Acessibilidade / Reportar erro

Política, direitos humanos e Aids: uma conversa com Paulo Roberto Teixeira

ENTREVISTA

Política, direitos humanos e Aids: uma conversa com Paulo Roberto Teixeira

Martha San Juan França

Jornalista. Centro de Estudos Simão Mathias de História da Ciência, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Rua Caio Prado, 102 Consolação, São Paulo, SP, Brasil. 01.303-000. marthasj@ndata.com.br

Palavras-chave: AIDS. Reforma sanitária. História da Ciência.

Key words: Aids. Sanitary reform; History of Science.

Palabras clave: Aids. Reforma sanitaria. Historia de la Ciencia.

O início da década de 1980 no Brasil coincidiu com o movimento de transição democrática, com eleição direta para governadores e vitória esmagadora da oposição em dez dos 22 estados nas primeiras eleições democráticas desse período (1982). Com propostas de mudanças, sobretudo nas áreas sociais, os governos da oposição tinham, em seus quadros, ativos militantes do movimento da reforma sanitária. Em São Paulo, foi eleito Franco Montoro, um expoente do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que escolheu, como secretário estadual da Saúde, o médico João Yunes, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), representante do movimento sanitarista, que já havia ocupado diversos cargos públicos no Ministério da Saúde e em órgãos do governo estadual.

No ano seguinte, começaram a aparecer no Estado de São Paulo os primeiros casos de Aids.1 1 A Aids foi identificada pela primeira vez no Brasil em 1982, embora um caso tenha sido reconhecido retrospectivamente no Estado de São Paulo em 1980. Mas, considerando o período de incubação do vírus, pode-se deduzir que a doença tenha aparecido no país no final da década de 1970 e se difundido, em um primeiro momento, entre as principais áreas metropolitanas do centro-sul, seguindo-se de um processo de disseminação para as diversas regiões do país na primeira metade da década de 1980. Vide Euclides Ayres Castilho & Pedro Chequer, "Epidemiologia do HIV/Aids no Brasil ", in PARKER, R. (Org), Políticas, instituições e Aids: enfrentando a epidemia no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/ABIA, 1997, p.17. Notícias sobre a doença já vinham sendo acompanhadas pela imprensa brasileira desde as suas primeiras manifestações nos Estados Unidos, embora sem grande destaque. Mas, em 4 de junho de 1983, com a morte do costureiro Marcos Vinicius Gonçalves, o Markito, em Nova York, onde se submetia a tratamento, a Aids passou a ser amplamente divulgada. A partir daí, essa doença, considerada norte-americana e rica, invadiu de maneira sensacionalista o cotidiano dos brasileiros.

Dois meses antes da morte de Markito, representantes da comunidade gay, acompanhados da dermatologista Valéria Petri, da então Escola Paulista de Medicina (atual Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP), solicitaram ao secretário João Yunes, recém-empossado, que a Secretaria de Saúde estudasse o assunto Aids e se pronunciasse a respeito, no sentido de evitar o pânico. Yunes convocou um grupo de técnicos para discutir o assunto e indicar caminhos para enfrentar a doença.

Na época, o sanitarista Paulo Roberto Teixeira era diretor da Divisão de Hansenologia e Dermatologia Sanitária da Secretaria de Saúde e estava se preparando para expandir o trabalho que realizava para abranger também as doenças sexualmente transmissíveis. A chegada da Aids precipitou e completou essa sua intenção. Foi assim que, em 1983, o sanitarista, então com 34 anos, foi chamado para coordenar o primeiro programa de combate à Aids no Brasil. Foi o início de uma carreira até hoje associada ao combate à epidemia, aos direitos dos doentes e a políticas de saúde abrangentes em sintonia com o Sistema Único de Saúde (SUS).

Durante esse tempo, Teixeira coordenou o programa paulista em vários momentos (1983 a 1987; 1990 a 1991; 1995 a 1996). Desenvolveu trabalhos de consultoria para a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) em 1994, e foi consultor técnico do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) para a América Central e Cone Sul (1996 a 1999). Na função de coordenador do Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde (2000 a 2003), propôs a quebra de patentes dos remédios importados contra a Aids, caso os preços não baixassem, e iniciou a discussão, no cenário internacional, sobre a integralidade das ações (assistência e prevenção) contra a Aids, opondo-se aos consensos internacionais da época que pregavam apenas a prevenção (sem a distribuição de remédios) nos países pobres e em desenvolvimento. Sob sua coordenação, o programa brasileiro - considerado a mais relevante ação de saúde pública em 2002 - foi agraciado com o Prêmio Bill e Melinda Gates, no valor de US$ 1 milhão.

