social e da participação política, dispositivo estratégico em sua construção.

Mais do que garantias jurídicas, os direitos são deste modo apreendidos como práticas coletivas de construção de sociabilidade, referências de reciprocidade (Telles, 1994). Ou seja, são como uma "gramática civil" por meio da qual se reconhece uma arena pública onde as diferenças podem ser afirmadas e a negociação se faz possível em função do reconhecimento da legitimidade das posições e interesses dos diferentes interlocutores implicados. Espaço público onde vínculos sociais tomam corpo valendo-se da materialização de uma referência comum, que não impõe a homogeneidade, mas que, ao legitimar o conflito, instaura a condição de igualdade, imprescindível fundadora do direito à diversidade (em seus múltiplos e abertos planos). Como coloca Telles (1994, p.91), "os direitos são aqui tomados como práticas, discursos e valores que afetam o modo como desigualdades e diferenças se expressam e os conflitos se realizam".

Baseados nessa apreensão do conceito, percebemos que, instrumentalizada pelos direitos, a convivência democrática afirma-se como "uma dimensão ética da vida social" (Telles,1994, p.91), na medida em que institui referências de eqüidade e justiça que não se revelam restritas a sua afirmação legal, constituindo-se com base nas práticas sociais. Constata-se, então, que a noção de direito aqui apresentada não equivale a um conceito generalizado e abstrato, portador de uma essência universal. Não há direito em si, definição hermética, transcendental, de uma substância imaterial. Ao contrário, ele apenas existe na rede simbólico-cultural por meio da qual se materializa, sendo, portanto, resultado de lutas políticas locais, tecidas nas cenas cotidianas dos incontáveis autores de nossas realidades sociais.

Assim, se o Sistema Único de Saúde (SUS), e com ele o direito à saúde, se forma tomando por base o aparato jurídico-administrativo que o estrutura, ele apenas se concretiza nos espaços onde a vida se impõe e se faz existência: em postos de atendimentos, hospitais, salas administrativas, conversas, atos, sujeitos, etc. - em tudo que o corporifica, em tudo por intermédio do qual ganha materialidade social. Com isso, o conceito de direito adquire outra espessura, ao ir além de sua formalização jurídica, procurando abranger, sobretudo, a densidade e complexidade dos fluxos e movimentos societários.

Tendo por referência essa concepção de direito, este artigo se propõe a analisar como a experiência de um movimento popular pode ser analisada como um campo de constituição do direito à saúde. Buscamos explorar esse objetivo por meio da experiência de um movimento popular, a Pastoral da Saúde.

Esse movimento foi escolhido por envolver amplos setores populares, especificamente aqueles com precárias condições socioeconômicas que não têm suas demandas de saúde suficientemente atendidas pelo sistema público. Em virtude disso, um dos objetivos do trabalho da Pastoral é buscar alternativas e soluções para esses problemas, por meio do resgate e da afirmação da cultura popular, com a prática de uma outra concepção de saúde que não a biomédica (Camargo Jr., 1997). Destaca-se, em suas práticas, a organização de farmácias fitoterápicas comunitárias.

A despeito da inconteste presença da Igreja Católica no mundo da saúde - que no caso brasileiro precede mesmo a formação jurídica do Estado de Direito - a Pastoral da Saúde, enquanto ação planejada e estruturada é um movimento recente, organizado apenas no fim do século XX. De fato, o trabalho com a Pastoral dos Enfermos, voltado para a assistência (sobretudo espiritual) aos doentes em suas casas e hospitais, é bastante antigo nessa Igreja. No entanto, é apenas a partir da realização do I Seminário Nacional de Saúde, promovido em 1977 pela Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB), que começaram a surgir experiências comunitárias vinculadas ao trabalho pastoral. A partir de então, fortaleceu-se na Igreja a discussão sobre questões pertinentes às condições sanitárias da população. Em 1981, com a campanha da Fraternidade promovida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), cujo lema era "Saúde para todos", o tema da saúde emerge como prioridade e diferentes grupos vinculados à Igreja organizam-se, procurando desenvolver trabalhos junto à população desprovida de acesso aos serviços públicos. Em 1986, é realizado, pelo setor Pastoral Social da CNBB, com apoio do Grupo de Reflexão de Saúde (GRS) da CRB, o Encontro Nacional de Pastoral da Saúde, conceituando-se, assim, esse novo trabalho pastoral. Em 1994, é realizado em Quito, Equador, o II Encontro, direcionado ao objetivo de "formular, com a colaboração de todos os países, linhas comuns que orientem a ação da Pastoral da Saúde na América Latina e Caribe" (CELAM/DEPAS, 2001, p.83). Consolida-se, então, a preocupação com um projeto comum de Pastoral, e com o desenvolvimento de estrutura e organização próprias. Em 1995, na Assembléia Nacional da Pastoral da Saúde, definiu-se precisamente a Pastoral da Saúde e suas prioridades.

Ao longo dessa trajetória, a Pastoral da Saúde passa a ser conceituada como "a ação evangelizadora de todo povo de Deus, comprometido em promover, cuidar, defender e celebrar a vida, tornando presente a missão libertadora e salvífica de Jesus." (CELAM/DEPAS, 2001, p.43). Com o encontro de 1995, é formulada sua estrutura, dividida em três dimensões fundamentais: solidária, comunitária e político-institucional, com base nas quais as atividades passam a ser organizadas, sendo aquelas pertinentes às duas últimas dimensões o campo preferencial deste estudo.

