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Porque os alcoólicos são anônimos? Anonimato e identidade no tratamento do alcoolismo

Why are alcoholics anonymous? Anonymity and identity in treating alcoholism

¿Por qué los alcohólicos son anónimos? Anonimato e identidad en el tratamiento del alcoholismo

Resumos

Pretende-se contribuir para a compreensão do papel do anonimato no modelo terapêutico desenvolvido pela irmandade de Alcoólicos Anônimos (A.A.) para dar conta da "doença do alcoolismo". Realizou-se uma pesquisa bibliográfica na literatura produzida pela irmandade sobre o álcool e o alcoolismo, bem como uma pesquisa qualitativa em grupos de A.A. localizados na periferia da cidade de São Paulo - Brasil -, com realização de entrevistas e a observação de diversas atividades promovidas pelos seus membros. O modelo terapêutico de A.A. é concebido como um sistema cuja realidade simbólica é fundamental na representação do alcoolismo como uma "doença crônica e fatal" e, consequentemente, na construção da identidade de "doente alcoólico". Com efeito, o anonimato opera como um mecanismo simbólico fundamental no processo saúde-doença vivenciado dentro de A.A., ligando-se diretamente à fabricação da identidade do "doente alcoólico em recuperação" e, por essa via, à reconstrução subjetiva dos membros da irmandade.

Alcoólicos Anônimos; Alcoolismo; Anonimato; Identidade; Ritualde Passagem


The aim here was to contribute towards understanding the role of anonymity in the therapeutic model developed by the Alcoholics Anonymous (AA) fellowship for caring for the "disease of alcoholism". A bibliographic search was conducted in the literature produced by AA on alcohol and alcoholism. A qualitative investigation was also carried out among AA groups located on the outskirts of the city of São Paulo, Brazil. Interviews were held and several activities undertaken by its members were observed. AA's therapeutic model is conceived as a system in which symbolic reality is fundamental for representing alcoholism as a "chronic and fatal disease" and consequently for constructing the identity of "individuals with alcohol sickness". In fact, anonymity works as a fundamental symbolic mechanism in the healthdisease process experienced within AA. It links directly to constructing the identity of "individuals with alcohol sickness undergoing recovery" and consequently to subjectively reconstructing the fellowship's members.

Alcoholics Anonymous; Alcoholism; Anonymity; Identity; Rite of Passage


Se pretende contribuir para la comprensión del papel del anonimato en el modelo terapéutico desarrollado por la hermandad de Alcohólicos Anónimos (A.A.) para dar cuenta de la "enfermedad del alcoholismo". Se ha realizado una investigación bibliográfica en la literatura producida por la hermandad sobre el alcohol y el alcoholismo, así como una pesquisa cualitativa en grupos de A.A. localizados en la periferia de la ciudad de São Paulo - Brasil - con realización de entrevistas y observación de diversas actividades promovidas por sus miembros. Se concibe el modelo terapéutico de A.A. como un sistema cuya realidad simbólica es fundamental en la representación del alcoholismo como una "enfermedad crónica y fatal" y consecuentemente en la construcción de la identidad "enfermo alcohólico". En efecto, el anonimato opera como un mecanismo simbólico fundamental en el proceso saludenfermedad vivenciado dentro de A.A. vinculándose directamente a la elaboración de la identidad del "enfermo alcohólico en recuperación" y, por esta vía, a la reconstrucción subjetiva de los miembros de la hermandad.

Alcohólicos Anónimos; Alcoholismo; Anonimato; Ritual de paso


ARTIGOS

Porque os alcoólicos são anônimos? Anonimato e identidade no tratamento do alcoolismo* * Elaborado com base em Campos (2005), pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, 140194/2001-0), e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES - BEX 0311/02-2).

Why are alcoholics anonymous? Anonymity and identity in treating alcoholism

¿Por qué los alcohólicos son anónimos? Anonimato e identidad en el tratamiento del alcoholismo

Edemilson Antunes de Campos

Antropólogo. Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidadede São Paulo (EACH/USP). Arlindo Bettio, 1000, Ermelino Matarazzo, São Paulo, SP, Brasil. 03.828-000. edicampos@usp.br

RESUMO

Pretende-se contribuir para a compreensão do papel do anonimato no modelo terapêutico desenvolvido pela irmandade de Alcoólicos Anônimos (A.A.) para dar conta da "doença do alcoolismo". Realizou-se uma pesquisa bibliográfica na literatura produzida pela irmandade sobre o álcool e o alcoolismo, bem como uma pesquisa qualitativa em grupos de A.A. localizados na periferia da cidade de São Paulo - Brasil -, com realização de entrevistas e a observação de diversas atividades promovidas pelos seus membros. O modelo terapêutico de A.A. é concebido como um sistema cuja realidade simbólica é fundamental na representação do alcoolismo como uma "doença crônica e fatal" e, consequentemente, na construção da identidade de "doente alcoólico". Com efeito, o anonimato opera como um mecanismo simbólico fundamental no processo saúde-doença vivenciado dentro de A.A., ligando-se diretamente à fabricação da identidade do "doente alcoólico em recuperação" e, por essa via, à reconstrução subjetiva dos membros da irmandade.

Palavras-chave: Alcoólicos Anônimos. Alcoolismo. Anonimato. Identidade. Ritualde Passagem.

ABSTRACT

The aim here was to contribute towards understanding the role of anonymity in the therapeutic model developed by the Alcoholics Anonymous (AA) fellowship for caring for the "disease of alcoholism". A bibliographic search was conducted in the literature produced by AA on alcohol and alcoholism. A qualitative investigation was also carried out among AA groups located on the outskirts of the city of São Paulo, Brazil. Interviews were held and several activities undertaken by its members were observed. AA's therapeutic model is conceived as a system in which symbolic reality is fundamental for representing alcoholism as a "chronic and fatal disease" and consequently for constructing the identity of "individuals with alcohol sickness". In fact, anonymity works as a fundamental symbolic mechanism in the healthdisease process experienced within AA. It links directly to constructing the identity of "individuals with alcohol sickness undergoing recovery" and consequently to subjectively reconstructing the fellowship's members.