Em 2003, Teixeira dirigiu o Programa de Aids da Organização Mundial da Saúde (OMS), período no qual se envolveu nas disputas pela ampliação do acesso aos medicamentos anti-retrovirais em países pobres, que culminaram com a Declaração de Doha, na qual a Organização Mundial do Comércio reconheceu que o acordo internacional de patentes não deve se sobrepor às questões de saúde pública. Atualmente, é coordenador sênior do Programa Estadual de DST/Aids em São Paulo e assistente técnico da Coordenação de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. É também consultor do Unaids, OMS e membro do Comitê Internacional para Aids e Governabilidade na África.

A trajetória do sanitarista até a criação do Centro de Referência e Treinamento de Aids (CRT/Aids) de São Paulo, em 1988, foi reconstituída por meio de entrevistas informais, realizadas em três etapas e que levaram algumas horas.2 2 As entrevistas fazem parte de minha tese de doutorado Ciência em tempos de Aids: uma análise da resposta pioneira de São Paulo à epidemia, no Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência da PUC/SP, 2008. Contam desde a sua vida como estudante em plena ditadura militar, na Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (UNESP), de Botucatu, até a criação do CRT/Aids, resultado de sua luta por um programa completo de pesquisa, assistência, educação e prevenção da Aids. Como pano de fundo, as entrevistas apresentam o clima da época e sua influência sobre a história da epidemia no Brasil.3 3 A metodologia das entrevistas seguiu de perto a linha de pesquisa do NEHO-USP (Núcleo de Estudos em História Oral), em que fica a critério do entrevistado a seleção dos fatos mais relevantes de sua história. O objetivo é analisar as múltiplas dimensões dos acontecimentos, com todas as suas conotações ética, sociais, emocionais e intelectuais, além de incorporar a experiência pessoal à História. Vide: B. MEIHY. J.C.S.; HOLANDA, F. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto, 2007, p.34-6.

A reconstituição daquele período nas palavras de Teixeira busca refletir o que Ortega y Gasset chamou de circunstância e que levou a sua participação na história da Aids da maneira como ocorreu. Só para lembrar, segundo o autor espanhol,

Circunstância e decisão são os dois elementos radicais de que se compõe a vida. A circunstância - as possibilidades - é o que da nossa vida nos é dado e imposto. Isso constitui o que chamamos mundo [...] Não somos arremessados para a existência como a bala de um fuzil, cuja trajetória está absolutamente pré-determinada. A fatalidade em que caímos ao cair neste mundo [...] consiste em todo o contrário. Em vez da imposição de uma trajetória, são impostas várias e, conseqüentemente, somos forçados a escolher [...]. É, pois, falso dizer que na vida `decidem as circunstâncias'. Pelo contrário: as circunstâncias são o dilema, sempre novo, ante o qual temos de nos decidir. Mas quem decide é o nosso caráter.4 4 ORTEGA & GASSET. A rebelião das massas. São Paulo: Martins Fontes, 1987. p.47-8.

A seguir, a reconstituição das entrevistas.

"Eu nasci em Alvares Machado, no interior de São Paulo, e fiz Medicina na Unesp de Botucatu, na época, uma faculdade nova, que havia sido criada por várias razões políticas regionais, mas que tinha uma característica interessante: ela era composta por um grupo de docentes pertencentes ao movimento de reforma universitária que ocorria desde a década de 1960, coincidindo com a luta, a partir de 1984, pela redemocratização. Era um setor da universidade, que se manifestava também na medicina, inconformado com as diretrizes, com a estrutura, com a forma de organização, com os currículos que então existiam.

Botucatu foi criada nesse cenário e nasceu como uma alternativa de ensino para muitos professores jovens, em especial da USP, que tinham como referência concreta os princípios de organização da Universidade de Brasília, por Darcy Ribeiro. Eram pessoas que desejavam uma revisão completa da estrutura universitária, da hierarquia do poder, pelo fim da cátedra e da chefia permanente, que defendiam uma aproximação da universidade com a população, com a saúde pública e a orientação dos currículos para questões de interesse maior da população.