Em razão de limites práticos, tornou-se necessário realizar um recorte no tema proposto, o que decidimos fazer limitando a pesquisa à atuação da Pastoral da Saúde da Arquidiocese de Vitória, em especial sua experiência de implementação de farmácias fitoterápicas nos municípios de Vitória (duas comunidade) e Vila Velha (quatro comunidades), no Estado do Espírito Santo, Brasil.

É importante salientar que, em seu fazer cotidiano, a Pastoral da Saúde se constrói com base nas singularidades das realidades locais, nas quais surge o trabalho. Não há propriamente um protocolo ou uma série de procedimentos para a organização dos grupos. Cada um deles tem um tempo próprio, uma história única, traçada na convergência de experiências de vida, desejos, necessidades e realidades comuns. Estando submetidos à autoridade dos padres responsáveis pelas comunidades, cada grupo dispõe de liberdade para concretizar suas atividades, o que lhes confere uma notória autonomia. Por tais características, consideramos importante destacar que os resultados da pesquisa não podem ser generalizados para análise e compreensão de outros grupos deste movimento.

Caminhos metodológicos...

O objetivo central da pesquisa exigiu o estudo de eventos - as práticas da Pastoral da Saúde e seus efeitos políticos - que não poderiam ser diferenciados dos contextos em que se produzem, e sobre os quais tampouco seria possível desenvolver estratégias metodológicas de controle. Tendo em vista tais aspectos, escolhemos, como metodologia, o estudo de caso (Yin, 1989), pois este se direciona à produção de conhecimento sobre um fenômeno valendo-se da intensiva análise de um caso particular, objetivo a que nos propusemos ao selecionar a Pastoral da Saúde e sua experiência com a implementação de farmácias fitoterápicas nos dois municípios. Nosso principal recurso foi a observação participante (Iturra, 1986), que nos permitiu a permanente contextualização das informações obtidas, por meio do envolvimento direto com o grupo social em questão, procurando compreendê-lo com base em seus próprios parâmetros e normas.

Durante o período de seis meses, acompanhamos ativamente o cotidiano do movimento nas seis comunidades. Freqüentamos o dia-a-dia dos trabalhos, as reuniões internas dos grupos e aquelas que envolviam a articulação dos diferentes grupos, além da coordenação estadual do movimento. Participamos dos eventos promovidos (congresso estadual, celebrações, planejamento estratégico anual, reuniões com as prefeituras) e acompanhamos os representantes da Pastoral nas reuniões dos conselhos em que estão inseridos.

Realizamos 18 entrevistas semi-estruturadas, divididas entre a coordenação arquidiocesana e a dos grupos pesquisados, os representantes e suplentes da Pastoral nos conselhos municipais de Vitória e Vila Velha, seus representantes atual e anterior no conselho estadual, e profissionais que assessoram o movimento, profissionais vinculados à Caritas (pessoa jurídica vinculada à Igreja Católica), outros ao setor público. Por parte do Poder Executivo, foram entrevistados os responsáveis pela gestão das secretarias de Saúde das duas cidades, a coordenação do Programa de Fitoterapia da Prefeitura de Vitória, um profissional ligado ao conselho de saúde desse município, o gestor de uma unidade de saúde e uma assistente social.

Procurando investigar os principais aspectos vinculados à procura por assistência na Pastoral, foi aplicado um questionário a 87 usuários** ** O número de questionários aplicados foi determinado em amostragem aleatória, definida pela soma do total de usuários atendidos em cada farmácia no período de um dia. das seis farmácias pesquisadas, no qual foi perguntado como se haviam informado do trabalho, o motivo de sua procura e o que esperavam (caso fosse sua primeira vez) ou como o avaliavam.

O fazer comunitário e a constituição de outras políticas

Ao propor outro olhar sobre a constituição do direito à saúde, procuramos manejar uma apreensão diversa do tema da participação política, que não aquela estruturada pela rotineira separação entre o dito campo "social" e o da política. É a partir dessa postura que nos aproximamos da experiência comunitária da Pastoral, com o objetivo de analisar quando essa presença cotidiana se torna política por engendrar outras práticas de saúde, que não aquelas hoje hegemônicas. Construções que ganham força e corpo, colocando-se como possibilidade de transformação de nossas referências e ações no campo da saúde, ainda que não passem pelos caminhos institucionais de deliberação e intervenção nas políticas públicas.

Quanto a isso, cabe destacar que a fitoterapia ocupa lugar central no trabalho desenvolvido nas comunidades, mesmo não tendo expressão nos espaços político-institucionais que a Pastoral ocupa, como os Conselhos de Saúde. Embora seja uma atividade central para os grupos, a fitoterapia não é articulada direta e discursivamente pela Pastoral da Saúde ao objetivo de transformação da assistência nos serviços públicos. Apesar de termos observado esse aspecto, constatamos também que, por meio dela, se expressa o desejo de construção de uma outra referência de saúde, que consideramos política, apesar de não se ter afirmado institucionalmente. Isso porque, além de ter como efeito uma grande capacidade de mobilização, agregação e "contaminação" nos espaços onde tem sido praticada, essa referência de saúde incide diretamente nos dispositivos de poder que configuram a intervenção biomédica no corpo social.

