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O Homem Elefante: reflexões sobre saúde, doença e anormalidade

The Elephant Man: reflections on health, disease and abnormality

El Hombre Elefante: reflexiones sobre salud, enfermedad y anormalidad

Resumos

Este é um ensaio sobre o filme o Homem Elefante (David Lynch, 1980), escrito para uma atividade de extensão sobre Cinema e Saúde Coletiva realizada na Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Brasil). Busca contribuir para o debate sobre saúde, doença e anormalidade. O filme narra a história de um homem, na Inglaterra vitoriana, acometido de uma doença que produzia extensas deformidades físicas e que o levou a ser exibido em um circo como uma aberração. A discussão, inspirada em Foucault, aborda três questões principais: o conceito de anormalidade que se consolida no campo da medicina durante o século XIX, definindo os limites para a saúde/doença; a transformação do hospital em espaço normatizado de cura; e o cuidado como prática de caráter ético e político.

Cuidado; Normalidade; Anormalidades; Cinema; Saúde pública


This essay, about the film The Elephant Man (David Lynch, 1980), was written for a continuing education activity on Cinema and Collective Health at Unisinos (University of the Sinos River Valley, São Leopoldo, Brazil). It attempts to contribute towards the debate on health, disease and abnormality. The film, set in Victorian England, is the story of a man affected by a disease that caused extensive physical deformities, which caused him to be exhibited at circuses as a freak. The discussion, inspired by Foucault, covers three main issues: the concept of abnormality that became consolidated within the field of Medicine during the nineteenth century, thereby defining the boundary between health and disease; the transformation of hospitals into standardized healing spaces; and care as a practice of ethical and political nature.

Care; Normality; Abnormalities; Motion pictures; Public health


Este es un ensayo sobre al film El Hombre Elefante (David Lynch, 1980) escrito para una actividad de extensión sobre Cine y Salud Colectiva realizada en la Unisinos (Universidad del Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Brasil) Busca contribuir para el historia de un hombre, enfermedad y anormalida. El fim narra la historia de un hombre, en la Inglaterra victoriana, acometido de una enfermedad que producía extensas deformidades físicas que lo llevó a ser exhibido en un circo como una aberración. La discusión, inspirada en Foucault, aborda tres cuestiones principales: el concepto de anormalidad que se consolida en el campo de la medicina durante el siglo XIX, definiendo los límites para la salud/enfermedad; la transformación del hospital en espacio normalizado de cura: y el cuidado como práctica de carácter ético y político.

Cuidado; Normalidad; Anomalías; Cine; Salud pública


ESPAÇO ABERTO

O Homem Elefante: reflexões sobre saúde, doença e anormalidade

The Elephant Man: reflections on health, disease and abnormality

El Hombre Elefante: reflexiones sobre salud, enfermedad y anormalidad

Stela Nazareth Meneghel

Médica sanitarista. Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Av. Unisinos, 950 São Leopoldo, RS 93.022-000 meneghel@unisinos.br

RESUMO

Este é um ensaio sobre o filme o Homem Elefante (David Lynch, 1980), escrito para uma atividade de extensão sobre Cinema e Saúde Coletiva realizada na Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Brasil). Busca contribuir para o debate sobre saúde, doença e anormalidade. O filme narra a história de um homem, na Inglaterra vitoriana, acometido de uma doença que produzia extensas deformidades físicas e que o levou a ser exibido em um circo como uma aberração. A discussão, inspirada em Foucault, aborda três questões principais: o conceito de anormalidade que se consolida no campo da medicina durante o século XIX, definindo os limites para a saúde/doença; a transformação do hospital em espaço normatizado de cura; e o cuidado como prática de caráter ético e político.

Palavras-chave: Cuidado. Normalidade. Anormalidades. Cinema. Saúde pública.

ABSTRACT

This essay, about the film The Elephant Man (David Lynch, 1980), was written for a continuing education activity on Cinema and Collective Health at Unisinos (University of the Sinos River Valley, São Leopoldo, Brazil). It attempts to contribute towards the debate on health, disease and abnormality. The film, set in Victorian England, is the story of a man affected by a disease that caused extensive physical deformities, which caused him to be exhibited at circuses as a freak. The discussion, inspired by Foucault, covers three main issues: the concept of abnormality that became consolidated within the field of Medicine during the nineteenth century, thereby defining the boundary between health and disease; the transformation of hospitals into standardized healing spaces; and care as a practice of ethical and political nature.