Key words: Alcoholics Anonymous. Alcoholism. Anonymity. Identity. Rite of Passage

RESUMEN

Se pretende contribuir para la comprensión del papel del anonimato en el modelo terapéutico desarrollado por la hermandad de Alcohólicos Anónimos (A.A.) para dar cuenta de la "enfermedad del alcoholismo". Se ha realizado una investigación bibliográfica en la literatura producida por la hermandad sobre el alcohol y el alcoholismo, así como una pesquisa cualitativa en grupos de A.A. localizados en la periferia de la ciudad de São Paulo - Brasil - con realización de entrevistas y observación de diversas actividades promovidas por sus miembros. Se concibe el modelo terapéutico de A.A. como un sistema cuya realidad simbólica es fundamental en la representación del alcoholismo como una "enfermedad crónica y fatal" y consecuentemente en la construcción de la identidad "enfermo alcohólico". En efecto, el anonimato opera como un mecanismo simbólico fundamental en el proceso saludenfermedad vivenciado dentro de A.A. vinculándose directamente a la elaboración de la identidad del "enfermo alcohólico en recuperación" y, por esta vía, a la reconstrucción subjetiva de los miembros de la hermandad.

Palabras clave: Alcohólicos Anónimos. Alcoholismo. Anonimato. Ritual de paso.

Introdução

Nas últimas décadas, a irmandade de Alcoólicos Anônimos1 1 Nas páginas seguintes, conforme a maneira pela qual os membros de Alcoólicos Anônimos se referem à irmandade, utilizarei as siglas A.A., para me referir à irmandade dos Alcoólicos Anônimos, e AAs, quando me referir a seus membros. (A.A) vem despertando a atenção pelo ritmo com que se propaga em escala mundial e, particularmente, na sociedade brasileira2 2 A irmandade de A.A. nasceu em 1935, em Akron, no Estado de Ohio, nos Estados Unidos, após uma conversa entre um corretor da Bolsa de Nova York e um médico, ambos conhecidos, respectivamente, como Bill Wilson e Bob Smith. Segundo Gabhainn (2003), o número dos membros da irmandade tem crescido em progressão geométrica, tendo passado de cem membros, em 1940, para 476.000, em 1980; para 653.000, em 1983; e para 979.000, em 1990. Em 2002, estimava-se que o número de grupos de A.A. em todo mundo fosse de pouco mais de cem mil, totalizando 2.215.293 membros, segundo dados do Escritório Mundial de Alcoólicos Anônimos. No Brasil, o primeiro grupo surgiu em 1947 e, atualmente, há cerca de 5.700 grupos, perfazendo, aproximadamente, 120 mil membros, segundo dados do Escritório de Serviços Gerais de A.A.. . Trata-se de agrupamentos que reúnem pessoas de diferentes idades e classes sociais em busca de apoio mútuo para superar a chamada doença do alcoolismo, que as levaram a uma vida destrutiva e, na maioria das vezes, a um contexto de exclusão e marginalidade social.

Nesse quadro, o par alcoolismo/doença também está deixando de ser o objeto privilegiado da medicina epidemiológica e psiquiátrica, e começa a fazer parte do campo de reflexões das ciências sociais (Campos, 2004a; Garcia, 2004; Mota, 2004; Neves, 2004; Fainzang, 1996). É assim que, em uma perspectiva socioantropológica, a irmandade de A.A. tem se revelado um espaço privilegiado para o estudo das representações e dos significados produzidos sobre a alcoolização crônica, de maneira que seu modelo terapêutico tem sido entendido como um sistema cuja realidade simbólica é a chave para a compreensão da reconstrução subjetiva vivenciada pelos ex-bebedores.

O modelo terapêutico de A.A. é voltado, fundamentalmente, para a recuperação individual e pessoal de seus membros, que "parecem ter perdido o poder para controlar o número de doses ingeridas" (Alcoólicos Anônimos, 2002). O alcoolismo é entendido como uma "doença incurável, progressiva e fatal", de base "física e espiritual", que se caracteriza pela "perda de controle sobre o álcool", levando o alcoólico a beber de maneira compulsiva, o que pode vir a conduzi-lo à "loucura" ou à "morte prematura".

O modelo de A.A. baseia-se em um conjunto de procedimentos voltados ao aprimoramento "espiritual" do indivíduo considerado doente, expresso nos Doze Passos e nas Doze Tradições (Alcoólicos Anônimos, 2001). De um lado, esse modelo inclui: a admissão de que existe um problema em relação ao uso do álcool; a busca de ajuda; a autoavaliação; a partilha em nível confidencial, e a disposição tanto para reparar os danos causados a terceiros como para trabalhar com outros alcoólicos que desejem se recuperar. De outro lado, estão inclusas as relações que os membros de A.A. mantêm entre si e com a sociedade em geral, estas reguladas com base em um conjunto de preceitos que garantem a unidade da irmandade.

A crescente expansão da irmandade tem despertado o interesse da mídia impressa3 3 Ver: A salvação pelo anonimato, Revista Carta Capital, São Paulo, n.255, p.8-15, 27 ago. 2003. e televisiva e, nos últimos anos, de algumas telenovelas brasileiras (Campos, 2004b), todas preocupadas em abordar a temática do alcoolismo e o papel do modelo terapêutico de A.A. Todavia, quando se observa particularmente a mídia televisiva, chama a atenção o fato de que os membros de A.A. mantêm-se sempre anônimos, ou seja, eles jamais se identificam plenamente, de maneira que podemos ver apenas suas silhuetas.

Essa atitude tem sido motivo de controvérsias entre as associações de exbebedores. Exemplo disso é a crítica feita pela associação francesa Vie Libre, fundada em 1953, que atua na recuperação de alcoólicos, e que rejeita o anonimato, alegando que ele é "sinônimo de uma concepção do alcoolismo como vício" (Fainzang, 1996, p.103). Na literatura desse grupo de ex-bebedores encontramos:

Não se pode se esconder de uma doença. Não se deve ter vergonha de ser doente. Os Alcoólicos Anônimos querem guardar o anonimato. Quando eles passam na televisão, é como uma sombra chinesa, para que ninguém lhes possa reconhecer. Por que? Porque eles têm vergonha. Mas, quando se tem vergonha, é quando se pensa que o alcoolismo é um vício. Ele não é um vício, é uma doença. (Fainzang, 1996, p.103 - trad. minha)

Essa crítica, contudo, não nos ajuda compreender o papel desempenhado pelo anonimato no interior do modelo terapêutico de A.A. Para tanto, cabe investigar o modo como a exigência do anonimato opera na edificação da identidade do "doente alcoólico em recuperação" e, por essa via, na reconstrução subjetiva dos membros da irmandade.