Com isso explicitamos que o político – neste estudo – não é delimitado pela esfera estatal, tampouco pela referência partidária. Ao contrário, ainda que perpassando e constituindo esses territórios, o plano político remete, sobretudo, aos dispositivos de poder centrais à constituição de nossas realidades; aos dispositivos que, como indica Foucault (1988), produzem verdades e forjam normalidades, naturalizadas em suas implicações sociohistóricas.

Por intermédio desse olhar, o fazer cotidiano do movimento torna-se político, ao incidir como estratégia ou artifício coletivo de problematização, ou mesmo visualização, do exercício de poder característico desses dispositivos no campo da saúde. Campo que tem, nos efeitos biopolíticos do saber e da prática da moderna medicina científica, seus principais pontos de articulação e produção.

Ao optar pela organização da dimensão comunitária em torno do saber popular sobre a fitoterapia, a Pastoral da Saúde estabelece uma contraposição - ainda que não enunciada - às práticas hegemônicas do setor. Em função disso, propusemos analisar sua experiência nas comunidades, naquilo em que ela possa indicar ou expressar movimentos de constituição do direito à saúde, para além de sua legalidade jurídica. Constituição política do direito à saúde por meio da vida comum, dos desejos que a movem, dos obstáculos que a circunscrevem.

Guiados por esses objetivos, identificamos três aspectos da dimensão comunitária que, a nosso ver, concorrem para a afirmação de outras práticas de saúde. São eles: o recurso à fitoterapia, as relações de cuidado e a rede de vínculos sociais baseados na solidariedade.

A busca pela fitoterapia

A fitoterapia é um trabalho relativamente recente, que começou na Arquidiocese de Vitória (que inclui os dois municípios estudados) a partir de meados da década de 1990, surgindo e organizando-se em épocas diferentes nas paróquias. As atividades são articuladas em torno das "farmácias comunitárias" que, apesar das especificidades locais, são basicamente parecidas.

Nas atividades das farmácias, o aspecto mais notório é a grande difusão de suas práticas e seu crescimento acentuado nas comunidades. Os grupos que se formam se expandem rapidamente e se consolidam, influenciando a formação de outros em localidades próximas. A impressão que se tem ao se aproximar é que elas possuem um movimento de espalhar-se, ao mesmo tempo invisíveis e muito presentes. Quanto a isso, percebemos que o crescimento do trabalho desenvolvido com as plantas medicinais, em grande parte, se deve ao fato de se apresentar e se afirmar como uma alternativa à referência biomédica de saúde. Alternativa em grande medida inexistente nos serviços de saúde, tanto públicos, quanto privados.

Na tentativa de esclarecermos os principais aspectos vinculados à procura por assistência na Pastoral, foi aplicado um questionário nos usuários dos grupos estudados. A amostra foi constituída de modo aleatório, consistindo no número de pessoas atendidas em um dia de trabalho de cada uma das farmácias, perfazendo um total de 87 usuários. Na enquete aplicada, além dos dados de caracterização sociológica (sexo, idade e escolaridade) as questões incluíram como haviam sabido do trabalho, o motivo da procura e o que esperavam (caso fosse sua primeira vez) ou como o avaliavam. Ressaltamos o caráter exploratório do instrumento, em relação ao qual importa, sobretudo, a expressividade dos enunciados coletados.

Os dados relativos à identificação da população indicaram que a Pastoral da Saúde é buscada majoritariamente por pessoas do sexo feminino, que representaram 85,1% da amostra. Essa relação pode ser ainda reforçada pelo fato de que essas mulheres, e também os homens que buscaram a Pastoral, correspondiam, em sua maioria (68,9%), à faixa etária entre trinta e 59 anos, na qual as incumbências relativas à vida familiar são acentuadas. Nesse sentido, observamos que várias pessoas abordadas estavam buscando remédios para seus filhos, cônjuges ou parentes. Além disso, não foram entrevistados sujeitos com idade inferior a vinte anos e apenas 10,4 % da amostra pertenciam à faixa etária entre vinte e 29 anos, sendo que 20,7% possuíam sessenta anos ou mais.

A respeito dos níveis de escolaridade, observamos uma maior proporção de pessoas com Ensino Fundamental (incompleto, 29,9%; e concluído 10,3%) seguida por aquelas com Ensino Médio (completo, 35,6% e incompleto, 4,6%). Destacamos, ademais, a acentuada relação de pessoas com Ensino Superior Completo ou em curso (11,5%), enquanto 8,1% dos entrevistados não possuíam instrução formal.

Quanto aos argumentos levantados acerca dos motivos que os levaram a procurar a Pastoral, percebemos que, se, por um lado, a procura pela fitoterapia se associa claramente à dificuldade de acesso ao tratamento tradicional - especialmente no tocante aos medicamentos alopáticos, muito caros para grande parte da população -, por outro, verificamos que sua busca (mesmo quando há o problema do acesso), em grande medida, é marcada pelo desejo de uma outra assistência, de uma outra prática e concepção de saúde.