Esses professores organizaram uma faculdade que, por princípio, era diferente das outras. Eles eram mais jovens, os departamentos elegiam os docentes, havia rotatividade e, de um modo geral, tinha uma proposta muito forte em relação à medicina preventiva. Ao mesmo tempo, naquela época, década de 1960, esse mesmo movimento de reformas, mais especificamente na saúde, deu origem ao movimento sanitarista brasileiro em vários estados, mas principalmente São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Esse movimento era composto de vários profissionais de saúde pública das universidades (não necessariamente da medicina), que procuravam rever as políticas nacionais de saúde e propor uma política baseada na democratização, na garantia do acesso, na priorização das questões da saúde pública, na responsabilização do Estado. O grande mentor e pensador desse movimento era o Sérgio Arouca.

Botucatu tinha, além desse clima geral, um centro acadêmico muito ativo. Eu entrei na faculdade em 1968 e logo me engajei no movimento estudantil. Participei de todas as atividades do movimento, de 1968 a 1973. Fui processado e preso duas vezes. Na primeira vez, foi em 1968, no final do primeiro ano de faculdade. Eu fui preso com outras pessoas durante trinta dias no DOPS, na época em que o movimento estudantil era mais intenso. Nós, de Botucatu, estávamos vinculados ao grupo da Catarina Meloni. Fizemos greve, manifestação de rua, ocupação da praça. Na época em que fui preso, eu era secretário-geral do centro acadêmico.

Depois disso, continuei no movimento estudantil durante os seis anos da faculdade e, muito cedo, me incorporei à Ação Popular (AP), partido clandestino de esquerda que teve suas origens na Juventude Operária Cristã - JOC, do qual participei até 1974. No período de desarticulação da AP pela repressão, eu fui preso, seqüestrado, fiquei oito dias no DOI-CODI. Depois disso, fiquei um pouco "de molho " e só voltei a participar do movimento geral em torno do MDB e da anistia, em 1976. Também passei a me envolver no apoio ao movimento sindicalista do ABC, fiz parte do grupo que criou o PT, já trabalhando na área da saúde. Esse grupo era fortemente influenciado pelo movimento sanitarista, que cresceu e assumiu o poder na saúde pública brasileira na década de 1980. E havia muita gente de Botucatu no movimento, talvez a faculdade que mais formava médicos sanitaristas.

Em 1974, eu vim para São Paulo fazer residência em Dermatologia, interessado em Dermatogia Sanitária, especialmente em dermatoses profissionais, na Escola Paulista de Medicina, atual Unifesp. Havia um convênio entre a Unifesp e a Fundacentro, um órgão do Ministério do Trabalho que havia aberto um setor de dermatoses profissionais. Não era propriamente uma residência, mas um sistema especial de trabalho no qual eu dedicava metade do meu tempo ao setor de dermatoses profissionais e metade à formação em dermatologia geral.

Por conta disso, fui fazer o curso de especialização em medicina do trabalho na Fundacentro. Mas como tudo na área do trabalho, a Fundacentro era controlada pelos militares e o diretor-geral na época era um general reformado. Depois que pegaram a minha ficha no DOI-CODI, a primeira coisa que fizeram foi me demitir, e a própria Escola Paulista de medicina também quis me mandar embora. Hoje, eu até penso em entrar com um processo na Comissão de Anistia por causa disso. Não pela perda econômica, mas pelo registro histórico de como as pessoas foram prejudicadas. Mas fico meio constrangido pela maneira como essa questão está sendo conduzida.

De qualquer jeito, essa questão política mudou o meu rumo. Eu tive de me concentrar em dermatologia geral e desistir da dermatologia ocupacional. Fiz residência entre 1974 e 1977 na Paulista e, em 1978, fiz concurso e entrei como funcionário na Secretaria de Saúde do Estado, que trabalhava no controle de lepra ou hanseníase, sendo designado para a Divisão de Hansenologia e Dermatologia Sanitária do Instituto de Saúde. A questão da hanseníase hoje saiu do cenário público, mas era e continua sendo um dos maiores problemas de saúde pública no Brasil. Naquele mesmo ano, fui fazer o curso de Saúde Pública na USP.

O governador era o Paulo Maluf e o secretário da Saúde o Adib Jatene, uma pessoa muito sábia que, na minha opinião, nunca teve uma proposta pessoal de saúde pública, até hoje tem uma formação hospitalar, mas que se rodeou de sanitaristas e deu espaço para que eles se manifestassem. Era o auge do movimento sanitarista em São Paulo e, entrando na Secretaria, eu participei de todos os movimentos dos funcionários, das greves, das lutas por salário. Em 1982, houve a primeira eleição para governadores como parte do processo de redemocratização e o Franco Montoro foi eleito, escolhendo para secretário de Saúde o João Yunes, um dos companheiros do Arouca no movimento sanitarista. Eu digo sempre que os sanitaristas tomaram o poder em São Paulo.