Neste artigo, analisa-se o anonimato como um mecanismo simbólico fundamental no processo saúde-doença vivenciado pelos membros de A.A., que opera de acordo com a lógica própria aos rituais de passagem - segundo a qual o bebedor, num estado de liminaridade social, pode reconstruir sua identidade reconhecendo-se como "doente alcoólico em recuperação" no interior de um modelo terapêutico no qual ele insere e modula sua subjetividade.

A pesquisa de campo em Alcoólicos Anônimos

Este estudo resultou de uma pesquisa bibliográfica feita na literatura produzida pela irmandade de A.A., composta por: folders de divulgação, folhetos e livros sobre o álcool, o alcoolismo e o modelo terapêutico de controle da doença alcoólica; bem como de um trabalho de campo realizado entre setembro de 2001 e setembro de 2002, no grupo Sapopemba de A.A., que faz parte do 42º distrito de Alcoólicos Anônimos do Estado de São Paulo, do Setor A - Capital4 4 A irmandade de A.A. conta com 523 grupos em todo o Estado de São Paulo, organizados em 182 cidades, divididos em dez regiões. Na região da Capital existem 205 grupos, organizados em 25 cidades da região metropolitana do Município de São Paulo, e somente neste último existem 143 grupos, segundo dados do Escritório de Serviços Locais - ESL/SP. Disponível em: < http://www.aa-areasp.org.br/portal/index.php/grupos-de-a.a.-no-estado-de-sao-paulo.html>. Acesso em: 5 ago. 2008. . A escolha desse grupo deveu-se ao fato de se tratar de um já consolidado na promoção de reuniões de recuperação, que acontecem desde sua fundação, em 16 de março de 1981.

A metodologia de pesquisa contou, fundamentalmente, com a realização de entrevistas e com a observação de diversas atividades promovidas pela irmandade, tais como: reuniões de recuperação (abertas), encontros, reuniões de serviços, reuniões de unidade, reuniões temáticas, festas comemorativas do aniversário do grupo etc. Já as entrevistas foram individuais e semiestruturadas, e aconteceram, em sua maior parte, em 2001 e 2002. Como forma de se obter um melhor controle sobre os dados coletados, realizamos outras, no final do ano de 2004 e início de 2005. Todos os depoimentos foram gravados com o consentimento dos membros do grupo e, posteriormente, transcritos.

Durante a pesquisa, constatamos, nos "cadernos de ingresso" e de "presença" mantidos pelo grupo, e também em conversas com seus membros, que, nos últimos anos, ingressaram no grupo 86 pessoas. Destes, 81 são homens e cinco mulheres. A presença massiva de homens é uma característica marcante dos grupos de A.A., o que também é confirmado por Garcia (2004), em sua pesquisa no grupo Doze Tradições, localizado no município de São Gonçalo, no Estado do Rio de Janeiro.

Segundo as informações colhidas, dos 86 ingressantes, 37 deles se afastaram do grupo: 36 homens e uma mulher. No caderno de ingresso, é possível constatar que daqueles membros que se afastaram, a maioria ficou no grupo entre um e seis meses, totalizando 15 pessoas.

Dos 37 membros que se afastaram, 15 ficaram no grupo de um a seis meses, 13 ficaram de sete a 12 meses, sete ficaram de 13 a 18 meses, e dois ficaram de 19 a 24 meses. Em um prazo de um ano, constatamos que 28 pessoas se afastaram do grupo. Já em relação aos membros que mantêm um vínculo permanente com a irmandade, segundo os registros mantidos pelo grupo, observamos que: 11 membros têm até um ano de tratamento no grupo, 17 têm entre dois e cinco anos, dois têm entre seis e dez anos, e nove têm entre 11 e 15 anos. Por meio da observação das atividades do grupo e, também, dos registros feitos em seu livro de presença, vimos que, nas reuniões de recuperação, há uma frequência média de 15 membros.

Também foi relevante, para a escolha desse grupo, o fato de ele estar situado em um bairro popular e habitado por um grande contingente de trabalhadores com pouca ou sem especialização, que percebem baixos salários para seu provento e de suas famílias. A associação do uso de álcool às massas trabalhadoras constitui uma referência consagrada no âmbito das pesquisas relativas aos sistemas de classificação e às relações de poder, que buscam estabelecer formas de controle social sobre essa camada da população5 5 Para Neves (2004), um eixo de análise muito recorrente é aquele que associa o uso do álcool às massas trabalhadoras, enfatizando as situações de precariedade socioeconômica, aglutinando-se em torno da equação "pobreza, precariedade e alcoolismo", acabando por legitimar intervenções sobre esse contingente da população. Com efeito, "de um modo positivo, a associação tende a valorizar a relação entre precárias e adversas condições de trabalho e o uso sistemático ou abusivo de álcool. De um modo negativo, a associação tende a consagrar a articulação entre o uso abusivo de bebida alcoólica e a imprevidência individual, incompatível com desempenhos de papéis de esposo, companheiro e pai" (Neves, 2004, p.11). (Neves,2004).

Entre os membros contatados, é significativo o número de aposentados (seis), mas que ainda continuam trabalhando em atividades informais, chamadas de "bicos", como forma de obter alguma renda. Destacam-se também cinco membros que não têm vínculo empregatício formal: um marceneiro, dois pedreiros, um sapateiro e um taxista. Em menor número (dois), estão os que têm emprego formal. São eles: um assistente administrativo e um zelador. Entre as mulheres: duas são "donas de casa", como elas próprias se reconhecem, uma é funcionária pública e outra é aposentada.

Durante os depoimentos, os membros de A.A. destacam as perdas acumuladas, sobretudo, na família, durante o período ativo do alcoolismo. A esfera familiar revela-se, assim, uma referência fundamental para os membros do grupo, de maneira que a maioria deles se declarou casada. Entre os homens, nove se declararam casados, três solteiros, e um viúvo. Entre as mulheres, duas eram casadas e duas viúvas. À exceção dos solteiros, todos os demais têm filhos.

Anonimato e identidade no modelo terapêutico de A.A.