Nesse sentido, constatamos que, enquanto 18,5% das razões apontadas indicam dificuldade de acesso a serviços, ou, sobretudo, à medicação alopática, 51,9 % dos entrevistados revelaram uma opção afirmativa pela fitoterapia, dos quais apenas uma minoria associou-a à facilidade de acesso (7,1%), ou a um recurso auxiliar à alopatia (5,4%). Dentre os demais argumentos levantados acerca da opção positiva pela fitoterapia, 17,9% referiam-se diretamente à eficácia do tratamento: "eu me sinto muito bem com o tratamento das ervas, prefiro vir aqui do que no médico, porque toda a vida gostei de remédio natural"; ou ainda, "remédio natural não tem melhor"; "a medicina natural tem mais facilidade de tratar" (usuários da Pastoral da Saúde)*** *** As falas dos usuários da Pastoral da Saúde referem-se às questões abertas do questionário mencionado, motivo pelo qual não se encontram identificadas separadamente. Ressaltamos a opção metodológica de analisar o conteúdo dos enunciados que expressam. .

A importância da noção de "remédio natural" associada às práticas da Pastoral emerge quando constatamos que 25% das pessoas que revelaram uma opção afirmativa em sua busca, justificaram prioritariamente sua escolha em função das referidas características naturais, diretamente associadas ao fato de não redundarem em danos à saúde. Nesse sentido, foram feitas afirmações como: "porque é tudo natural, é melhor, não agride o organismo"; "os remédios são naturais, são bons e não fazem mal à saúde"; "gostei dos remédios porque são naturais e não fazem mal para o intestino"; "o remédio natural é bem melhor do que o com química" (usuários da Pastoral da Saúde).

Nessas falas encontramos, mesmo que muitas vezes implícita, uma contraposição com as formas convencionais de assistência à saúde. Contraposição essa que chegou a ser claramente explicitada por 29,6% das justificativas dadas para a procura pela Pastoral, elaborada por meio de diferentes elementos de rejeição à assistência usualmente prestada no campo da saúde. Dentre esses argumentos, 65,6% baseavam-se diretamente em sua não-resolutividade.

Eu preferi fazer tratamento natural porque estou enjoada de tomar remédio e não ver resultado.

Eu vim porque estou com muito problema, tomando muito remédio, gastando muito dinheiro e não estou melhorando.

A minha filha estava com plaqueta baixa, não melhorava com nada e o médico quis tirar o baço dela. Eu não deixei e procurei tratamento aqui [...] ela estabilizou [...] achei o tratamento ótimo. (Usuários da Pastoral da Saúde)

Além das explicações vinculadas à não-resolutividade da assistência a que se teve acesso anteriormente, os efeitos colaterais desses tratamentos foram citados como sendo o motivo de sua rejeição por 18,8% dos argumentos relacionados nessa categoria, justificando a procura por práticas alternativas de saúde:"porque os remédios são naturais. Os remédios de farmácia você toma para uma coisa, prejudica outra"; "eu espero que o tratamento não faça agressão para o corpo, porque eu estou parando de tomar os remédios tradicionais porque eles afetam o meu corpo".

À parte os argumentos relacionados à resolutividade dos tratamentos tradicionais e aos seus efeitos colaterais, 6,2% das falas sobre sua rejeição apontaram para a forma como é concretizado o atendimento: "eu estava com depressão, um monte de problemas. Antes tinha ido a médicos, mas eles só passaram comprimidos"; "eu sou da associação de funcionários, mas como o atendimento estava péssimo, e eu tenho muita fé com remédios de ervas, eu resolvi procurar a Pastoral".

Como pudemos observar, apenas uma parcela minoritária das explicações dadas (18,5%) recorreu diretamente à falta de acesso aos serviços de saúde para justificar suas demandas à Pastoral e, mesmo assim, 45% delas se fizeram acompanhar dos demais motivos mencionados. A relação entre os dados obtidos e a expressividade dos temas que trouxeram indica que, mais que a falta de acesso aos serviços de saúde, a busca pela Pastoral expressa um desejo afirmativo de outras concepções e práticas de saúde diversas das que hoje são hegemônicas. Nesse sentido, expressa, fundamentalmente, uma escolha, uma tomada de posição. É o que constatamos quando atentamos para o fato de que os motivos acima discutidos, sobre a procura pelo movimento, fizeram com que muitas pessoas permanecessem como agentes de Pastoral depois de um contato inicial como usuárias. Esse aspecto está diretamente vinculado ao seu intenso crescimento nas comunidades, sendo explicado, em grande parte, pela aproximação do saber sobre as plantas, que permite estabelecer outra relação com o corpo, com sua saúde.

Imaginamos que as características "naturais" do saber e do fazer da Pastoral tenham se tornado veículo de construção de uma referência alternativa de saúde que explicita, ainda que de forma não articulada, os mecanismos de exercício do poder biomédico. Poder erguido sobre a autoridade da ciência moderna, que proclama como seu o direito exclusivo sobre a saúde e, objetivamente, sobre os corpos, a despeito deles próprios. Um poder-saber que, mesmo sendo historicamente datado, procura apresentar-se como discurso natural, prática apolítica.

Ao colocar-se como "um outro", figura de alteridade à referência de saúde biomédica, as práticas da Pastoral possibilitam o conflito em torno da legitimidade exclusiva desse saber, de sua apresentação como verdade natural. Conflito que se constrói expondo sua artificialidade ("a medicina natural tem mais facilidade de tratar"), denunciando as relações de força e submissão que o sustentam.