No finalzinho de 1982, começo de 1983, começaram a aparecer os primeiros casos de Aids no Brasil, embora não se soubesse na época o que era. Um grupo de militantes pelos direitos dos homossexuais procurou o Yunes para cobrar uma posição sobre o problema, que começava a ter repercussão no âmbito da imprensa. Eu era muito amigo do João Silvério Trevisan, um dos participantes desse grupo. Em 1976, ele tinha acabado de chegar de Berkeley, nos Estados Unidos, e nós organizamos na minha casa algumas reuniões informais para discutir questões relacionadas com a organização de um grupo pelos direitos dos homossexuais. Depois disso, eu fui para a França fazer um estágio, que acabei não fazendo por razões pessoais, e voltei no começo de 1977, quando comecei a me preparar para o exame de especialidade em Dermatologia. Nesse intervalo, o Trevisan e o Celso Cury, outro participante do movimento, tinham voltado a se reunir e eu me incorporei ao grupo. Fundamos o grupo Somos, do qual participei até 1979, quando saí por questões mais internas e também porque a militância na área de saúde me puxava muito. Mas quem ler o livro do Edward McRae sobre o movimento homossexual em São Paulo, que conta a história do grupo Somos, vai ver que um dos personagens era um médico da saúde pública.5 5 MACRAE, E. O militante homossexual no Brasil da "Abertura ". Tese (Doutorado em Antropologia) - Departamento de Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1985. p.220.

Mas, de 1979 a 1983 eu não voltei a ter contato com o grupo, embora continuasse sendo amigo de todos. Por isso, foi uma mera coincidência o fato de ter começado o programa. Na verdade, por analogia, considerando que o grupo chamado de risco era o mesmo das doenças sexualmente transmissíveis, e como eu já estava estruturando um serviço de doenças sexualmente transmissíveis na Divisão de Hansenologia, fui designado para organizar uma comissão para analisar o problema e fazer uma proposta de trabalho. Eu acho que, se o grupo de risco fosse de hanseníase, eu também teria me dedicado da mesma maneira, da mesma forma que 99,9% das pessoas que militavam naquela área, que trabalhavam comigo e não tendo nenhum tipo de convivência com o grupo de homossexuais.

A comissão que foi organizada era composta de médicos sanitaristas, infectologistas, especialistas da área de laboratório e social. Ela concluiu que, embora fossem poucos casos confirmados no Brasil, era um agravo inusitado à saúde que estava provocando pânico na população e deveria ser investigado pelo Estado. Lendo a literatura internacional e conversando com as pessoas que tinham visto esses casos aqui e com a comunidade dos homossexuais, eu não tinha dúvida de que esse agravo era ameaçador e que, mesmo que ele não viesse a ocorrer em larga escala e se constituir um grande problema de saúde pública, era extremamente grave e estava provocando pânico, principalmente nos chamados grupos de risco de homossexuais. Portanto, era uma responsabilidade do Estado intervir, fazendo vigilância epidemiológica, investigando para saber a dimensão do problema e difundindo informações que pudessem tornar a questão mais objetiva.

Minha principal aliada nessa época era a Walkyria Pereira Pinto, amiga, médica infectologista, até hoje trabalhando no Hospital das Clínicas. A Walkyria havia estudado na USP, era contemporânea minha e viveu todo o movimento estudantil. Mas também ouvi outras pessoas, o Vicente Amato, todos aqueles que, de alguma forma, tinham alguma contribuição a dar sobre o tema. Eu convidei também duas pessoas do grupo de militantes homossexuais - o Trevisan e o Jean Claude Bernardet - para participar da Comissão que tocaria o programa, mas eles não aceitaram. Teria sido a experiência mais remota de participação oficial da comunidade numa ação do Estado, mas eles preferiram manter isenção. Apesar disso, eles participaram do processo de elaboração, iam às reuniões, sugeriam estratégias.

Havia naquela época um grupo que se chamava Outra Coisa, que passou a ser a nossa extensão junto à comunidade homossexual, tudo o que nós fazíamos - boletins, textos - eram distribuídos por eles. Foram eles que deram a idéia de fazer reuniões públicas para dar informações e esclarecimentos à comunidade no anfiteatro da Secretaria de Saúde, todas as terças-feiras à noite. No final de semana, o grupo fazia a divulgação das reuniões com filipetas na noite gay. Essa participação foi muito importante para imprimir no programa a marca de luta contra o preconceito e a discriminação. Dessas reuniões, surgiu o Gapa, a primeira ONG de apoio aos doentes de Aids.