O princípio do anonimato é um aspecto fundamental no modelo terapêutico de A.A. No programa de recuperação dos Doze Passos e das Doze Tradições, ele é definido, na décima segunda tradição, como o "alicerce espiritual das nossas tradições, lembrando-nos sempre da necessidade de colocar os princípios acima das personalidades" (Alcoólicos Anônimos, 2001, p.167-70). Nas reuniões de recuperação, frequentemente, os membros de A.A. reafirmam a importância do anonimato para o programa de recuperação da irmandade:

Vou falar mais uma vez de nosso anonimato: Quem Você vê aqui, o que Você ouve aqui, deixe que fique aqui. Como posso saber se sou realmente um alcoólico? Somente Você poderá decidir. Muitos daqueles que agora estão em AA, tem sido considerados como não alcoólicos. Diziam que precisavam de mais força de vontade, mudança de ambiente, mais descanso ou alguns interesses novos a fim de corrigir o problema. Essas mesmas pessoas acabaram procurando o A.A., porque sentiram no íntimo que o álcool as havia vencido e estavam dispostos a tentar qualquer coisa que as libertassem da compulsão de beber. Alguns desses homens e mulheres passaram por experiências medonhas com o álcool, antes de admitirem que a bebida não lhes servia, tornaram-se marginais, roubaram, mentiram, enganaram e até mataram enquanto bebiam tiravam vantagem de seus empregadores e abusaram de seus familiares, mostraram-se totalmente irresponsáveis em todas as suas relações sociais, dissiparam seus patrimônios materiais, mentais e espirituais. Muitos outros com histórias menos trágicas também procuraram o A.A.. Nunca foram presos ou hospitalizados. É possível que o seu excesso no beber não tenha sido notado nem mesmo pelos seus parentes e pelos seus amigos mais próximos.Mais conheceram o alcoolismo como doença progressiva, suficiente para aterrorizá-los. Eles passaram a fazer parte de A.A., antes de ter que pagar um preço muito alto. Costuma-se dizer em A.A. que ninguém é um pouco alcoólico: ou Você é ou não é. E somente um indivíduo envolvido poderá dizer se o álcool para ele se tornou um problema incontrolável.

Mas, por que os alcoólicos são anônimos? Fainzang (1994, p.344) ressalta que nas associações de ex-bebedores "a relação entre o grupo e o anonimato é correlata às representações do alcoolismo e às percepções que seus membros têm do álcool". Ora, na passagem acima, é possível perceber o modo como o anonimato relaciona-se diretamente à representação do alcoolismo como uma "doença progressiva" e à percepção do álcool como um "problema" que independe da "força de vontade" do alcoólico para ser enfrentado. Como consequência, os membros de A.A. têm uma representação específica de si mesmo, de maneira que "ninguém é um pouco alcoólico: ou Você é ou não é. E somente um indivíduo envolvido poderá dizer se o álcool para ele se tornou um problema incontrolável".

Em artigo anterior (Campos, 2004a, p.1383-4), mostramos como, em A.A., o alcoolismo é representado como uma "doença inata inerente ao organismo do alcoólico, de modo que a doença independe tanto da vontade do indivíduo como da quantidade de álcool ingerida". Ou seja, o alcoolismo é concebido como um mal que o indivíduo traz dentro de si mesmo, que faz parte dele, mas que pode ser controlado desde que ele aceite a existência da doença e a impossibilidade de enfrentá-la sozinho.

Essa internalização da condição de doente é obtida pela objetivação produzida pelo modelo biomédico, no qual o alcoolismo é concebido como uma "doença crônica" física e mental , que é reiterada e reificada cotidianamente na troca de experiências com outros membros do grupo. Como sublinha Bateson (1977, p.279 - trad. minha): "o objetivo perseguido [no modelo de A.A.] é o de permitir que o alcoólico coloque seu alcoolismo no interior de si mesmo", incorporando-o por meio da idéia de que é portador de uma "doença incurável", com a qual deve aprender a conviver. É exatamente isso o que afirma um membro de A.A.:

Eu sou João, um doente alcoólico em recuperação. Eu agradeço ao Poder Superior, companheiros e companheiras, que me ajudam nessa recuperação. Sou portador da doença do alcoolismo, uma doença que tava guardada dentro de mim e que se manifestaria em qualquer ocasião em que eu tivesse contato com a bebida alcoólica.

Como consequência, o álcool deixa de ser concebido como o mediador da sociabilidade criada pela reciprocidade vivida no ato de beber, para assumir o papel de "vetor" do alcoolismo. Em outras palavras, em vez de levar à troca e à sociabilidade, o uso do álcool torna-se um "problema incontrolável", fechando o alcoólico no ciclo da dependência.

O alcoolismo também é concebido como uma "doença" que se articula à dimensão propriamente moral do indivíduo, tornando-o "irresponsável em todas as suas relações sociais". Não por acaso, a irmadade de A.A. também representa o alcoolismo como uma "doença espiritual" que altera o comportamento do alcoólico, tornando-o "egocêntrico" e, com isso, afetando todas as dimensões de sua vida social, notadamente na família e no trabalho.

No modelo de A.A., a deterioração moral do alcoólico tem uma causa bem definida, a saber: o "egocentrismo" (Alcoólicos Anônimos, 1994, p.82). A doença alcoólica provoca um autocentramento do alcoólico, potencializando uma confiança ilimitada em suas capacidades. Isolado e fechado em si mesmo, o alcoólico acredita que é capaz de controlar o ato de beber a partir da própria vontade: "eu bebo quanto eu quero", diz, quando questionado sobre sua capacidade de controlar as doses de bebida alcoólica ingeridas.

O anonimato relaciona-se, portanto, diretamente à teoria da doença alcoólica de A.A., bem como à construção da identidade dos membros da irmandade. Ele opera como um mecanismo simbólico da construção identitária, sendo concebido como "o signo da abnegação da pessoa, elemento fundamental de um programa espiritual orientado na direção do reconhecimento de sua impotência e da necessidade de ser ajudado pelo Poder Superior" (Fainzang, 1996, p.104 - trad. minha).

Dessa maneira, o anonimato é um signo da incapacidade de o alcoólico enfrentar o problema do alcoolismo, seguindo apenas a própria vontade, tal como traduzido no primeiro e segundo passos do programa de recuperação da irmandade: "1) Admitimos que éramos impotentes perante o álcool - que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas; 2) Viemos a acreditar que um Poder Superior a nós mesmos poderia nos devolver à sanidade" (Alcoólicos Anônimos, 2001, p.17, 28).