Key words: Care. Normality. Abnormalities. Motion pictures. Public health.

RESUMEN

Este es un ensayo sobre al film El Hombre Elefante (David Lynch, 1980) escrito para una actividad de extensión sobre Cine y Salud Colectiva realizada en la Unisinos (Universidad del Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Brasil) Busca contribuir para el historia de un hombre, enfermedad y anormalida. El fim narra la historia de un hombre, en la Inglaterra victoriana, acometido de una enfermedad que producía extensas deformidades físicas que lo llevó a ser exhibido en un circo como una aberración. La discusión, inspirada en Foucault, aborda tres cuestiones principales: el concepto de anormalidad que se consolida en el campo de la medicina durante el siglo XIX, definiendo los límites para la salud/enfermedad; la transformación del hospital en espacio normalizado de cura: y el cuidado como práctica de carácter ético y político.

Palabras-clave: Cuidado. Normalidad. Anomalías. Cine. Salud pública.

A exibição do filme O Homem Elefante faz parte de uma atividade de extensão chamada Cinema e Saúde Coletiva, a segunda mostra de filmes comentados realizada na Universidade do Vale do Rio dos Sinos em 2007, focalizando o tema do cuidado na atenção à saúde (www.unisinos.br/ihu). Atualmente, a busca de cuidado tem sido apontada como uma das principais demandas por atenção à saúde pela sociedade civil brasileira, e constitui um dos eixos da política de humanização proposta pelo Ministério da Saúde. Este tema nos motivou a escolher uma amostra de filmes que, de algum modo, enfocam o cuidado. Cuidado entendido não apenas como um procedimento técnico, mas como uma ação integral, que compreende a saúde como direito pleno. Neste sentido, inclui o tratar, o respeitar, o acolher, o atender as pessoas em seu sofrimento, que, em grande medida, resulta da fragilidade social. Neste ciclo de cinema o fio condutor é o cuidado, quer seja individual, quer seja em relação a grupos, quer seja em relação ao ambiente e à natureza.

Entre os filmes selecionados, apresentamos situações de cuidado familiar (Gilbert Grape - aprendiz de sonhador, Mar Adentro), de ruptura com os paradigmas dominantes e biomédicos (Óleo de Lorenzo), de práticas de acolhimento e escuta não julgadora (Os últimos passos de um homem), da potência das narrativas (Paciente inglês), do cuidado em situações limites (O homem elefante, Gritos e sussurros). Também aparecem situações de não cuidado, de limitações/impotência, já que o cuidado pode tanto oprimir quanto libertar (O que terá acontecido com Baby Jane?). Para discutir o cuidado como dispositivo de políticas públicas de saúde e refletir sobre o Sistema Único de Saúde, escolhemos o filme Invasões Bárbaras, e para abordar a dimensão ecológica e ambiental do cuidado, selecionamos o filme tailandês O Rio.

Entendemos que esta iniciativa ajuda a aproximar a saúde coletiva de outros campos disciplinares e experimentar outras linguagens que podem contribuir na construção do cuidado integral para a população brasileira.

O filme de David Linch, realizado em 1980, conta a história de John Merrick, inglês portador de uma doença que produzia extensas deformações e que teve sua vida descrita nas memórias do médico Frederick Treves. Salienta-se o fato de que o médico, em suas memórias, teve o cuidado de substituir o nome verdadeiro do paciente - Joseph - por John, possivelmente pensando em mantê-lo no anonimato.

O protagonista da história apresentava um quadro clínico progressivo que incluía macrocefalia, crescimentos ósseos que conferiam um aspecto disforme ao rosto, o que pode ter levado a chamarem-no, depreciativamente, de homem-elefante. O peso excessivo da cabeça fazia com que ele precisasse dormir recostado, sob pena de asfixiar-se. Apresentava um dos lados do corpo hipertrofiado, um dos braços inutilizado, os pés aumentados de tamanho e o corpo recoberto por papilomas. Durante muito tempo pensou-se que a doença era neurofibromatose, mas, em 1996, exames radiológicos do esqueleto de Merrick, preservado no Royal London Hospital, revelaram que a doença era a Síndrome de Proteu, uma doença hereditária, descoberta em 1979.

