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Controle do dengue: importância da articulação de conhecimentos transdisciplinares

Control de dengue: importancia de la articulación del conocimiento transdisciplinario

DEBATE

Controle do dengue: importância da articulação de conhecimentos transdisciplinares

Control de dengue: importancia de la articulación del conocimiento transdisciplinario

Maria Glória Teixeira

Professora Associada, Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia. Rua Basílio da Gama s/n Campus do Canela Salvador, BA. 40.110-060. magloria@ufba.br

Desde a década de 1980, o Brasil vem enfrentando muitas dificuldades para controlar as infecções produzidas pelo vírus do dengue. Apesar do dispêndio de vultosos recursos em ações programáticas para o combate ao Aedes aegypti, único transmissor do vírus do dengue nas Américas, persiste ampla e contínua dispersão deste mosquito, atualmente presente em mais de 70% dos municípios brasileiros. Acompanhando a expansão do vetor, três sorotipos do vírus do dengue (DENV1, DENV2 e DENV3) passaram a circular com intensidade surpreendente, em grandes e pequenos centros urbanos, produzindo epidemias sucessivas de elevada magnitude no território nacional. Estas epidemias vêm se tornando mais graves devido ao crescimento da incidência dos casos da Febre Hemorrágica do Dengue (Teixeira et al., 2005). A evolução da situação epidemiológica, aliada aos resultados das avaliações de impacto das ações desenvolvidas pelo programa brasileiro de controle do dengue, tem revelado baixa efetividade (Dias, 2006; Teixeira et al., 2002). Importante ressaltar que dificuldades para o controle das infecções produzidas pelo vírus do dengue têm sido enfrentadas não só pelo Brasil, mas pela grande maioria das nações, inclusive por países que possuem programas considerados modelos no que se refere à cobertura e qualidade (Ooi, Goh, Gubler, 2005; Tauil, 2002). Esta constatação evidencia que o conhecimento científico existente neste campo da prevenção ainda é insuficiente para combater esta virose. Ademais, não se dispõe de medicamentos específicos para os indivíduos acometidos por dengue nem de vacina segura e eficaz para uso em populações. O controle desta virose, até o presente momento, está centrado no combate ao seu vetor, único elo vulnerável da sua cadeia epidemiológica.

A situação apresentada evidencia que o dengue se constitui em um dos maiores problemas de saúde publica do Brasil, razão pela qual, ao lado de pesquisas voltadas para o desenvolvimento de produtos, técnicas, inovações e invenções capazes de eliminar e/ou erradicar esta doença, se faz necessário, também, direcionar esforços e aporte de recursos para investigações que contribuam para o aperfeiçoamento das tecnologias e estratégias de controle já disponíveis, com o objetivo de imprimir maior efetividade às ações dos atuais programas de combate vetorial.

Assim, cumprimento a autora e os editores desta revista pela importante iniciativa de trazer este tema para debate, abordando os problemas e perspectivas de avanço do componente de educação e mobilização social dos programas de controle da dengue. Considerado peça-chave da sustentabilidade para manutenção das ações de combate vetorial, por consenso praticamente universal, as ações deste componente só se tornam efetivas se forem contínuas, permanentes e capazes de promover modificações ambientais que tornem desfavoráveis a proliferação de um mosquito-vetor de hábitos antropofílicos e totalmente adaptado ao ambiente habitado pelo homem (Consoli, Oliveira, 1994).

O artigo "Educação, comunicação e mobilização na perspectiva do controle da dengue: propostas inovadoras" discute os resultados de algumas avaliações concernentes às atividades e ações que vêm sendo desenvolvidas neste campo, no Brasil e em outros países, que evidenciam claramente as dificuldades e limites das estratégias de educação, comunicação e mobilização que vêm sendo utilizadas. A autora argumenta, respaldada em documentação científica, sobre a necessidade de mudança nas abordagens que têm sido aplicadas, apontando para a insuficiência do modelo explicativo que tem fundamentado as estratégias utilizadas até então. Aborda de forma crítica o fato de as estratégias pretenderem induzir a população a combater o vetor, trazendo subjacente a visão unicausal da produção da doença e, no mais das vezes, mantendo cunho campanhista/higienista. Continuam se reproduzindo táticas da antiga "polícia sanitária", representadas pelo discurso "educativo" dos Agentes Comunitários de Endemias (ACE), profissionais responsáveis pelas visitas casa a casa. Somam-se a estas práticas as campanhas periódicas veiculadas nas mídias falada e impressa, destinadas a repassar, para toda a população, conhecimentos sobre o ciclo da doença, indicando atitudes e práticas que devem ser adotadas e/ou evitadas para se reduzir a disposição e/ou manutenção de criadouros no ambiente doméstico. De acordo com as avaliações consideradas no artigo, e também em depoimentos de técnicos e dirigentes dos programas de combate vetorial, estas estratégias não têm obtido o efeito desejado, pois a maioria da população absorve os conhecimentos, ou seja, sabe onde o vetor coloca os ovos, que recipientes contendo água devem ser eliminados, da necessidade de colocar tampa nos depósitos que não podem ser eliminados, dentre outras informações. Contudo, estes conhecimentos não têm sido eficazes no sentido da indução de mudanças de práticas e comportamentos. Assim, os ambientes domésticos se mantêm receptivos à manutenção e proliferação do Aedes aegypti.