Analisemos, então, alguns aspectos nos quais as práticas e as concepções de saúde desse movimento social divergem e se contrapõem à biomedicina, configurando novas possibilidades de posicionamento político no campo da saúde.

Fronteiras e exclusões entre o saber técnico-científico da medicina moderna e as práticas "leigas" do saber popular

A medicina moderna forjou-se ao longo dos últimos quatro séculos como "um discurso sobre objetividades, discurso que institui a doença e o corpo como temas de enunciados positivos, científicos" (Luz, 1988, p.92). Saber que tem por objeto "a observação, a descrição e classificação mais a busca de 'causas eficientes' (explicação em termos de antecedente-conseqüente) das doenças no corpo humano" (p.89). Desse modo, tornando o corpo objeto do conhecimento científico e as entidades mórbidas categoria central de seu saber sobre a saúde, a medicina se organiza como uma ciência das doenças que, excluindo a vida de seu horizonte epistemológico, converte a saúde numa "ausência de patologia", a cura em "cessação de sintomas" (Luz, 1988). Ao contrário, a Pastoral procura trabalhar com uma referência afirmativa de saúde, não centralizada na categoria de doença.

A saúde não é definida por meio da doença, sendo apreendida essencialmente como "a afirmação da vida" (Barchifontaine, 1993, p.45). Estar bem é saúde, alimentar-se é saúde, solidarizar-se é saúde, uma conversa é saúde, cuidar é saúde; enquanto, por outro lado, "doença é coisa de médico". Nessa associação, as práticas de saúde não dizem respeito à doença ou ao corpo-objeto, pois a orientação dada pelos textos de referência do movimento é não compreendê-las como direcionadas ao tratamento da doença, mas sim da pessoa em desequilíbrio.

A busca por saúde (e não pela cura de doenças), que caracteriza o trabalho da Pastoral, implica o compartilhamento de um saber que possibilite às pessoas aprenderem a cuidar-se e a decidir como fazê-lo. Em relação a isso, as práticas contrastam intensamente com o repertório de ações da medicina moderna, que historicamente procurou monopolizar os atos médicos e reforçar sua autoridade, colocando sobre sua jurisdição diversos campos antes remetidos ao arbítrio individual (Boltanski, 1984).

Uma racionalidade cuja viabilidade social depende de um exercício de poder marcado pela submissão, em relação ao qual o outro deve ser modesto, confiante, ingênuo e conformado, pois

o poder médico, que da mesma maneira que o poder religioso, sempre teme ver uma autoridade concorrente levantar-se contra ele, só pode ser plenamente exercido fazendo de seus sacerdotes os detentores de segredos inacessíveis aos profanos. (Boltanski, 1984, p.47)

Como efeito dessas práticas, a doença e até mesmo o corpo, suas sensações, memórias e desejos são expropriados do "paciente" ao se converterem em objeto da intervenção médica.

Os objetivos e parâmetros diversos de ambas as experiências são mais bem delimitados quando atentamos para o fato de que, desfocando-se da terapêutica medicamentosa característica da biomedicina, as ações da Pastoral procuram priorizar as estratégias voltadas para orientação, prevenção e promoção de saúde: "As plantas medicinais, a fitoterapia, ela está dentro da Pastoral da Saúde. Ela surgiu com a dimensão comunitária. A fitoterapia, ela é um resgate popular do nosso povo" (Coordenadora da Pastoral da Saúde).

A concretização dos objetivos da Pastoral é encaminhada por meio da opção pelas estratégias simples, pelo saber comum, e não pela sofisticação tecnológica. Nesse posicionamento percebemos a clara intenção de demarcar uma diferenciação frente à prática biomédica, cujo imaginário científico é calcado numa "visão teleológica, orientada pelo progresso tecnológico e pelo desafio do domínio sobre a doença e a morte" (Ferla, 2002, p.334).

Em relação ao conjunto dessas comparações, talvez a que produza maiores efeitos sobre o exercício político do saber-poder médico seja a característica central do trabalho concretizado pela Pastoral: ele não pressupõe, nem requer a especialização técnica, a centralização do saber nas mãos de um especialista. Ao contrário da biomedicina, marcada pela dependência extrema para com seu agente nuclear, o médico, cuja capacitação técnica é prerrogativa de sua existência, as atividades da Pastoral se organizam por intermédio da sistematização e coletivização do saber popular sobre as plantas.