De um modo geral, o programa foi bem aceito na Secretaria. Havia apenas duas correntes discordantes - uma dentro da medicina e da saúde pública que nos criticava por dedicar atenção e energia a "um problema restrito que era mínimo, que não era de saúde pública, representado por grupos que não mereciam atenção, que eram marginais e pecadores ". Foi representado por um artigo que saiu na Veja na ocasião, dizendo que o Disque Aids, o sistema de informações que criamos por telefone, era "uma questão tão importante como instalar um serviço de ponte de safena no agreste de Pernambuco ". Houve também um documento que desapareceu, acho que foi deliberadamente destruído, aprovado pela congregação da Faculdade de Saúde Pública da USP, de advertência ao João Yunes, que também era professor da faculdade, dizendo que ele estava investindo recursos da Secretaria em questões menores que não eram do interesse da população.

Essa questão também era muito levantada pela própria classe de sanitaristas. Eu participei de muitas reuniões nas várias regiões de São Paulo e estive nas reuniões públicas do movimento para apresentar o programa da Aids e debater por que não era unânime a idéia de que a proposta do programa fosse adequada na época. Havia quem não percebesse a urgência ou a magnitude necessária à intervenção do Estado. Foi um debate muito intenso, mas ideológico e não preconceituoso como o outro. Era até coerente com o período em que a gente estava vivendo e não houve nenhum boicote ou enfrentamento por causa disso. Só que nós, do Programa, tivemos que trabalhar muito, indo a essas assembléias, fazendo documentos, apresentando e defendendo nossas posições.

E outra corrente, dentro da comunidade gay, representada pelo Nestor Perlongher, um antropólogo e escritor da Unicamp que defendeu durante anos (ele tem artigos que escrevia contra mim) que nós estávamos chamando a atenção para um problema que não era dos homossexuais, como forma de reprimir a manifestação homossexual. Foi um movimento que serviu de contraponto ao debate, mas não chegou a ser forte do ponto de vista da opinião pública.

O primeiro caso real que nós vimos era de uma pessoa que estava internada no Hospital das Clínicas, mas eu não soube muita coisa. Ao segundo caso, também do Hospital das Clínicas, tive mais acesso porque a família, sabendo que eu estava envolvido com o Programa, pediu que fosse vê-lo. Desde o começo, por tudo que eu havia lido, havia uma vinculação tão clara da síndrome com a transmissão sexual e sanguínea que eu nunca tive medo no âmbito pessoal. Sentia, sim, muita inquietação em termos de desdobramentos. E, claro, eu, como todo mundo que participava do programa, sofria muito com a impotência de não ter como tratar os doentes, saber que eles iam morrer. Principalmente quando começaram a aparecer casos e mais casos e as pessoas atacavam dizendo que estávamos fazendo um serviço inútil.

Muitas pessoas amigas morreram, e eu estava envolvido como amigo e como médico, além do meu papel de destaque na luta contra a Aids. Eu me tornei amigo de muitos doentes que antes não conhecia, sofria uma demanda muito forte não só da parte deles como de seus familiares. Naquela época, tinha que defender o trabalho na área de saúde pública, tinha que defender no âmbito público, tendo que mobilizar o apoio da opinião pública e da imprensa, que era fundamental porque nós não tínhamos dinheiro para trabalhar. No começo havia poucos doentes, mas em 1985 a situação já era dramática. Não havia leitos, ambulatório, as pessoas morriam na maca.

Na época em que tudo começou, eu tinha 34 anos, não tinha carreira acadêmica nenhuma, mas não tinha dúvidas de que estava fazendo certo. Tinha dúvida sobre os passos da estratégia, mas não sobre a questão geral de enfrentamento da Aids. Isso me dava energia para enfrentar o desgaste e me levava para a frente. Eu me lembro que, ainda na época do Yunes, em 1983, organizaram uma reunião com professores titulares da Medicina da USP para eu apresentar o que sabíamos sobre a Aids. Eu pensei, nós todos estamos partindo do zero, portanto, os títulos deles não contam. Claro que eles têm mais experiência na área clínica, mas do ponto de vista do fenômeno eu estou estudando muito mais e acho que sei do que estou falando.

