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A formação médica ancorada na aprendizagem baseada em problema: uma avaliação qualitativa

La formación médica ancorada en el aprendizaje basado en problema

Medical training grounded in problem-based learning: a qualitative evaluation

Resumos

Pretendeu-se avaliar os resultados de um curso de medicina ancorado na aprendizagem baseada em problema. A metodologia do estudo baseou-se no desenho de pesquisa de avaliação com abordagem qualitativa, envolvendo entrevistas, elaboração de um plano de cuidados e atividade com paciente simulado. Os dados obtidos foram analisados a partir da perspectiva hermenêutica-dialética. Apesar de ter tido limites, o curso foi avaliado de forma positiva porque, segundo os egressos, proporcionou uma formação humanista, promoveu o aprender a aprender, valorizou a convivência com outros profissionais e integrou teoria com a prática. Os egressos articularam as dimensões biológica, psicológica e social tanto em suas falas quanto em suas ações. Os pacientes consideraram que os egressos eram cuidadosos, respeitando-os e escutando-os, enquanto os gestores dos serviços de saúde reconheceram que a atuação do egresso ia para além do foco da doença.

Educação médica; Aprendizagem baseada em problema; Avaliação; Pesquisa qualitativa


Se trata de valuar los resultados de un curso de medicina ancorado en el aprendizaje basado en problema. La metodología del estudio considera el diseño de pesquisa de valuación con aproximación cualitativa comprendiendo entrevistas, elaboración de un plan de cuidados y actividades con paciente simulado. Los datos obtenidos se analizaron a partir de una perspectiva hermenéutica-dialéctica. Pese a sus límites el curso fue valuado positivamente porque, según los egresados, proporcionó una formación humanista, incentivó el aprender a aprender, dio valor al convivio con otros profesionales e integró la teoría con la práctica. Los egresados articularon las dimensiones biológica, psicológica y social tanto en sus intervenciones orales como en sus acciones. Los pacientes consideraron que los egresados fueron cuidadosos, respetándoles y escuchándoles; mientras los gestores de los servicios de salud reconocieron que la actuación del egresado iba más allá del foco de la enfermedad.

Educación médica; Aprendizaje basado en problema; Valuación; Pesquisa cualitativa


The aim here was to evaluate the results from a medical course grounded in problem-based learning. The study methodology was based on an investigative evaluation design with a qualitative approach that involved interviews, drawing up a care plan and activities with simulated patients. The data obtained were analyzed from a hermeneutic-dialectic perspective. In spite of the limits of the course, it was assessed positively because, according to previous participants, it provided a humanistic training, promoted learning how to learn, gave value to coexistence with other professionals and integrated theory with practice. The previous participants linked the biological, psychological and social dimensions through both their discourse and their actions. The patients considered that the previous participants were careful, respected them and listened to them, while the health service managers recognized that previous participants' performance went beyond focusing on the illness.

Medical education; Problem-based learning; Evaluation; Qualitative research


ARTIGOS

A formação médica ancorada na aprendizagem baseada em problema: uma avaliação qualitativa

Medical training grounded in problem-based learning: a qualitative evaluation

La formación médica ancorada en el aprendizaje basado en problema: una valuación cualitativa

Romeu GomesI; Anete Maria FranciscoII; Silvia Franco da Rocha TonhomIII; Maria Cristina Guimarães da CostaIII; Cássia Galli HamamotoIII; Osni Lázaro PinheiroIV; Haydée Maria MoreiraII; Maria de Lourdes Marmorato Botta HafnerV

IPedagogo. Faculdade de Medicina de Marília (Famema). Av. Monte Carmelo, 800, Marília, SP, Brasil. 17.519-030. romeu@iff.fiocruz.br