Ao invés de afirmar "eu posso", "eu quero" e "eu consigo", tal como prevê a crença arraigada na soberania do eu, assentada na ideologia moderna do individualismo, frente ao reconhecimento de seu fracasso na condução de sua própria vida pela vontade, o alcoólico reconhece sua "impotência" diante de uma doença que é fatal, e que necessita de ajuda.

No modelo de A.A., "ser vencido pelo álcool e estar consciente disso constitui o primeiro passo de uma 'experiência espiritual'. O mito do controle de si pelo próprio sujeito é, assim, demolido pela colocação em seu lugar de um poder superior" (Bateson, 1977, p.269 - trad. minha). Somente assim, pode-se obter a suavização do "egocentrismo", que impede o alcoólico de reconhecer que é doente e que precisa de ajuda em sua recuperação.

Desse modo, mais do que proteger o alcoólico da vergonha ou da denúncia, o anonimato é um mecanismo simbólico para lutar contra a "mise en vedette" (Bateson, 1977, p.293) pessoal, isto é, uma forma de combater o cultivo da personalidade que é "o maior perigo espiritual para o membro em questão, porque ele não pode se permitir um tal egoísmo, sem que coloque em risco sua recuperação" (Bateson, 1977, p.292-3 - trad. minha).

Atuando como um "dispositivo anticarismático" (Soares, 1999, p.266), o anonimato também opera, simbolicamente, impedindo as diferenciações no interior da irmandade. Todo o esforço do modelo terapêutico de A.A. é no sentido de se evitarem as diferenças de status entre os membros no interior do grupo: tanto o membro novato, recém chegado ao grupo, como o mais antigo se identificam como "doentes alcoólicos em recuperação", que se abstiveram "só por hoje" do primeiro gole. Lasselin e Fontain (1979, p.86 - trad. minha) destacam que, no interior do grupo, o alcoólico: "reencontra, ou melhor, encontra aquilo que estava desde sempre perdido, uma aproximação da identidade. Entre os alcoólicos, ele existe; ele é alcoólico e alcoólico sempre [será]".

Como consequência, o anonimato é um operador simbólico por meio do qual o alcoólico pode construir sua identidade, acrescentando à sua identidade pessoal uma coletiva, fornecida pela irmandade. O que pode ser notado na própria maneira como os membros de A.A. se identificam durante as reuniões de recuperação:"Meu nome é Jorge, um doente alcoólico que vem a essa reunião [de recuperação] para deixar aquele bêbado que eu era". Enfim, o processo de nomeação identitária caracteriza-se por afirmar o pertencimento ao grupo e a condição de "doente alcoólico em recuperação".

Anonimato e dependência em A.A.

O princípio do anonimato, bem como a necessidade da ajuda de um poder superior para a recuperação do alcoólico, remetem-nos ao problema da dependência dentro das associações de ex-bebedores. A questão pode ser formulada da seguinte maneira: Não estaríamos aqui diante de uma troca da dependência do álcool pela dependência do grupo? Fainzang (1996) faz essa leitura, quando afirma que os membros de A.A., ao se submeterem ao Poder Superior, não fazem mais do que trocar uma dependência por outra, substituindo o álcool por um novo mestre: Deus.

Como consequência, essa autora destaca que, enquanto o modelo terapêutico de A.A. "reforça" a dependência, aqui entendida como "submissão" a um novo mestre, o grupo Vie Libre almeja a "emancipação do sujeito", recusando toda e qualquer forma de "escravidão":

A submissão à fatalidade da doença em A.A., manifesta na oração da serenidade, é totalmente recusada por

Vie Libre. Vie Libre

associa sua luta contra o alcoolismo à recusa da dependência e à escravidão. Enquanto A.A. busca encontrar um novo mestre,

Vie Libre

busca a emancipação. O álcool não é aqui substituído por Deus ou por uma outra força espiritual à qual o bebedor doravante se alienaria, mas por uma busca de liberdade. (Fainzang, 1996, p.115)

Ora, Fainzang não percebe que a diferença entre a dependência ao álcool e a "submissão" ao Poder Superior é, em primeiro lugar, ratificada pelas práticas mantidas no interior do grupo de A.A., notadamente durante as reuniões de recuperação. Com efeito, elas são de natureza completamente diferente das relações estabelecidas durante o tempo do alcoolismo ativo. A esse respeito são importantes as considerações de Drulhe (1988), nas quais recusa a tese da dependência do alcoólico em relação ao grupo. Para esse autor, é justamente a possibilidade de dividir uma experiência de vida comum que permite aos alcoólicos desenvolverem uma memória coletiva, que é a condição para uma socialização em torno do valor da abstinência:

Reivindicar seu passado e sua identidade de alcoólico é o que lhes permite justificar sua recusa presente do álcool; se o grupo permite aos ex-bebedores estruturar suas lembranças e dar um sentido a sua vida passada e presente, a socialização que se elabora no grupo de mútua ajuda, não é a da dependência. Ao contrário, ela exprime a complementariedade que existe entre os homens. (Drulhe, 1988, p.323-4 - trad. minha)

Em vez de propor um simples substituto para o álcool, ao qual os membros de A.A. se alienariam, o grupo de A.A. possibilita a criação de um novo laço social, que permite ao alcoólico ressignificar sua experiência passada em torno dos valores da abstinência e da sobriedade, fazendo-o redescobrir os valores da amizade e da responsabilidade. Como explicam Jovelin e Oreskovic: "Durante as reuniões, são criados laços de sociabilidade entre os ex-bebedores. Camaradagem, amizades e afinidades novas se constroem dentro de uma rede que tem em comum apenas seu alcoolismo passado e sua abstinência presente" (2002, p.138 - trad. minha).

Além disso, um outro aspecto deve ser destacado: enquanto no período do alcoolismo ativo o doente alcoólico vive um insulamento, isto é, uma espécie de dessocialização que o isola e o mantém preso no círculo da dependência, os valores da abstinência e da sobriedade, que norteiam as ações no interior do grupo, são um sinônimo de socialização, que permite ao alcoólico recuperar os laços sociais perdidos no passado.