O uso da imagem do elefante, para designar o paciente, possivelmente se deva ao caráter de exotismo ligado ao animal, embora também esteja associado à força. Os elefantes abrem o filme de Linch em uma cena de grande impacto, em que pisoteiam uma mulher grávida, presumivelmente a mãe do paciente no 4º mês de gestação. Segundo alguns críticos, esta cena é característica do estilo peculiar de Linch, um diretor ligado às artes plásticas e a explorações estéticas nem sempre aceitas pelo público, e que trouxe para o filme, que tem um tom quase documental, um toque de surrealismo, de imagens intencionalmente distorcidas, onde se mesclam o real e o fantástico.

O filme se passa no século XIX, em uma Londres tipicamente vitoriana. A trama é intencionalmente filmada em preto-e-branco, com cenas de contraste, sombra e luz, claro e escuro, som e silêncio, lembrando as obras do impressionismo alemão. Uma cidade envolta em nevoeiro, sombras e vazamentos de esgoto, silhuetas enegrecidas de fábricas, chaminés expelindo fumaça, uma legião de miseráveis vivendo em condições de aglomeração e miséria. Na época, a região próxima ao London Hospital, onde se passa o drama, era muito populosa, abrigando uma população de mais de seiscentos mil habitantes, pobres, imigrantes, muitos vindos da Europa Central. O diretor constrói um retrato das precárias condições de vida, trabalho, habitação, saneamento, higiene e saúde da população trabalhadora. A elevada prevalência de acidentes laborais ocasionados pelas máquinas rudimentares da época aparece em vários momentos: na sala cirúrgica onde um acidentado sofre um tratamento quase caseiro, na cena em que operários operam máquinas como figuras mitológicas, presos num inferno sem saída. O tempo mítico, do imaginal, do inconsciente é pautado pelas nuvens de fumaça (branca, cinza e preta), ao passo que o tempo científico, cartesiano, racional é marcado pelas tomadas de relógios.

Nesse cenário de miséria e exploração, o jovem John Merrick é exibido como uma aberração em uma espécie de Freak Show, onde compartilha espaço com outros horrores: a mulher barbada, o homem cobra, as gêmeas siamesas. Bêbados, mendigos, charlatães e exploradores da miséria alheia. Diversões em que se ri do mais fraco, do mais miserável, do feio, do grotesco, do aberrante. A desventura de ser, além de pobre, diferente.

Na realidade, sabe-se que John Merrick tinha um controle maior sobre sua vida, e que ele próprio decidiu expor sua doença e ganhar algum dinheiro com isso. No filme, a exibição circense inicia com o anúncio da atração principal dos Frutos do pecado original, dando ênfase para o Homem Elefante, um ser humano quase uma besta. Na época, a explicação para as causas de deformidades muitas vezes relacionava-se a transgressões cometidas pelos afetados ou seus genitores. Desse modo, John Merrick era considerado um monstro, cuja duplicidade evocava uma mistura de dois reinos - o animal e o humano.

A idéia da doença como monstruosidade remete aos estudos de Foucault (2002, 1996,1979), que buscou, na arqueologia dos saberes, o padrão de como se estruturam essas concepções. Os monstros fazem parte do estranho e fabuloso bestiário medieval, mas permanecem no imaginário da população e na literatura médica, até o século XIX. A noção de monstro origina-se no direito romano, onde havia, pelo menos, duas categorias: a doença (deformidade, defeito), e a do monstro propriamente dito. Nesta tradição ao mesmo tempo jurídica e científica, o monstro constituía a mistura de duas espécies. A figura de um ser metade homem, metade animal (privilegiada na Idade Média), as individualidades duplas, como os irmãos siameses (valorizadas no Renascimento), os hermafroditas (que foram perseguidos e penalizados) representam historicamente as figuras arquetípicas dessa dupla infração. A monstruosidade representa uma transgressão dos limites naturais, podendo ser atribuída a infrações, ultrapassando os limites da lei civil, religiosa ou divina.