IIBiólogas. Famema

IIIEnfermeiras. Famema

IVFarmacêutico bioquímico. Famema

VMédica. Famema

RESUMO

Pretendeu-se avaliar os resultados de um curso de medicina ancorado na aprendizagem baseada em problema. A metodologia do estudo baseou-se no desenho de pesquisa de avaliação com abordagem qualitativa, envolvendo entrevistas, elaboração de um plano de cuidados e atividade com paciente simulado. Os dados obtidos foram analisados a partir da perspectiva hermenêutica-dialética. Apesar de ter tido limites, o curso foi avaliado de forma positiva porque, segundo os egressos, proporcionou uma formação humanista, promoveu o aprender a aprender, valorizou a convivência com outros profissionais e integrou teoria com a prática. Os egressos articularam as dimensões biológica, psicológica e social tanto em suas falas quanto em suas ações. Os pacientes consideraram que os egressos eram cuidadosos, respeitando-os e escutando-os, enquanto os gestores dos serviços de saúde reconheceram que a atuação do egresso ia para além do foco da doença.

Palavras-chave: Educação médica. Aprendizagem baseada em problema. Avaliação. Pesquisa qualitativa.

ABSTRACT

The aim here was to evaluate the results from a medical course grounded in problem-based learning. The study methodology was based on an investigative evaluation design with a qualitative approach that involved interviews, drawing up a care plan and activities with simulated patients. The data obtained were analyzed from a hermeneutic-dialectic perspective. In spite of the limits of the course, it was assessed positively because, according to previous participants, it provided a humanistic training, promoted learning how to learn, gave value to coexistence with other professionals and integrated theory with practice. The previous participants linked the biological, psychological and social dimensions through both their discourse and their actions. The patients considered that the previous participants were careful, respected them and listened to them, while the health service managers recognized that previous participants' performance went beyond focusing on the illness.

Key words: Medical education. Problem-based learning. Evaluation. Qualitative research.

RESUMEN

Se trata de valuar los resultados de un curso de medicina ancorado en el aprendizaje basado en problema. La metodología del estudio considera el diseño de pesquisa de valuación con aproximación cualitativa comprendiendo entrevistas, elaboración de un plan de cuidados y actividades con paciente simulado. Los datos obtenidos se analizaron a partir de una perspectiva hermenéutica-dialéctica. Pese a sus límites el curso fue valuado positivamente porque, según los egresados, proporcionó una formación humanista, incentivó el aprender a aprender, dio valor al convivio con otros profesionales e integró la teoría con la práctica. Los egresados articularon las dimensiones biológica, psicológica y social tanto en sus intervenciones orales como en sus acciones. Los pacientes consideraron que los egresados fueron cuidadosos, respetándoles y escuchándoles; mientras los gestores de los servicios de salud reconocieron que la actuación del egresado iba más allá del foco de la enfermedad.

Palabras clave: Educación médica. Aprendizaje basado en problema. Valuación. Pesquisa cualitativa.

Introdução

Fóruns nacionais e internacionais sobre cursos de medicina, dentre outros aspectos, têm apontado, como um dos problemas na formação médica, o distanciamento das escolas das necessidades da população, o que é refletido pela excessiva e precoce especialização médica e, também, pela tecnificação do cuidado. Esses pontos têm-se mostrado relevantes na determinação do perfil dos médicos formados pelas escolas na atualidade (Lima, Komatsu, Padilha, 2003).

No Brasil, as discussões têm acompanhado o contexto mundial de transformação de referenciais da educação e das políticas de saúde, buscando nova orientação que possa contribuir para a formação do profissional exigido pela sociedade contemporânea. Um dos reflexos dessas discussões é a elaboração das Diretrizes Curriculares para o Curso de Medicina pelo Ministério da Educação MEC (Brasil, 2001), que orientam as exigências relativas ao profissional do século XXI.

Dentro desse contexto de transformação do ensino nas escolas médicas, a Faculdade de Medicina de Marília (Famema) figura, no cenário nacional, como uma das primeiras faculdades a promover modificações substanciais em seu modelo de ensino-aprendizagem. As transformações ocorridas na Famema são, em parte, resultantes de um acúmulo de experiências decorrentes da parceria estabelecida com a Fundação Kellogg, no período de 1992 a 2003. Essa parceria, em 1997, permitiu a elaboração de um novo projeto educacional para o Curso de Medicina, denominado Projeto Famema 2000 (Famema, 1998).