Então, eu não tinha dúvidas em relação ao problema, à política, às perspectivas. E buscava ajuda onde era necessário, eu não pretendia saber de tudo. Pedi para a Walkyria vir trabalhar comigo, para ser meu braço direito, e para a Mirthes Ueda cuidar da parte de laboratório.6 6 Walkyria Pereira Pinto e Mirthes Ueda (bioquímica do Instituto Adolfo Lutz) foram convidadas para dar retaguarda ao programa, que deveria consistir em um trabalho integrado de epidemiologia, prevenção, vigilância, apoio psicológico, assistência médica e laboratorial. O tempo todo conversava com as Ongs e sabia que eu poderia conduzir o processo se conseguisse essa rede de apoio. Mas havia períodos de esgotamento, de exaustão. Já em 1984, 85, eu era referência, era acordado de madrugada para resolver problemas de internação. Eram ligações de pessoas que precisavam de leito, estavam com a ambulância na porta sem saber para onde ir, ou de familiares que ligavam desesperados porque o filho, o irmão estava morrendo. Foi um período bem duro.

E a nossa estrutura não conseguia avançar no mesmo passo. Por que não conseguia avançar? É importante registrar que, até 1986, a Secretaria da Saúde era responsável só pela rede de saúde pública. Tudo aquilo que era assistência médica fazia parte do Inamps e todo o dinheiro da saúde era do Inamps, que se negava a tomar conhecimento da epidemia de Aids. Eles usavam um raciocínio maroto dizendo que o Inamps era responsável pela assistência e que problemas de saúde pública cabiam às secretarias de saúde. E, embora o Yunes tenha feito o que foi possível, não existiam recursos para contratar médicos, psicólogos, não havia dinheiro, pois a Secretaria da Saúde tinha que cuidar também de vacinas, leite em pó, e muitas outras coisas. Uma das pessoas importantes para mudar esse quadro foi a Lair Guerra de Macedo, quando assumiu a coordenação-geral do programa em 1986.7 7 Lair Guerra de Macedo foi a primeira coordenadora do Programa Nacional de DST/Aids, criado em 1985, dois anos depois do programa paulista, até 1989. Ficou afastada do programa durante o governo Collor e voltou à coordenação de 1993 a 1996, quando sofreu um grave acidente de carro e licenciou-se da coordenação. São Paulo foi um dos primeiros estados a constituir o SUDs, em 1987 e 1988, e o primeiro em que a Secretaria da Saúde tomou posse dos hospitais do Inamps.

O que me deixava indignado na época era lidar com hospitais enormes que me diziam que não tinha uma cama para internar um paciente, que mandavam paciente para casa. Ficava indignado por saber que era necessária uma intervenção nos bancos de sangue e não conseguíamos porque aquilo era uma máfia, um bando de bandidos, criminosos, que estavam há décadas se aproveitando do país. Para se ter uma idéia, em 1988, nós entrávamos nos bancos de sangue com polícia, de camburão, para abrir os registros e arquivos. E a epidemia só aumentava. Tinha pessoas que acabei hospedando em minha casa porque não tinham onde ficar. Um deles ficou três meses na minha casa, morando comigo. A minha empregada era uma santa, cuidava dele porque não tinha quem cuidasse. A coisa só acalmou em 1988, quando criamos o CRT, conseguimos controlar os bancos de sangue e eu fui organizando a minha vida de uma maneira mais pacífica.

Os três anos entre 1985 e 1988 foram os piores por causa da explosão no número de casos, que deixou bem claro os limites de nossa estrutura. Em 1987, saiu o Montoro e entrou o Orestes Quércia, que chamou o José Aristodemo Pinotti para secretário da Saúde. A primeira medida que ele tomou, em abril, foi me demitir. Por quê? Porque eu não era uma pessoa compatível com o mundo em que ele vivia. Naqueles anos anteriores, a questão da Aids teve muita repercussão e houve reclamações, já no tempo do Montoro havia gente pedindo a minha cabeça. Mas como este era uma pessoa mais séria e democrática, se reuniu com o Yunes que apresentou todas as explicações sobre o trabalho que estávamos fazendo e defendeu a minha estratégia de diálogo franco com os homossexuais, da criação do Disque Aids.

Mas eu sabia que existia um conceito, não sei se posso usar esse termo, entre muitas pessoas da saúde pública, entre políticos, de que eu era meio promíscuo, meio aberto demais para a marginalidade. Diziam que a Secretaria da Saúde tinha virado um antro de veados, de travestis, de usuários de drogas. As minhas convicções não eram compatíveis com as do Pinotti, que me mandou embora e passou a direção do programa para o Paulo Ayrosa Galvão, que era uma pessoa tradicional. O Ayrosa era diretor do Emílio Ribas há décadas, uma pessoa bastante conservadora que, sem entrar no mérito, mudou tudo, acabou o serviço, fechou o ambulatório do Instituto de Saúde.