Cada cultura define quais sofrimentos, anomalias, desvios, perturbações funcionais, transtornos de conduta, vão corresponder à esfera de abrangência das práticas e intervenções médicas, não existindo um campo que pertença de modo universal à medicina. A idéia de anomalia se estabeleceu no século XIX, mediante os conceitos de normal e de patológico, originada de três figuras, nas quais está colocada a questão da diferença e da anormalidade. Essas três figuras são: a do monstro, a do incorrigível e a do onanista. Figuras que, ao longo do tempo, vão se mesclando, se superpondo, e inclusive ficando mais amenas. O grande bicho-papão, que vem da Idade Média, vai se tornar, no século XIX, um conjunto de pequenos seres, homúnculos, diabretes, transgressores responsáveis pelas neuroses individuais, fazendo parte do inconsciente de cada ser humano. O campo de aparecimento do monstro é um domínio, que se pode dizer "jurídico-biológico", mas, ao mesmo tempo em que o monstro infringe a lei, ele não deflagra, por parte da lei, uma resposta legal, mas sim uma busca de cuidados médicos. Neste momento, aparece a medicina como tecnologia de cuidado e chamada a decidir sobre a "anormalidade" ou a "periculosidade" dos atos humanos.

O monstro é de certa maneira, a forma espontânea, a forma brutal, a forma natural da contranatureza. É o modelo ampliado, a forma desenvolvida pelos próprios jogos da natureza de todas as pequenas irregularidades possíveis. Neste sentido, podemos dizer que ele é o modelo de todas as pequenas discrepâncias. É o princípio da inteligibilidade de todas as formas – que circulam em forma de moeda miúda – da anomalia. Descobrir qual o fundo de monstruosidade que existe por trás das pequenas anomalias, dos pequenos desvios, das pequenas irregularidades é o problema que vamos encontrar ao longo de todo o século XIX. O monstro é, paradoxalmente, apesar da posição limite que ocupa, embora seja ao mesmo tempo o impossível e o proibido – um princípio de inteligibilidade. No entanto esta inteligibilidade é tautológica, pois é precisamente uma propriedade do monstro afirmar-se como monstro, explicar em si mesmo todos os desvios que podem derivar dele, mas ser em si mesmo ininteligível. (Foucault, 2002, p.70)

Dessa maneira, a idéia de monstro humano vai se encontrar presente desde o século XVIII, em toda a problemática da anomalia e em todas as técnicas judiciárias e médicas que são construídas para lidar com a questão, configurando a anormalidade como uma espécie de monstruosidade atenuada. Uma anormalidade, que de modo diferente à situação de excepcionalidade do monstro, constitui uma situação freqüente, cotidiana, corriqueira. Uma anormalidade que necessita de correção e que vai suscitar toda uma gama de tecnologias de reeducação e servir de suporte a todas as instituições específicas para anormais que se desenvolvem no século XIX: o hospício, o presídio, o reformatório.

No filme, o homem elefante desperta o interesse de um médico, que o leva para o Royal London Hospital. Dr. Treves, um cirurgião e anatomista da época, ao encontrar o "homem elefante" em um circo de arrabaldes, fica fascinado com a possibilidade de estudar a doença. No hospital ele vai ser examinado e apresentado à sociedade científica como um caso clínico raro. O médico monta um espetáculo para apresentar o paciente para a comunidade médica do hospital que se parece com um show científico: as cortinas do circo são substituídas por um biombo através do qual se observa a silhueta do homem, auxiliada por um foco de luz teatral que reforça os aspectos bizarros e disformes da doença. Em vez do anúncio do agenciador circence, o médico faz a apresentação descrevendo os achados clínicos, enumerando-os e expondo o caso, em que a concepção de monstruosidade é substituída pela de patologia. A ênfase não é no homem, e sim, na doença que, quanto mais inusitada, aberrante ou anormal, proporcionará maior curiosidade e interesse do público médico. O século XIX é o momento da medicalização definitiva da monstruosidade.

A medicina do século XIX estabeleceu as normas do normal e do patológico, acreditou conhecer aquilo que em todos os lugares e tempos deveria ser considerado como doença, acreditou poder diagnosticar retrospectivamente tudo o que seria discernido como patológico, mesmo se lhe tivesse sido conferido uma outra característica.

(Foucault, 1996, p.21)

Em síntese, para cada sociedade ou período histórico, a doença corresponde a tudo aquilo que se encontra teórica ou praticamente medicalizado.