Uma das possíveis razões para as dificuldades de controle do dengue reside no caráter prescritivo de sua principal atividade, qual seja, a das visitas domiciliares com vistas à eliminação de focos e de possíveis criadouros potenciais das larvas do mosquito. De fato, enquanto durante a visita domiciliar os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) medem e pesam crianças, ensinam e/ou administram sal de reidratação oral, agendam consultas médicas e entregam e/ou administram medicações, as visitas do ACE revestem-se de outro significado. Suas atividades consistem em intervenções no ambiente privado da família, muitas vezes descartando objetos, imiscuindo-se, criticando, ou até mesmo "condenando" determinado hábito, que culturalmente pode ser importante, a exemplo do uso de vasos para fins religiosos e decorativos.

A autora, de forma bastante equilibrada, ao mesmo tempo em que valoriza a importância das ações e atividades de comunicação e participação social e enfatiza a necessidade do desenvolvimento de inovações neste campo, chama a atenção para a necessidade de se "relativizar o poder dessas práticas em produzir ou induzir mudanças de comportamentos e atitudes, especialmente em contextos tão adversos à proteção e promoção da saúde. A comunicação, educação e mobilização social são campos de ação fundamentais para o bom desempenho de programas de prevenção e promoção da saúde, mais pela sua capacidade de abrir espaços de diálogo e conversação entre profissionais, agentes de saúde e população, na busca de solução para os problemas que os afetam, do que pelo seu potencial de mudar comportamentos e atitudes individuais frente a riscos à saúde"

Concordamos que é preciso desmistificar o discurso de que a comunicação, educação e mobilização social, por si só, é capaz de produzir mudanças e controlar problemas de saúde, especialmente aqueles nos quais estão envolvidos hábitos domésticos. Ao lado da comunicação, educação e mobilização social, os programas de controle de dengue devem ter estruturados e atuando com qualidade todos os seus outros componentes, a exemplo da vigilância epidemiológica, do combate químico, físico e biológico ao vetor, da vigilância entomológica, e, sobretudo, a promoção de ações de saneamento básico, tais como: coleta de lixo adequada, suprimento de água com qualidade e sem intermitência, esgotamento sanitário, limpeza de logradouros públicos etc.

No que se refere ao componente de comunicação, educação e mobilização social, entende-se que, para se obter avanço, tem-se de lançar mão de técnicas e estratégias especiais, inovadoras e pactuadas com a população. Pactuação a ser construída em cada espaço considerando a cultura, privacidade, relações interpessoais de cada comunidade e de cada indivíduo em dado momento histórico. Para tal, estudos e experimentos qualitativos capazes de identificar crenças, atitudes e comportamentos são fundamentais no sentido da identificação de novas formas e processos diferenciados capazes de imprimir efetividade a esta ferramenta tão poderosa.

Nesta perspectiva, talvez seja o momento de se desenvolverem estudos controlados de intervenção que aliem métodos qualitativos a quantitativos, desenhados de forma a se avaliar a adesão e mudanças de comportamentos, além do impacto entomológico e epidemiológico. Tais estudos, ao lado de ações de combate direto ao vetor de acordo com as bases técnicas científicas disponíveis (saneamento ambiental, eliminação química, física e biológica etc), devem incluir inovações nas abordagens das visitas domiciliares. Uma proposta é a de transformar os moradores em partícipes e responsáveis pelas ações de eliminação e tratamento dos criadouros de suas residências. Também a simples inclusão, nos currículos escolares, de conteúdos sobre ciclo e formas de controle de doenças não tem sido vetor de mudanças. Talvez o estímulo para que alunos e professores desenvolvam práticas sistemáticas e concretas de prevenção nas comunidades tenha efeito mais satisfatório.

Importante ressaltar que a articulação de projetos de investigação transdisciplinares envolvendo antropólogos, sociólogos, educadores, epidemiologistas, entomologistas, dentre outros profissionais, possa vir a contribuir para o desenvolvimento de estratégias capazes de imprimir impacto sobre a ocorrência das infecções produzidas pelo vírus do dengue.

Recebido em 02/06/08.

  • CONSOLI, R.; OLIVEIRA, R.L. Principais mosquitos de importância sanitária no Brasil. 20.ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1994.
  • DIAS, J.P. Avaliação da efetividade do Programa de Erradicação do Aedes aegypti: Brasil, 1996-2002. 2006. Tese (Doutorado) - Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2006.
  • OOI, E.E.; GOH, K.T.; GUBLER; D.J. Dengue prevention and 35 years of vector control in Singapore. Emerg. Infect. Dis., v.12, n.6, p.887-93, 2006.
  • TAUIL, P.L. Aspectos críticos do controle do dengue no Brasil. Cad. Saúde Pública, v.18, n.3, p.867-71, 2002.
  • TEIXEIRA, M.G. et al. Dengue and dengue hemorrhagic fever epidemics in Brazil: what research needs are indicated by its trend, surveillance and control experiences? Cad. Saúde Pública, v.21, n.5, p.1307-15, 2005.
  • TEIXEIRA, M.G. et al. Dynamics of dengue virus circulation: a silent epidemic in a complex urban area. Trop. Med. Int. Health, n.7, p.757-62, 2002.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Ago 2012
  • Data do Fascículo
    Jun 2008
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