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Miguel Ângelo MontagnerI; Maria Inez MontagnerII

ISociólogo. Pesquisador CNPq/Funcap. Rua Eduardo Ellery Barreira, 29, apto. 703, Bloco A - Guararapes Fortaleza, CE 60.810-010 montagner@hotmail.com

IISocióloga. Doutoranda, Departamento de Medicina Preventiva e Social, Universidade de Campinas (bolsista Capes)

CANESQUI, A.M. (Org.). Olhares socioantropológicos sobre os adoecidos crônicos: um recente campo de estudos. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2007.

A coletânea ora organizada por Ana Maria Canesqui ao mesmo tempo resgata uma necessidade e coloca, na agenda dos pesquisadores em ciências sociais em saúde, todo o universo das pesquisas em torno das doenças crônicas, que para muitos tipificam a modernidade.

Definir o que é uma doença crônica e sua terapêutica há muito tempo é o trabalho da medicina, por meio de exames ou anamnese. Nesse livro, questiona-se até que ponto essa constatação é somente uma responsabilidade médica. O livro alerta, a nosso ver, para questões como: o que ocorre depois do diagnóstico, o que muda na vida de uma pessoa, e qual a qualidade de vida de um portador de doença crônica. Ele aponta que todo um processo sociocultural entra em jogo ao lado das demandas pelo tratamento, que requer um longo período, com idas e vindas a médicos e a serviços de apoio, e custará muito em tempo, dinheiro e sofrimento moral. Nessa trajetória, o doente precisará do apoio de parentes, amigos, grupos ou entidades que reconheçam as suas dificuldades, que vão além das questões estritamente terapêuticas.

Para a autora, o termo 'doença crônica' aponta para uma construção do saber biomédico que não esgota todas as dimensões do problema. O diagnóstico é reinterpretado pelos adoecidos, que o integram no universo sociocultural do qual fazem parte, compondo um sentido mais complexo e completo do que significa a enfermidade e o adoecimento dentro daquele universo, associado ao convívio com determinados tipos de enfermidade.

Assim, a percepção e sentido de seu estado físico e mental, por parte dos adoecidos, são dimensões que, para sociólogos e antropólogos, têm significação própria e requerem estudos específicos. Especialmente porque o corpo não se limita aos conceitos médicos, ele é, antes de tudo, a representação da cultura, sociedade e política na qual o indivíduo e os grupos sociais estão situados em determinado tempo e lugar. Desconsiderar esse fato é negar o aspecto integral do ser humano.

Mesmo que duas pessoas tenham o mesmo diagnóstico, o adoecimento, o sofrimento, a dor e a própria enfermidade nem sempre são vistos, tratados e encarados da mesma maneira. Isso demonstra a extrema importância de um olhar mais abrangente sobre o assunto doença crônica, que demanda a permanência do paciente por longos períodos em serviços de saúde. Por melhor que seja a tecnologia para o tratamento de determinadas doenças, desconsiderar a visão socioantropológica é, em última análise, desconsiderar o paciente.

Esta visão é o objetivo central do livro, e os autores conseguem demonstrar como o paciente deve tornar-se tão ou mais importante que a doença.

No capítulo 1, somos brindados com uma extensa e circunstanciada revisão bibliográfica dos estudos sobre doenças crônicas, que abarca as publicações inglesas e norte-americanas, além da modesta produção brasileira alavancada a partir de 1990. Canesqui realiza um inventário primoroso sobre os trabalhos mais relevantes e significativos, a par de uma revisão conceitual das teorias que foram colocadas em obras nas pesquisas relatadas, dando-nos uma visão atualizada e reveladora do estado da arte no assunto.

Reni Aparecida Barsaglini, no capítulo 2, realiza um estudo de caso sobre o diabetes, utilizando, para a coleta de dados, o relato oral de uma mulher, negra, solteira, com 56 anos, que há oito anos convivia com a doença. Melissa, o nome é fictício, vive com dois salários-mínimos e com mais cinco pessoas no mesmo espaço doméstico. Ela admite que a diabetes "(...) para mim é como se não fosse nada", na tentativa de provar que mantém íntegras todas as suas atividades, para não se tornar um peso para os familiares.

A narrativa feita sobre a trajetória desta mulher, que "descobre-se" diabética aos 48 anos, nos prende a atenção pela riqueza das informações coletadas, tanto no seu contexto do grupo doméstico como no local onde recebia atendimento médico. Na residência, a autora teve a possibilidade de ouvir especialmente a mãe de Melissa, uma senhora de oitenta anos, também diabética. A pesquisadora acompanhou o dia-a-dia desta mulher, que se orgulha de tomar sozinha seus medicamentos e que, para aumentar a renda, faz tapetes de retalhos.