A experiência dessa faculdade tem sido objeto de várias publicações (Barros, Lourenço, 2006; Moraes, Manzini, 2006; Ttsuji, Aguilar-da-Silva, 2004; Lima, Komatsu, Padilha, 2003; Komatsu et al., 1999; Komatsu, Zanolli, Lima, 1998), o que evidencia o seu caráter inovador.

A nova concepção pedagógica do Curso de Medicina da Famema passa a ser centrada no estudante, baseada em problemas, e orientada à comunidade (Famema, 1998). Essa nova proposta contempla referenciais filosóficos, psicológicos e socioculturais, norteando: a construção dos objetivos educacionais, a seleção dos conteúdos a serem estudados, e os desempenhos a serem desenvolvidos, a fim de se garantir a certificação de competência para o exercício profissional.

Na concepção da Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP), o processo ensino-aprendizagem é direcionado para o desenvolvimento da capacidade do estudante de: construir ativamente sua aprendizagem, articulando seus conhecimentos prévios com o estímulo proporcionado pelos problemas de saúde-doença selecionados para o estudo; desenvolver e utilizar o raciocínio crítico e habilidades de comunicação para a resolução de problemas clínicos, e entender a necessidade de aprender ao longo da vida (Barrows, 1994; Barrows, Tamblyn, 1980).

Além da mudança no método de ensino, a reforma curricular da Famema de 1997 contempla nova organização curricular, com a instituição das unidades educacionais, as quais apresentam, como importante característica, a atuação de uma equipe de trabalho interdisciplinar. Os problemas de saúde-doença elaborados por esta equipe e utilizados em sessões de tutoria, além de proporcionarem a integração básico-clínica, abordam as dimensões biológicas, psicológicas e socioculturais.

As habilidades profissionais para a formação médica, incluindo a semiologia e a comunicação, passaram a ser trabalhadas numa unidade referida como Habilidades Profissionais (HP), e a aproximação com as necessidades individuais e coletivas da população era a proposta da unidade educacional conhecida como Interação Comunitária (IC).

Outro aspecto importante, ocorrido após a reforma curricular, foi a organização de recursos educacionais de modo a favorecer o processo de aprendizagem autodirigida, como é o caso da criação do laboratório morfofuncional, do laboratório de informática, e a reestruturação da biblioteca.

Nesse contexto de mudança curricular, o presente estudo teve como objetivo avaliar os resultados do Curso de Medicina da Famema, tomando, como referência, a formação profissional ancorada na aprendizagem baseada em problema. Espera-se - por meio da identificação de limites e possibilidades dessa formação - contribuir para a melhoria do ensino médico na atualidade.

Metodologia

O presente estudo é parte de uma avaliação quantitativa e qualitativa dos resultados do Curso de Medicina da Famema, baseada na triangulação de métodos (Minayo, Assis, Souza, 2005; Denzin, 1973), aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Marília.

Neste artigo, são focalizados os resultados da referida pesquisa, gerados com base em uma abordagem qualitativa, aqui entendida como um conjunto de práticas interpretativas dos sentidos que os sujeitos atribuem aos fenômenos e ao conjunto de relações em que eles se inserem (Deslandes, Gomes, 2004; Denzin, Lincon, 2000).

Em relação aos sujeitos da pesquisa, foram considerados, como informantes principais, os egressos do Curso de Medicina que concluíram o curso nos anos de 2003 e 2004. A escolha por esses períodos de conclusão ocorreu pelo fato de esses egressos, em 2007, já terem, pelo menos, dois anos de formados e por pertencerem à segunda e terceira turmas na nova concepção curricular. Outra justificativa para essa escolha se refere ao fato de tais sujeitos terem vivenciado, durante a sua graduação, um currículo que: (a) teve pelo menos um ano de implantação, (b) passou por processo de avaliação do programa implementado, e (c) teve correções de rumo, como: modificação de problemas de papel, aumento do acervo dos laboratórios e da biblioteca, adequações das unidades educacionais de habilidades profissionais e de interação comunitária, além de implementação do processo avaliativo.