Nesse sentido, o princípio do anonimato não significa uma recusa pura e simples das individualidades e das histórias individuais. Nas reuniões de recuperação, os membros da irmandade enunciam uns aos outros suas histórias de vida do tempo do alcoolismo ativo e da sobriedade, tornando possível uma reconstrução identitária assentada em uma memória coletiva, que reforça sua condição de portador da doença incurável do alcoolismo. Trata-se de conter o "egocentrismo", que torna o alcoólico irascível diante da evidência de sua doença. O anonimato patronímico é, então, um signo de pertencimento ao grupo e da "aceitação" de que se é um "doente alcoólico".

Não se trata, portanto, da troca da dependência do álcool pela dependência de um Ser Superior ou do grupo. Trata-se, sim, de um mecanismo simbólico que possibilita a fabricação da subjetividade pelo grupo, e que opera a ressemantização dos valores característicos do campo ideológico da modernidade, a saber: a "escolha", a "liberdade", a "responsabilidade" e a "vontade"6 6 O campo ideológico da modernidade é tomado, aqui, no sentido definido por Dumont (1983), o qual aponta que o "valor 'indivíduo'" compõe o eixo semântico em torno do qual se estrutura toda cultura ocidental moderna. Nas palavras de Dumont (1983, p.21): "a ideologia moderna é individualista - sendo o individualismo definido sociologicamente do ponto de vista dos valores globais". .

Nesse sentido, o anonimato atua como um operador simbólico a partir do qual é edificado um modo diferencial de construção subjetiva, ligado às representações e às percepções sobre o álcool e o alcoolismo, bem como aos valores que orientam as práticas dos membros da irmandade em direção à sua recuperação. Como lembra Velho: "Cabe distinguir o lugar do indivíduo na construção social da identidade de qualquer grupo ou sociedade e o desenvolvimento de uma ideologia individualista que, em princípio, estaria vinculada a tipos particulares de experiência e história" (Velho, 1999, p.44-5 - grifos do original).

Ora, o modelo de A.A. possibilita a edificação de um ethos individualista, segundo uma ordem simbólica no interior da qual o "doente alcoólico em recuperação" pode reconhecer-se como "indivíduo responsável" por sua recuperação. Como explica Soares, citando a primeira tradição do programa de recuperação da irmandade:

Eu sou responsável pela busca da minha sobriedade através de um caminho de aprimoramento espiritual que me aproxima de Deus, tal como O concebo, consubstancializado no próprio grupo. Meu caminho supõe a ajuda de terceiros que, por outro lado, dependem da minha. Não apenas trocamos experiências, mas nos apoiamos mutuamente nos momentos de dificuldade. Minha sobriedade se sustenta tanto na ajuda que recebo quanto na que sou capaz de dar. (Soares, 1999, p.273)

Com efeito, para os membros de A.A., submeter-se ao Poder Superior é condição sine qua non para a recuperação da "liberdade", da "responsabilidade" e da "capacidade de escolha". Nas "reflexões diárias", lidas em todas as reuniões de recuperação, encontramos o seguinte comentário sobre a "nova" liberdade conquistada após a entrada na irmandade:

Minha primeira verdadeira liberdade é a liberdade de não precisar beber hoje. Se realmente desejá-la, praticarei os Doze Passos, e através deles me chegará a felicidade desta liberdade - às vezes rapidamente, outras vezes lentamente. Seguir-se-ão outras liberdades, e fazer seu inventário será nova alegria. Tive uma nova liberdade hoje,

a liberdade de ser eu mesmo

. Tenho a liberdade de ser melhor do que jamais fui. (Alcoólicos Anônimos, 2000, p.147 - grifos meus)

É nessa linha que podemos entender as palavras de um membro de A.A., durante a reunião de aniversário dos 66 anos de fundação do A.A. mundial: "Dizem que agora eu sou dependente do grupo de A.A. O problema é que antes eu não podia escolher se ia ou não beber e agora eu posso escolher ser membro de A.A.". E, também, o que afirma outro membro da irmandade, quando fala da "escravidão" que vivia nos tempos de seu alcoolismo ativo: "eu não conseguia realizar nada; eu vivia no mundo da escravidão; eu cheguei à dependência; e o homem, quando ele depende, ele não tem mais domínio, ele é um escravo daquela dependência: eu cheguei à escravidão do álcool".

Nas reuniões, os AAs reiteram sua condição de doentes, reconhecendo-se "impotentes em relação ao álcool", e que precisam de ajuda para sua recuperação. Nos relatos do chamado "tempo da ativa", no qual faziam um uso "compulsivo do álcool", eles narram a "perda de controle" sobre as doses ingeridas, deixando entrever o modo como o alcoolismo os conduziu à condição de heteronomia, na qual não podiam dirigir suas vidas seguindo a própria vontade, tornando-se incapazes de escolher entre beber ou não beber.

No interior do grupo, os ex-bebedores se reconhecem como fazendo parte de uma ordem, no interior da qual eles podem estabelecer uma relação de cooperação com seus pares. É assim que eles deixam de ser dependentes do álcool, de maneira que a autonomia e a liberdade, perdidas nos tempos da ativa, podem agora ser recuperadas, redesenhando os contornos da sua identidade como "doente alcoólico", isto é, um indivíduo responsável por sua própria recuperação.

Do bêbado ao doente alcoólico: anonimato e ritual de passagem em A.A.

A relação entre o anonimato e a construção identitária dos membros de A.A. também se relaciona à questão dos "ritos de passagem" vividos nas associações de ex-bebedores. É assim que, para Fainzang (1996, p.107), o modelo de A.A. não favorece uma mudança de status do bebedor, de modo que o anonimato somente reforçaria sua condição de "doente alcoólico em recuperação". Enquanto na associação Vie Libre, o bebedor, após o tratamento, muda seu status, assumindo a condição de "bebedor curado", em A.A., o ex-bebedor permanece sempre com o status de "doente alcoólico", uma vez que o alcoolismo é entendido como uma doença incurável.