Outro aspecto a mencionar é o do London Hospital, onde o paciente é examinado, tratado e apresentado à comunidade científica. O London Hospital que o filme retrata já possui várias características do hospital moderno. Na Idade Média e até o século XVIII, o hospital não era um local onde se exercia a medicina, e sim um depósito de mendicância onde as pessoas eram recolhidas para morrer. A medicina era individualista e os melhores médicos, aqueles que haviam conseguido algumas curas espetaculares, não eram médicos de hospitais. Ao hospital eram chamados os piores médicos, muitas vezes apenas para configurar o ritual da visita. No século XVIII ocorre o grande projeto de reforma do hospital e, para isso, ele foi completamente remodelado, limpo e higienizado, espantando os miasmas fétidos que obscureciam sua reputação. O projeto que permite este acontecimento é o projeto disciplinizador, que ocorre em grande escala nesse momento histórico, e atua não apenas no hospital, mas em várias outras instituições sociais: o exército, a escola, a fábrica. A disciplina é uma arte da distribuição espacial dos indivíduos, uma técnica de poder que implica uma vigilância constante dos indivíduos e supõe um registro contínuo. No hospital, esta política está representada no controle diário dos doentes, nos rituais de visita, de alimentação e aferição de sinais vitais, no controle da circulação das pessoas, dos materiais, alimentos e medicinas. Trata-se do poder de individualização baseado no exame, que consiste na vigilância permanente, permitindo a classificação, distribuição e aproveitamento máximo dos indivíduos.

A formação de uma medicina hospitalar deveu-se a dois fatores. Um deles foi a disciplinarização do espaço hospitalar e o outro a transformação do saber e da prática médica, que se volta para uma intervenção dirigida ao ambiente. A partir desse momento, o médico passa a desempenhar um papel central manifesto no ritual de visita. "Essa codificação ritual da visita, que marca o advento do poder médico, é encontrada nos regulamentos dos hospitais do século XVIII, em que diz onde cada pessoa deve estar colocada, que o médico deve ser anunciado por uma sineta, que a enfermeira deve estar à porta com um caderno nas mãos e assim por diante", conta Foucault (1979, p.110) em O Nascimento do Hospital. Além disso, havia toda uma preocupação com a distribuição dos espaços, suprimindo o leito dormitório do hospital medieval, onde dormiam muitas pessoas em cada cama, e intervindo sobre as condições que cercam o doente e que podem ser gerenciadas no sentido de modificar os fatores ambientais.

A questão do cuidado atravessa o filme e suscita uma série de interrogações,: quem cuida de quem, que efeitos – ou para-efeitos - o cuidado produz, quais as relações entre cura e cuidado. Atualmente, o cuidado tem sido pensado como ato de assistência, de apoio, ou facilitação para outra pessoa ou grupo, com o objetivo de melhorar sua condição humana ou modo de vida. Segundo Pinheiro e Guizardi (2004), o cuidado integral é também entendido como "entre-relações" de pessoas, ou seja, como efeitos e repercussões de interações positivas entre usuários, profissionais e instituições, traduzidas em tratamento digno e respeitoso com qualidade, acolhimento e vínculo. Assim, a integralidade é um dispositivo político, de crítica de saberes e poderes, e constituído por práticas cotidianas que habilitam os sujeitos nos espaços públicos a criarem novos arranjos sociais e institucionais em saúde.

O termo cuidado é polissêmico; os pensadores gregos usavam a palavra epimeléia para designar cuidado - atitude de consideração e ação, conhecimento e afeto. O cuidado integral envolve quatro dimensões: a compaixão, o ajudar na autonomia do sujeito a ser cuidado, o compartilhar da dor e o disponibilizar à pessoa os recursos disponíveis para enfrentar a situação de doença.

O cuidado na dimensão de integralidade leva a pensar algumas atitudes dos personagens do filme, desde o charlatão - Mr. Bytes - que se jacta ("eu cuido dele", "meu tesouro"), para o homem que explora, alimenta com batatas, espanca e trancafia em uma jaula quando está descontente. Os atos concretos do cuidar são reivindicados pela enfermeira-chefe (Motherhead), que pontua: "eu o banhei, limpei e alimentei, e minhas enfermeiras também". Sem dúvida, as práticas de enfermagem, área da saúde que tem o cuidado como um dos seus pilares de atuação, estão representadas na figura da enfermeira chefe e no contingente de cuidadoras sob suas ordens, cujos uniformes são uma cópia fiel da época. O médico, por sua vez, enuncia, em resposta ao questionamento do doente: "posso cuidar de você, mas não posso curá-lo".