Foi-se percebendo essa riqueza que as pessoas tinham de conhecimentos sobre as plantas medicinais, e aí a coisa começou a brotar, a brotar, porque, nós percebemos o quê? Que a dona Maria, lá da comunidade, uma pessoa simples lá da comunidade, que ela tinha uma sabedoria sobre as plantas medicinais impressionante. Uma coisa impressionante o que ela tinha e ninguém valorizava, né? Por causa da modernidade de hoje, o que vale hoje o que que é? São os remédios de farmácia.[...] é o exame caro, é o hospital caro, é tudo caro, e não se valoriza aquilo que é simples, o que vem do povo. Foi-se descobrindo, dentro da dimensão comunitária, essa questão do cuidado, e da saúde com as plantas medicinais. E a coisa foi crescendo, crescendo, foi-se descobrindo e as pessoas foram aprendendo mais ainda a conhecer as plantas, a usar as plantas, a como usar as plantas, usar com prudência. (coordenadora da Pastoral da Saúde de Vila Velha)

A análise feita sobre os aspectos com base nos quais a Pastoral se contrapõe às práticas de saúde hegemônicas não tem por finalidade assumir sua negação ou postular uma idealização das atividades do movimento. Ao contrário, interessa-nos, de fato, produzir visibilidade para essas experiências, na medida em que essas características podem se tornar artefato político de problematização dos dispositivos de poder que conformam contemporaneamente o mundo da saúde. Nesse sentido, não nos importa uma discussão sobre a comprovação científica de sua eficácia, ou qualquer outro modo de averiguação técnica de seus efeitos. Nossa perspectiva é, em verdade, pensá-las em seus efeitos biopolíticos, uma vez que produzem um fazer e um saber sobre a vida, que incidem nos dispositivos do saber-poder biomédico, permitindo, em nossa análise, a expressão e produção do desejo social de outras formas de saúde, que não aquelas hoje hegemônicas. Fazem-no, especialmente, ao evidenciar a parcialidade sociohistórica desse saber que se legitima por meio de um discurso que o pretende alçar ao lugar de verdade natural.

Ao expor sua artificialidade, suas restrições quanto à resolutividade almejada, ao contrapor o discurso biomédico ao saber comum sobre as plantas, entre outros aspectos, as práticas da Pastoral despertam um certo estranhamento frente a um universo - da saúde - condicionado pelo poder excludente do saber hegemônico. Saber cuja predominância foi construída com o combate e eliminação da razão médica, de "categorias, conceitos e teorias divergentes e concorrentes, através de estratégias de produção de discursos e políticas sociais" (Luz, 1988, p.7). Nesse jogo de forças, a medicina moderna não apenas produziu certas relações sociais, como reproduziu outras existentes, por meio do combate, da desautorização e do silenciamento de outras práticas e discursos dissonantes. Desse modo, orquestrou o campo da saúde instituindo

um discurso natural sobre uma realidade social: o corpo do homem, seu sofrimento, sua morte, através da doença. Tanto mais social na medida em que o discurso naturalista sobre o corpo doente (corpo individual ou corpo social) é político em seus efeitos, contribuindo para a ordenação social e econômica de indivíduos e classes sociais na história moderna. (Luz, 1988, p.94)

Ao colocar-se como um outro em relação a tais práticas, as atividades da Pastoral adquirem certa ressonância, que pensamos ser estratégica à constituição política do direito à saúde, já que o apresentam não apenas como uma forma de assegurar ou ampliar a assistência hoje existente, mas também como o desejo de uma "saúde-outra", de um outro saber-fazer sobre a vida e suas formas de adoecimento e sofrimento. Posição afirmativa erguida, inclusive, na construção de uma relação diversa entre os homens (não-pacientes), relação cujos efeitos biopolíticos discutiremos no tópico seguinte.

As relações de cuidado-acolhimento nas ações da Pastoral da Saúde

Em sua conceituação foucaultiana, o termo "biopolítica" é apresentado como relativo aos mecanismos de poder investidos no corpo-espécie, nos processos biológicos de conjuntos específicos da vida - como a morte, o nascimento, a produção e a doença (Foucault, 2002). Nesse sentido, enquanto os mecanismos de poder disciplinar incidem sobre o corpo-homem, a biopolítica consiste numa "tecnologia em que os corpos são recolocados no interior dos processos biológicos de conjunto" (Foucault, 2002, p.297). Como acentua Lazzarato (1998), ambas as formas de exercício de poder se referem à multiplicidade dos homens, seja como corpo-indivíduo, seja como população-espécie.

Em nossa análise, é nessa perspectiva do conceito de biopolítica que as relações de cuidado construídas no trabalho da Pastoral da Saúde ganham densidade política. Isso porque, ao desfocar as práticas de saúde de sua finalidade curativa, voltando-as para a dimensão do acolhimento, essas atividades produzem não apenas uma qualidade diversa de ação de saúde, mas também um espaço aberto para outras relações de subjetivação, em que - diferentemente das práticas hegemônicas da medicina moderna - o outro de sua intervenção não é aquele "objetualizado e passivo, que recebe ações autoritárias e prescritivas, destinadas à sua 'qualificação' com vistas ao desenvolvimento da sociedade" (Ferla, 2002, p.60).

Como nos coloca o autor, essas práticas da medicina moderna se caracterizam pelo fato de que, nessa relação fundada no posicionamento autoritário frente ao outro-paciente, a ação técnica é

deslocada do contexto concreto em que as pessoas vivem, quer enquanto elemento explicativo para a sua saúde - [...] quer enquanto possibilidade de intervenção para a melhoria da saúde das pessoas - a intervenção 'efetiva' está na prescrição realizada, que medica o corpo (constituído como um conjunto de órgãos). (Ferla, 2002, p.60)

Relação essa em que não cabe a dimensão existencial do doente, de seu adoecimento e de suas condições materiais de vida. Um vínculo pautado pela recusa em compartilhar e transmitir os princípios médicos que fundamentam tais ordens e prescrições; e que, ao negar a autonomia do outro, procurando reduzi-lo a um usuário racional e conforme, concretiza-se por meio de uma distância autoritária (Boltanski, 1984).