Não durou muito tempo e houve repercussões. As pessoas começaram a morrer de uma forma ainda mais desastrosa do que antes. Em agosto, setembro, começaram a aparecer na imprensa os relatos de casos de omissão de socorro e mortes em ambulância, um desastre total. Enquanto isso, eu estava encostado, não podiam me mandar embora porque era concursado, mas não sabia o que fazer daí em diante. E vendo as notícias na imprensa e as Ongs como o Gapa fazendo uma pressão enorme sobre o Estado. Passaram-se seis meses e eu fui convidado pelo Jonathan Mann para participar da equipe que estava organizando o Programa Mundial de Luta Contra a Aids em Genebra. Eu fui apresentado a ele em 1986, quando veio a São Paulo para conhecer o nosso programa.

Tanto a notícia da minha demissão quanto o convite do Jonathan Man saíram na imprensa na mesma época em que se denunciavam as desgraças que estavam acontecendo. Eu lembro que o Valcir Carrasco tinha uma coluna na Folha de S. Paulo ou na Folha da Tarde que dizia algo como "em terra de cego, quem tem olho é posto na rua ". Isso criou um problema para o Pinotti. Tanto que, em outubro, novembro, ele mandou mensagens dizendo que queria conversar comigo. Ele queria que eu voltasse e, ao mesmo tempo, não autorizou a minha ida a Genebra - como eu era funcionário público, precisava de sua autorização.

Isso mudou o cenário e, na primeira semana de dezembro, fui conversar com ele e foi uma conversa muito tranqüila. Ele disse: "olha, eu não posso te colocar na coordenação do programa porque isso seria politicamente muito desgastante para mim, mas também não posso abrir mão de você porque estou vendo que preciso do seu trabalho ". Ele não deve nem se lembrar dessa conversa porque é o tipo de pessoa que apaga da memória essas coisas. Ele acha, por exemplo, que é o grande inventor do centro de referência.

Então, ele pediu a mim, à Maria Eugênia, à Walkyria e à Rosana um plano de emergência para resolver a situação crítica em que estava o programa de Aids e consertar o estrago. Nós aproveitamos a oportunidade e aí sim, com carta branca dele em todos os sentidos, inclusive financeiro, montamos o centro de referência e reorganizamos todo o programa do Estado com bases muito mais avançadas.8 8 Maria Eugênia Lemos Fernandes e Rosana Del Bianco eram médicas infectologistas contratadas pelo programa em 1984. Esse foi o segundo capítulo do combate à Aids no Estado de São Paulo.

Em 1989, apareceu o AZT e São Paulo foi o primeiro estado a oferecer o remédio na rede pública. Antes do AZT, a sobrevida não passava de seis meses e só se podia garantir o tratamento de doenças oportunistas, aquelas decorrentes da infecção pelo HIV. Não havia testes, o diagnóstico era clínico. Depois veio o DDI, o 3TC, mas a virada só se deu com a chegada do coquetel, em 1995-1996, e isso só ocorreu também no Brasil porque se construía uma infra-estrutura havia 13 anos. Daí a importância de termos confrontado questões difíceis como drogas, sexualidade, estigma. Por isso, colhemos os melhores resultados. Olhando para trás, tenho alívio, o que faz minimizar os dez primeiros anos que foram trágicos e as perdas imensas.

Até hoje existem críticas em relação ao programa de Aids, a propósito de seu caráter vertical, principalmente nos últimos anos. Eu acho que essa é uma questão de diferença de análise. Na minha opinião, não só a Aids, mas várias questões de saúde pública, não podem esperar a construção do SUS, que é um processo de décadas, para atuar de maneira mais efetiva. O caráter de urgência de determinados problemas de saúde não pode ser desconsiderado e, nesse sentido, a ação vertical é absolutamente correta. Isso foi feito com o programa de Aids e, a partir daí, houve sim um processo de descentralização bastante intenso. Hoje, ele está implantado em todo o país, houve uma aproximação maior com outros programas de saúde, principalmente com saúde mental, sexual, reprodutiva, mas, sem dúvida, ele mantém sua identidade e autonomia, também por conta de uma produção maior.