Embora a afirmação da identidade de "doente alcoólico em recuperação" esteja no centro do modelo terapêutico da irmandade, não se descarta a questão dos ritos de passagem e a consequente mudança de status do bebedor. Com efeito, é possível analisar o momento da entrada do bebedor no grupo de A.A. como um "rito de passagem", nos moldes definidos por Van Gennep e retomados por Turner (1974), ao se apresentarem as três fases que caracterizam esses ritos:

A primeira fase (de separação) abrange o comportamento simbólico, que significa o afastamento do indivíduo ou de um grupo, quer do ponto fixo anterior na estrutura social, quer de um conjunto de condições culturais (um "estado"), ou, ainda, de ambos. Durante o período "liminar", de intermédio, as características do sujeito ritual (o "transitante") são ambíguas; ele passa através de um domínio cultural que tem poucos, ou quase nenhum, dos atributos do passado ou do estado futuro. Na terceira fase (reagregação ou reincorporação), consuma-se a passagem. O sujeito ritual, seja ele individual ou coletivo, permanece num estado relativamente estável mais uma vez, e em virtude disto, tem direitos e obrigações perante os outros, de tipo claramente definido e "estrutural", esperando-se que se comporte de acordo com certas normas costumeiras e padrões éticos, que vinculam os incumbidos de uma posição social a um sistema de tais posições. (Turner, 1974, p.116-7)

Ora, a trajetória do bebedor até entrar na irmandade refere-se ao tempo do alcoolismo ativo, no qual ele vivia sob a pressão do estigma e em um estado de marginalidade e exclusão social. O bebedor vive um processo de contínuas perdas relacionais - perda da família, dos amigos e do trabalho -, até tocar o chamado "fundo do poço". Essa metáfora denota a decadência física e moral do bebedor antes de chegar à irmandade de A.A. É exatamente isso o que afirma um membro de A.A.: "Aqui [no bairro de Sapopemba] muitos são desempregados, principalmente aqueles que chegam a Alcoólicos Anônimos. Através do alcoolismo, eles perderam seus empregos, perderam suas famílias, eles chegam aqui todos detonados".

Nessa primeira fase, o bebedor vive o momento de "separação", isto é, ele rompe os laços familiares e profissionais, perdendo seu lugar social, de maneira que não mais se reconhece nas identidades sociais de "pai/mãe", "esposo(a)" e "trabalhador(a)". Aqui, o bebedor se destaca de sua matriz social, passando a ocupar um estado intermediário, caracterizado pela marginalidade e pela exclusão. Não por acaso, ele se encarna nas figuras do "bêbado", do "cachaceiro" e do "pinguço", todos personagens que vivem à margem das relações sociais valorizadas no universo ao qual os membros do grupo pertencem, e que denota a perda de status do bebedor.

Vale aqui recorrermos a um paralelo com o célebre personagem Augusto Matraga, imortalizado na novela de Guimarães Rosa (2001) intitulada: "A hora e a vez de Augusto Matraga". É bem conhecida a trajetória de construção do personagem central da obra, que, ao longo de sua vida, vê seu nome e seu status social se modificarem, passando de Nhô Augusto, um fazendeiro senhor da terra e dos destinos alheios, para o de Augusto Matraga, cujo nome, nas palavras de Guimarães Rosa, "não é nada".

Como indica Da Matta (1997), a novela oferece a possibilidade de interpretação da trajetória do personagem central - Augusto Matraga - com base no modelo indivíduo/pessoa e os rituais de passagem. Para esse autor: "enquanto o nome Nhô Augusto aponta para a ordem social e para uma posição superior na hierarquia, o nome Matraga revela a marginalidade de quem vagou como indivíduo no meio dos pobres, da natureza e dos bandidos" (Da Matta, 1997, p.318 - grifo do original).

Ora, nos tempos do alcoolismo ativo, o bebedor encontra-se também completamente apartado de seu mundo social, atingindo o "fundo do poço". Nesse momento, o bebedor vive contínuas perdas: "Eu achava que não aconteceria nada comigo se eu continuasse a beber, mas aí eu perdi a esposa, perdi a dignidade, perdi o caráter, perdi minha família; eu perdi tudo". Da mesma maneira que Matraga, o bebedor, aqui, também "não é nada" e vive estigmatizado e marginalizado.

Todavia, diferentemente do que sugere Da Matta, ao propor que Matraga encarna a figura do renunciante recusando-se a retornar ao mundo do qual partiu, tornando-se cada vez mais individualizado , a pesquisa etnográfica nos grupos de A.A. revela que o ex-bebedor só encontra a possibilidade de reconstrução subjetiva ao aceitar a condição de "doente alcoólico": um "indivíduo doente" que, somente assim, pode recuperar as identidades sociais no universo relacional da família e do trabalho.

No momento em que o bebedor toca o "fundo do poço", ele sente que é "impotente diante do álcool" e decide procurar ajuda para sair dessa situação. Aqui, se confirma a máxima repetida por Matraga, segundo a qual "cada um tem a sua hora e a sua vez", e sabe o momento de procurar ajuda. É nesse instante que o bebedor realiza a passagem de um estado de marginalidade para a fase de "liminaridade", que se inicia com a reconstrução de sua identidade, agora de "doente alcoólico", e permanece durante toda sua recuperação.

A situação vivida pelo alcoólico recém-ingressante em um grupo exemplifica esse momento de liminaridade, a partir do instante em que ele recebe das mãos de seu "padrinho"7 7 O padrinho, em geral, é um membro do grupo com mais tempo de sobriedade, escolhido pelo alcoólico, e que será o responsável por aconselhá-lo durante sua trajetória rumo à sobriedade. Sua intervenção é importante nos momentos de "crise de abstinência", durante os quais o alcoólico pode sofrer uma "recaída". a "ficha" que simboliza seu ingresso no grupo, mas não assume nenhuma função em sua organização interna8 8 O grupo Sapopemba de A.A. realiza, todo último domingo de cada mês, a reunião de "entrega de fichas", na qual celebram, juntamente com seus amigos e seus familiares, o "tempo de sobriedade", conquistado após a entrada na irmandade. . Durante essa fase, o novato mantém uma relação mais direta com seu padrinho, que, por ser um membro veterano, com mais tempo de sobriedade, o orienta no aprendizado dos princípios do programa de recuperação dos Doze Passos e das Doze Tradições, e o ajuda a se familiarizar com o modelo terapêutico da irmandade.

Nessa fase, o alcoólico se individualiza na companhia de outros que sofrem do mesmo problema. Ele se reconhece, portanto, como um "doente alcoólico em recuperação", um indivíduo portador da doença incurável do alcoolismo, o que é confirmado a cada depoimento e a cada narrativa feita todos os dias nas reuniões de recuperação.

Essa condição é reforçada pelo princípio do anonimato, que impede as diferenciações de status dentro do grupo, denotando que todos estão na mesma situação. O anonimato opera como um mecanismo simbólico que marca a passagem para uma noção de indivíduo doente compartilhada por todos os membros de A.A.