Substituindo o ideal da cura pela referência de um cuidado subjetivado, as ações da Pastoral tornam a relação engendrada mais importante do que o procedimento técnico empregado. Os vínculos que com isso se constroem expressam possibilidades de contato exteriores às relações biomédicas de cuidado, produzindo visibilidade e estranhamento sobre os efeitos resultantes da objetificação do outro que a caracteriza. Quanto a isso, diversos foram os depoimentos que ressaltaram a centralidade do acolhimento nas práticas da Pastoral.

Tem ajudado muita gente. É muito acolhedor, as pessoas tratam muito bem, dão atenção, e isso cativa.

Eu gosto muito do atendimento, do carinho, das pessoas. A pessoa está presente quando você precisa, eu acho isso muito importante.

Eu gostei de tudo. Lá era só remédio, aqui só uma conversa já ajudou.

Gostei da maneira de falar, do interesse delas em conversar. Eu gostei em geral. (Usuários da Pastoral da Saúde)

Houve, inclusive, algumas falas em que é possível observar certo espanto positivo com a forma não-hierarquizada do contato empreendido. Nesses casos, destacou-se repetidamente a dissociação entre a assistência dada e uma preocupação com retorno financeiro, indicando que, na percepção de muitos entrevistados, os problemas dos serviços de saúde a que tiveram acesso anteriormente estão diretamente vinculados à sua mercantilização.

O que é especial aqui é o carinho. Eles não olham se tem dinheiro ou não, nem religião; Eu me senti bem melhor. Gostei principalmente porque elas tratam muito bem, sem discriminação. Todo mundo é igual.

Eu acho que as pessoas são carismáticas porque agem mais com o coração do que com interesse material. (Usuários da Pastoral da Saúde)

Essas características, encontradas em todos os grupos pesquisados e confirmadas pela enquetes realizada, não são ocasionais e configuram, na verdade, o cerne das atividades desenvolvidas pelo movimento. Nesse sentido, observamos que, no Congresso Estadual, a idéia do cuidado foi claramente apresentada como a palavra-chave do trabalho Pastoral, meta que deve se inspirar "na forma como Cristo ensinou a cuidar da vida". Sendo a vida associada diretamente ao respeito ao outro e a noção de cuidado vinculada a ter cuidados com o outro, ver sua situação; compadecer-se; aproximar-se; incutir força interior e acompanhar.

Nos depoimentos, percebe-se como, nas atividades da Pastoral, a relação com o outro, o respeito e a confiança que se constroem são o centro do trabalho dos agentes, instrumento e meta de sua intervenção. Essa forma de organização de ações pressupõe uma grande disponibilidade para o contato humano, para o estabelecimento de uma relação única, pessoal e não-hierarquizada. Uma relação em que saúde também significa desejos, histórias e problemas pessoais, singularidades. Em que o protocolo de procedimentos e exames é substituído pelo contato, pela percepção e compreensão do outro. Há a percepção de que as práticas de saúde hegemônicas nos serviços de assistência, especialmente os públicos, descaracterizam essa relação de "ser humano para ser humano".

Ao dizer que "parece que a parte humana da pessoa não entra na faculdade", uma agente explicita de modo simples e surpreendente como o saber técnico-científico, fundamento da racionalidade biomédica, demanda a objetivação do outro, ao tornar-se instrumento central das práticas de saúde. Relação institucionalizada entre profissionais e "pacientes", cujos efeitos políticos permanecem não enunciados e pouco problematizados nos serviços de saúde. Insistimos em salientar que não pretendemos proceder a uma idealização simplista das ações da Pastoral, como numa similitude tardia com o "bom selvagem".

Nosso objetivo, ao invés disso, é utilizá-las como analisador dessas relações ainda pouco transformadas, as quais, indubitavelmente, são determinantes na concretização cotidiana e material do direito à saúde – tanto o conquistado, como os infinitos desejados. A experiência e a postura dos agentes devem ser tomadas como uma evidência, um sinalizador para a necessidade de construção de possibilidades de expressão e acolhimento do sofrimento daqueles que buscam assistência, para a urgência quanto à desnaturalização do hegemônico vínculo profissional-usuário instituído, fundado na hierarquia da relação, no distanciamento autoritário e na objetivação do outro.

A Pastoral da Saúde: tecendo os fios de uma rede de solidariedade

As pessoas e as comunidades resistem, de inúmeras maneiras, à extensão indeterminada do processo de objetivação do mundo, a partir do qual tudo pode transformar-se em bem ou produto (Godbout, 1999). É justamente isso o que mais sobressai no trabalho da Pastoral da Saúde: seu caráter de doação, sua resistência e recusa à mercantilização das trocas sociais. Recusa que atravessa desde as falas dos agentes ao depoimento dos usuários, que percebem, nos serviços de saúde (tanto públicos, como privados), a prevalência do critério monetário, a pouca importância do aspecto humano da relação.