Reni trabalha detalhadamente as explicações leigas para as doenças no caso estudado, tanto da adoecida como dos familiares. Para tanto, assume a experiência da enfermidade em todas as suas vertentes, na qual a perspectiva do enfermo é central e heuristicamente significativa, dado que as diversas interpretações sobre a doença são retrabalhadas e resignificadas pelo adoecido em sua experiência cotidiana e em sua relação com a doença.

No Capítulo 3, Canesqui aborda a designada "pressão alta", pelo senso comum, ou hipertensão arterial, segundo o saber médico erudito, doença de relevância social, pois atinge a faixa de adultos e idosos, que tende a crescer segundo a nova base demográfica brasileira. Por isso há um número significativo de estudos epidemiológicos sobre o tema, mas poucos dentro da perspectiva socioantropológica, sob o ponto de vista dos adoecidos, explorando os referenciais teóricos de sua abordagem, como os Modelos Explicativos da doença, e os comentando dentro da tradição antropológica médica norte-americana. Percorre outros estudos, incluindo os nacionais, que trazem a abordagem sobre o gênero referente ao tema, por meio da relação das mulheres com essa doença, assim como as representações sobre a doença, comparando estudos feitos em diferentes contextos. Em suma, a hipertensão carrega uma miríade de significados, onde se misturam ou se apartam as concepções eruditas sobre a doença, detidas pelos profissionais em saúde, e as concepções leigas e populares, que influenciam fortemente o tratamento e a vivência cotidiana do adoecimento.

No capítulo 4, Nair Lumi Yoshiro encara a obesidade em sua atual leitura cultural, a de uma doença da modernidade ligada por elos profundos aos valores e ao ethos do cidadão moderno. O culto ao corpo, à magreza e à beleza física trafegam na mesma via, por um lado, do excesso e da superalimentação e, de outro, da bulimia e da anorexia. Assumindo a obesidade como um estigma, no sentido de Goffman, a autora procura compreendê-la dentro do modelo biomédico para, em seguida, mostrar as formas assumidas pelas propostas terapêuticas, tanto eruditas quanto leigas, na conformação do corpo ideal.

Por fim, no capítulo 5, Edemilson Antunes de Campos aborda um modelo terapêutico sui generis, no qual a palavra é o remédio e a salvação. Estando além da biomedicina centrada no biológico, o alcoolismo, por definição, demanda a vontade e o esforço próprio do doente no seu processo de cura. Nesse processo, os valores culturais e sociais são a fonte única da cura, mesmo que o tratamento medicamentoso possa ser utilizado em momentos críticos. Ele analisa o modelo criado pelo grupo dos Alcoólicos Anônimos, cuja difusão é vasta e passou a fazer parte do reconhecimento do alcoolismo como uma doença crônica e fatal, ligada a uma 'obsessão mental' que demandaria a abstinência completa.

Por meio de observação participante e entrevistas semi-estruturadas, o autor consegue demonstrar a ênfase dada pelo modelo de tratamento proposto pelos AA na dimensão espiritual e moral do ser humano, compreendido como o sujeito de sua recuperação. Pela partilha de suas experiências, em grupos, os adoecidos acabam por reafirmar e recriar constantemente uma nosografia que é, em grande parte, estabelecida pelo modelo dos AA e transmitida por uma linguagem comum a todos os grupos. Assim, para o autor, o alcoolismo é assumido como uma doença física e moral, que envolve o ser humano completo, e que pode ser vencida pelos adoecidos por meio da narrativa constante e reatualizada das suas histórias de vida, que permite enunciar desta feita as palavras salvadoras que eles nunca devem esquecer.

No final, temos a vívida impressão de termos tocado em temas caros e preciosos dentro da agenda das ciências sociais em saúde, o que descortina todo um painel de pesquisas possíveis e de temas abordáveis no campo da saúde.

O livro da professora Canesqui auxilia aos interessados em estudar o tema das doenças crônicas pela perspectiva da Sociologia e da Antropologia. É um livro simples, dinâmico e versátil, para ser trabalhado tanto por profissionais como por alunos dos mais diferentes níveis de conhecimento, e que facilita a aproximação com a área das ciências sociais na saúde. Nesse sentido, os textos compõem um manual que pode ser usado didaticamente em salas de aula.

Com esta contribuição, ela novamente nos guia generosamente nos meandros das relações entre a saúde e o adoecimento na moderna sociedade brasileira.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Ago 2012
  • Data do Fascículo
    Jun 2008
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