Outra situação que incita a reflexão sobre o cuidado é a da relação entre John Merrick e Marge Kendal, uma atriz de teatro, bastante popular na época. Ela descobre o paciente por meio de uma notícia de jornal, visita-o no hospital, leva-lhe presentes e se torna sua amiga. Também atua como figura importante na busca de recursos entre a nobreza londrina para a manutenção do doente no hospital. Estaria proporcionando cuidado quando eles recitam um excerto de Romeu e Julieta e ela diz: "Você não é o Homem Elefante... Você é Romeu!"? Ou quando convida Merrick para ir ao teatro pela primeira vez? Evidentemente, a atriz é reconhecida e ovacionada pelo público por conta de sua ação filantrópica. De qualquer modo, tanto ela quanto o médico contribuem para dar uma vida mais confortável e digna a

John Merrick. Mesmo tendo ajudado o paciente, o médico não escapa de enfrentar um dilema ético, expresso pelo questionamento: "sou bom ou mau?". Estaria realmente cuidando de John Merrick, ou, à semelhança do charlatão que o explorava no circo, estaria exibindo-o em uma outra espécie de circo, do qual faziam parte a alta burguesia londrina e os doutores da cúpula médica da cidade?

A doença, dizem Torralba i Roselló (1998), oferece uma via para que o doente manifeste sua mais completa nudez e transparência, convertendo-o em um ser mais vulnerável do ponto de vista social. No rosto do homem doente é possível detectar sua nudez, seu desamparo e seu desejo de atenção. Assim: "o rosto se apresentará nu. A nudez é rosto". O olhar do homem doente é um olhar cheio de significado, porém só pode notar quem se mostra receptivo à sua dor. "Esse olhar é precisamente a epifania do rosto. A nudez do rosto é indigência". No meu entender, o cuidado dispensado a John Merrick, possibilitou que ele expusesse o próprio rosto e pudesse prescindir da capa e da máscara, que usava como um escudo de proteção durante sua vida no circo. Sem dúvida, a experiência da troca de olhares, do receber um nome e do reconhecimento humanizou o doente e o cuidador. A autopercepção de Merrick, ao dizer, para a multidão que o acossa na estação de trens de Londres, "Eu não sou um elefante. Eu sou um ser humano. Eu... sou... um... homem!", atesta a sua cura.

O paciente constrói uma maquete da catedral de Sant Phillips, divisada da janela do quarto no London Hospital - metáfora da construção de sua humanidade - e se permite dormir recostado, para morrer, enfim, como um ser humano.

O filme é uma parábola sobre o preconceito social diante do estranho e da doença vista como aberração, anomalia, anormalidade. O diferente que incita espanto e repulsa, por parte tanto de pobres quanto de ricos, em busca de atrações bizarras. Um filme sobre os processos de exclusão baseados na diferença, na doença como estigma. O Homem Elefante é uma exploração sobre as fronteiras entre normal/anormal e a forma como a diferença é tratada. Focaliza o voyerismo, que se mantém nos tempos atuais, cada vez mais cultivado nos freak shows midiáticos explorados até a náusea pelos meios de comunicação social. Alerta para a necessidade de se problematizar, por um lado, a diferença enquanto traço integrante dos seres humanos, e, por outro, a ética dos atores e instituições sociais para tratar com esta diferença.

Os versos seguintes, da autoria de Merrick, falam por si só:

É verdade que a minha forma é um tanto estranha/ Mas culpar-me seria culpar a Deus/Pudesse eu criar a mim mesmo novamente/Eu não falharia em agradar a você./Se eu pudesse alcançar de um pólo a outro/Ou estender a palma da minha mão sobre o oceano/Ainda assim eu seria medido pela alma;/o espírito é a medida do homem. (Marsden, 2007)

Recebido em 19/04/07.

Aprovado em 14/03/08.

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  • TORRALBA I ROSELLÓ, F. Antropología del cuidar Barcelona: Institut Borja de Bioética/Fundación MAPFRE Medicina, 1998.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Ago 2012
  • Data do Fascículo
    Jun 2008

Histórico

  • Recebido
    19 Abr 2007
  • Aceito
    14 Mar 2008
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