A busca por esse valor central confere sentido tanto para aqueles que nela trabalham, como para aqueles que a buscam, tornando as ações simples desse movimento um espaço comum diferenciado de produção de saúde. Podemos observar isso nas falas em que é ressaltada a ausência de interesses materiais com o serviço prestado, o fato de ser especial por se constituir como uma forma de doação: "Acho que as pessoas são carismáticas porque agem mais com o coração do que com interesse material"; "tudo o que é feito por amor é melhor"; "Achei ótimo, acho que é feito com muito amor, carinho, com muita vontade de ajudar as pessoas" (Usuários da Pastoral da Saúde).

Nos relatos obtidos, é destacado o modo como o trabalho da Pastoral da Saúde se organiza por meio de vínculos sociais articulados numa rede de solidariedade, cujos principais aspectos observados relacionamos a seguir.

. O trabalho é realizado basicamente com base em doações: de tempo, de saber, de plantas.

. Constitui-se como uma rede sem centralizações, articulada informalmente e com grande poder de difusão, o que percebemos ao constatar que seus usuários procedem em grande parte de outros bairros (46,0 %) e municípios (18,4 %), tendo tomado conhecimento do trabalho realizado, em sua maioria, por intermédio de terceiros (66,3 %), não pertencentes à comunidade católica da paróquia. Por meio desta, 28,1% são informados sobre a Pastoral, sendo que apenas 5,6 % das pessoas que a buscaram o fizeram em função de sua divulgação na mídia.

. As farmácias são verdadeiros pontos comunitários de encontro. As pessoas se vêem freqüentemente, conversam, trocam experiências, ajudam-se mutuamente. Isso nos parece bastante peculiar numa sociedade em que o tempo é crescentemente acelerado e onde as trocas foram reduzidas fortemente ao consumo.

. As pessoas envolvidas no trabalho relatam, com muita ênfase, o prazer de estarem reunidas, "a alegria de servir ao próximo". Sentimentos que elas próprias associam diretamente a uma noção mais ampla de saúde.

. O trabalho é decidido coletivamente em seu próprio exercício. Mesmo havendo uma coordenação em cada Pastoral, as questões cotidianas são decididas nos grupos. A coordenação age, sobretudo, como canal de interlocução com as outras pastorais e com a coordenação arquidiocesana.

. A forma de organização do trabalho da Pastoral da Saúde tem grande poder de expansão; vêm surgindo novas comunidades, sendo notório o crescimento de quase todas as existentes. É interessante ressaltar que essa característica não se deve a ações centralizadas das coordenações, mas a demandas das próprias comunidades. Nessa medida, imaginamos que a Pastoral da Saúde vem dar forma e expressão a um desejo coletivo de outras referências, tanto comunitárias como de saúde. Outro fator que corrobora nossa hipótese é a constatação de que a Igreja Católica não consegue determinar as ações e o crescimento das pastorais. Há, inclusive, uma grande preocupação institucional a esse respeito, expressa recentemente pela CNBB numa carta redigida pela coordenação e assessoria técnico-científica nacionais da Pastoral da Saúde, que orienta sobre a utilização e grande disseminação das terapias alternativas.

Considerações finais

Os principais pontos de análise apresentados indicam-nos como o fazer da Pastoral estabelece uma contraposição com os dispositivos e mecanismos de poder que configuram o campo da saúde. Dispositivos que, como nos mostra a leitura foucaultiana, têm no saber-poder da medicina moderna seu principal eixo de produção e reificação. Ainda que não estejam embasados numa formulação discursiva, ou num projeto coletivo estruturado com base nessas posições, as práticas da Pastoral geram estranhamentos, desnaturalizam a obviedade desse exercício de poder, sua legitimidade exclusiva sobre a saúde, sobre o corpo e, em grande medida, também sobre a vida. Nesse sentido, tornam-se artefato e instrumento político, mesmo - e, diríamos, principalmente - quando não estão inseridas nos caminhos institucionais da participação política.

Ao engendrarem um saber e um fazer diverso sobre a vida, as práticas da Pastoral possibilitam a expressão de movimentações constituintes que, com base em sua imanência cotidiana, recolocam o plano do direito, expandindo-o na materialização do desejo social de outras formas de viver e construir saúde. São processos que não se encerram na juridicidade do direito, nem na formalidade das instituições, mas que expandem e constituem o direito à saúde. Assim, são inegavelmente políticos por definição, por mais que se insista em segregar da política o chamado "social" ou, em outros termos, o tempo e a vida.

Recebido em 13/10/06.

Aprovado em 10/09/07.

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  • *
    Parte integrante e revisada da dissertação de mestrado da primeira autora, sob a orientação da segunda, intitulada
    Participação política e os caminhos da construção do direito à saúde: a experiência da Pastoral da Saúde nos municípios de Vitória e Vila Velha , defendida no Instituto de Medicina Social da UERJ em 2003. Pesquisa desenvolvida com apoio da FAPERJ e CNPq.
  • **
    O número de questionários aplicados foi determinado em amostragem aleatória, definida pela soma do total de usuários atendidos em cada farmácia no período de um dia.
  • ***
    As falas dos usuários da Pastoral da Saúde referem-se às questões abertas do questionário mencionado, motivo pelo qual não se encontram identificadas separadamente. Ressaltamos a opção metodológica de analisar o conteúdo dos enunciados que expressam.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Mar 2008

    Histórico

    • Aceito
      10 Set 2007
    • Recebido
      13 Out 2006
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