Eu acho também que não existe um momento em que se pode dizer com segurança que agora o problema emergencial está resolvido, vamos integrar e deixar que a rede pública cuide de tudo. Foi o erro que ocorreu com a Saúde da Mulher. No Estado de São Paulo, foi prematuramente decretada a integração na rede que não estava preparada para receber o programa sem uma referência mais centralizada. Não existe um diagnóstico definitivo que necessite colocar em contraposição o fortalecimento do SUS e sua verticalização. O que o Brasil fez, principalmente nos últimos seis anos, foi um processo de municipalização, de descentralização por estado, integração dos recursos nos orçamentos locais e, eu digo com segurança, a Aids caminhou na construção do SUS e avançou mais que muitas outras áreas básicas.

Eu continuo defendendo que, não só a Aids, mas uma série de problemas de saúde, necessitam no Brasil de um tratamento menos esquemático. As ações, a intervenção e o acesso têm que se dar no nível da rede, mas também necessitam de instâncias secundárias e de instâncias formuladoras e de referência, que a gente determinou no programa de Aids do Estado e no programa nacional. O Brasil tem o privilégio de ter um sistema único de saúde aprovado na Constituição, o que tornou o rumo mais claro - não mais fácil - que deveria ser tomado em relação à Aids em todos os níveis, na medida em que a nossa referência é um sistema único. Outros países, que têm ainda aquele sistema de segurados, não segurados, saúde pública para pobres, continuam enfrentando problemas.

Eu acredito que os princípios do SUS são válidos para o mundo inteiro, tanto que - progressivamente, gradativamente - mais países no mundo, na África e na Ásia, estão eliminando o pagamento das ações relacionadas à Aids. A OMS ainda não chegou a adotar essa posição como sendo oficial, porque tem que ser feita em cima de um consenso de todos os países. Mas tem coletado e divulgado estudos demonstrando que o pagamento pelo tratamento, por menor que seja, é uma barreira para a prevenção e os cuidados. "

Recebido em 07/11/08.

Aprovado em 07/11/08.

  • 1
    A Aids foi identificada pela primeira vez no Brasil em 1982, embora um caso tenha sido reconhecido retrospectivamente no Estado de São Paulo em 1980. Mas, considerando o período de incubação do vírus, pode-se deduzir que a doença tenha aparecido no país no final da década de 1970 e se difundido, em um primeiro momento, entre as principais áreas metropolitanas do centro-sul, seguindo-se de um processo de disseminação para as diversas regiões do país na primeira metade da década de 1980. Vide Euclides Ayres Castilho & Pedro Chequer, "Epidemiologia do HIV/Aids no Brasil ", in PARKER, R. (Org), Políticas, instituições e Aids: enfrentando a epidemia no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/ABIA, 1997, p.17.
  • 2
    As entrevistas fazem parte de minha tese de doutorado Ciência em tempos de Aids: uma análise da resposta pioneira de São Paulo à epidemia, no Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência da PUC/SP, 2008.
  • 3
    A metodologia das entrevistas seguiu de perto a linha de pesquisa do NEHO-USP (Núcleo de Estudos em História Oral), em que fica a critério do entrevistado a seleção dos fatos mais relevantes de sua história. O objetivo é analisar as múltiplas dimensões dos acontecimentos, com todas as suas conotações ética, sociais, emocionais e intelectuais, além de incorporar a experiência pessoal à História. Vide: B. MEIHY. J.C.S.; HOLANDA, F.
    História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto, 2007, p.34-6.
  • 4
    ORTEGA & GASSET.
    A rebelião das massas. São Paulo: Martins Fontes, 1987. p.47-8.
  • 5
    MACRAE, E.
    O militante homossexual no Brasil da "Abertura ". Tese (Doutorado em Antropologia) - Departamento de Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1985. p.220.
  • 6
    Walkyria Pereira Pinto e Mirthes Ueda (bioquímica do Instituto Adolfo Lutz) foram convidadas para dar retaguarda ao programa, que deveria consistir em um trabalho integrado de epidemiologia, prevenção, vigilância, apoio psicológico, assistência médica e laboratorial.
  • 7
    Lair Guerra de Macedo foi a primeira coordenadora do Programa Nacional de DST/Aids, criado em 1985, dois anos depois do programa paulista, até 1989. Ficou afastada do programa durante o governo Collor e voltou à coordenação de 1993 a 1996, quando sofreu um grave acidente de carro e licenciou-se da coordenação.
  • 8
    Maria Eugênia Lemos Fernandes e Rosana Del Bianco eram médicas infectologistas contratadas pelo programa em 1984.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2008
    UNESP Distrito de Rubião Jr, s/nº, 18618-000 Campus da UNESP- Botucatu - SP - Brasil, Caixa Postal 592, Tel.: (55 14) 3880-1927 - Botucatu - SP - Brazil
    E-mail: intface@fmb.unesp.br