É nesse momento também que se inicia a fase de "reincorporação", na qual o alcoólico pode recuperar os vínculos perdidos no tempo da ativa, notadamente na família e no trabalho. É isso o que sugere um membro de A.A. ao narrar sua recuperação: "Quando cheguei em A.A. estava no fundo do poço e graças ao Poder Superior hoje eu tenho tudo. Minha preocupação hoje é com minha família, meu trabalho e com A.A.".

O anonimato, portanto, é um mecanismo que opera, simbolicamente, o ritual de passagem da figura do "bêbado" isto é, daquele que perdeu sua posição social dentro da esfera familiar e do universo do trabalho ao "doente alcoólico", e, consequentemente, à recuperação dos laços sociais, perdidos no tempo do alcoolismo ativo, reconfigurando os contornos de sua construção subjetiva: um indivíduo doente que recupera o status vivido no universo social ao qual ele pertence, norteado pelos valores da família e do trabalho.

Ao entrar em A.A., o alcoólico pode, enfim, construir sua identidade, afirmando sua diferença em relação ao restante da sociedade, formada por não-alcoólicos. Certa vez, durante uma conversa com um membro de A.A., ele me perguntou: "Sabe qual a diferença que existe entre nós dois? E, em seguida, respondeu: "É que você é capaz de beber uma cerveja e esquecer que bebeu; eu não sou capaz de esquecer. Eu tenho que reconhecer que sou doente e que eu sou diferente de você".

O alcoólico sabe que não pode se esquecer de evitar o "primeiro gole". Porque esquecer-se de que é doente significa correr o risco de uma "recaída", o que pode ser fatal. E o único antídoto de que os membros de A.A. dispõem para se protegerem do esquecimento da "doença do alcoolismo" é a construção de uma memória coletiva, enunciando uns aos outros as "boas palavras" que podem ajudá-los na recuperação.

"Nosso remédio é palavra": é isso o que os membros da irmandade afirmam toda vez que sua condição de portadores da doença do alcoolismo é lembrada pelos companheiros do grupo nas reuniões de recuperação (Campos, 2007). É assim, também, que o modelo terapêutico de A.A. possibilita a produção de um "discurso legítimo" sobre a doença alcoólica, contrastando a identidade do alcoólico com aquela do não-alcoólico, o que torna possível a identificação de seus membros entre si, reconhecidos, agora, como "doentes alcoólicos em recuperação", responsáveis tanto pelos cuidados de si como pelos de seus familiares.

Recebido em 28/01/08.

Aprovado em 30/07/08.

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  • *
    Elaborado com base em Campos (2005), pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, 140194/2001-0), e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES - BEX 0311/02-2).
  • 1
    Nas páginas seguintes, conforme a maneira pela qual os membros de Alcoólicos Anônimos se referem à irmandade, utilizarei as siglas A.A., para me referir à irmandade dos Alcoólicos Anônimos, e AAs, quando me referir a seus membros.
  • 2
    A irmandade de A.A. nasceu em 1935, em Akron, no Estado de Ohio, nos Estados Unidos, após uma conversa entre um corretor da Bolsa de Nova York e um médico, ambos conhecidos, respectivamente, como Bill Wilson e Bob Smith. Segundo Gabhainn (2003), o número dos membros da irmandade tem crescido em progressão geométrica, tendo passado de cem membros, em 1940, para 476.000, em 1980; para 653.000, em 1983; e para 979.000, em 1990. Em 2002, estimava-se que o número de grupos de A.A. em todo mundo fosse de pouco mais de cem mil, totalizando 2.215.293 membros, segundo dados do Escritório Mundial de Alcoólicos Anônimos. No Brasil, o primeiro grupo surgiu em 1947 e, atualmente, há cerca de 5.700 grupos, perfazendo, aproximadamente, 120 mil membros, segundo dados do Escritório de Serviços Gerais de A.A..
  • 3
    Ver: A salvação pelo anonimato,
    Revista Carta Capital, São Paulo, n.255, p.8-15, 27 ago. 2003.
  • 4
    A irmandade de A.A. conta com 523 grupos em todo o Estado de São Paulo, organizados em 182 cidades, divididos em dez regiões. Na região da Capital existem 205 grupos, organizados em 25 cidades da região metropolitana do Município de São Paulo, e somente neste último existem 143 grupos, segundo dados do Escritório de Serviços Locais - ESL/SP. Disponível em: <
  • 5
    Para Neves (2004), um eixo de análise muito recorrente é aquele que associa o uso do álcool às massas trabalhadoras, enfatizando as situações de precariedade socioeconômica, aglutinando-se em torno da equação "pobreza, precariedade e alcoolismo", acabando por legitimar intervenções sobre esse contingente da população. Com efeito, "de um modo positivo, a associação tende a valorizar a relação entre precárias e adversas condições de trabalho e o uso sistemático ou abusivo de álcool. De um modo negativo, a associação tende a consagrar a articulação entre o uso abusivo de bebida alcoólica e a imprevidência individual, incompatível com desempenhos de papéis de esposo, companheiro e pai" (Neves, 2004, p.11).
  • 6
    O campo ideológico da modernidade é tomado, aqui, no sentido definido por Dumont (1983), o qual aponta que o "valor 'indivíduo'" compõe o eixo semântico em torno do qual se estrutura toda cultura ocidental moderna. Nas palavras de Dumont (1983, p.21): "a ideologia moderna é individualista - sendo o individualismo definido sociologicamente do ponto de vista dos valores globais".
  • 7
    O padrinho, em geral, é um membro do grupo com mais tempo de sobriedade, escolhido pelo alcoólico, e que será o responsável por aconselhá-lo durante sua trajetória rumo à sobriedade. Sua intervenção é importante nos momentos de "crise de abstinência", durante os quais o alcoólico pode sofrer uma "recaída".
  • 8
    O grupo Sapopemba de A.A. realiza, todo último domingo de cada mês, a reunião de "entrega de fichas", na qual celebram, juntamente com seus amigos e seus familiares, o "tempo de sobriedade", conquistado após a entrada na irmandade.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Abr 2009
    • Data do Fascículo
      Mar 2009

    Histórico

    • Recebido
      28 Jan 2008
    • Aceito
      30 Jul 2008
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