A esses egressos - que totalizavam 160, sendo oitenta concluintes no ano de 2003 e oitenta no ano de 2004 - foi enviado um questionário pelo correio com perguntas fechadas sobre: aspectos socioeconômicos, cursos realizados após a graduação, atuação profissional e avaliação do curso. Foi dada a opção de enviar o questionário preenchido por via postal ou eletrônica. As perguntas fechadas não constituíram a base de análise deste artigo.

Além das perguntas fechadas, no questionário, havia a descrição de um caso clínico, solicitando ao egresso a elaboração de um plano de cuidados para o caso descrito. Esse plano de cuidado constituiu um dos focos de análise deste trabalho. Do total dos convidados, 41 responderam ao questionário, sendo 22 do ano de 2003 e 19 do ano de 2004.

Aos egressos que responderam ao questionário, fez-se convite para compor uma amostra de conveniência de pesquisa qualitativa. Nessa pesquisa, consideram-se os sujeitos em número suficiente para que seja possível a reincidência das informações, e foi prevista a possibilidade de haver inclusões sucessivas de sujeitos até que fosse possível uma discussão densa das questões da pesquisa (Minayo, 2006). Além dos egressos, foram convidados a participar dessa parte da pesquisa: gestores que, de alguma forma, coordenavam o trabalho dos egressos; preceptores que estavam supervisionando sua residência, e usuários que estavam sendo atendidos por eles.

Ainda, em termos de seleção dos egressos entrevistados, foram escolhidos os que estivessem atuando no Estado de São Paulo, na rede pública e no serviço privado, e que estivessem cursando, ou não, a residência médica. Foram entrevistados 17 egressos, sete do ano de 2003, sendo quatro do sexo masculino e três do sexo feminino, e dez egressos de 2004, distribuídos igualmente quanto ao sexo.

Os egressos entrevistados foram convidados a participar de uma situação que simulava a prática médica, com a participação de paciente simulado, num cenário estruturado da Famema. Sete egressos desenvolveram essa atividade.

Em relação aos demais sujeitos da pesquisa, com base nos princípios da amostra de conveniência de pesquisa qualitativa, foram selecionados os que tinham algum tipo de relacionamento com os egressos entrevistados: seis preceptores envolvidos em programas de residência médica; cinco gestores, e seis usuários atendidos por egressos da turma de 2003 e quatro da turma de 2004, totalizando dez usuários, sendo três do sexo masculino e sete do sexo feminino.

Para garantir o sigilo, as entrevistas que apoiaram as análises realizadas foram identificadas por nomes fictícios dados a cada participante, sendo representados, com a inicial "A", egressos do ano de 2003 (por exemplo, Alberto); "C", egressos do ano de 2004 (por exemplo, Cristiano); "D", gestores e preceptores (por exemplo, Deise), e "M", usuários (por exemplo, Mônica).

Neste artigo, estão sendo focalizados os seguintes processos: elaboração de um plano de cuidado com base em um caso clínico (segunda parte do questionário); entrevista semiestruturada, registrada por gravador de voz, e situação simulada, filmada e gravada.

No caso clínico fictício, era caracterizada uma usuária de um serviço público de saúde que apresentava pressão arterial elevada e diabetes e, após a descrição do seu quadro clínico, era solicitado ao egresso que elaborasse um plano de cuidados para atender às necessidades de saúde da usuária.

As entrevistas semiestruturadas seguiram roteiros específicos para cada categoria de informante. Assim, foram levados em conta os seguintes tópicos: (a) para os egressos, incidente significativo ocorrido durante a graduação, trajetória após a conclusão do curso, a experiência em articular as dimensões biológica, psicológica e social, opinião acerca da relação médico-paciente, e avaliação do curso da Famema; (b) para os gestores e preceptores, características de um médico para atender à realidade do serviço, avaliação do egresso em termos de sua atuação profissional, e diferenças entre a atuação do egresso e de médicos formados por outras instituições; (c) para os usuários, como deve ser um atendimento médico, e avaliação do atendimento que teve por parte do egresso.

A situação simulada se referiu a um caso clínico fictício de uma usuária de um serviço público de atenção básica à saúde, com diagnóstico de tuberculose pulmonar bacilífera. Na situação proposta, o egresso, que estava substituindo o médico titular do serviço, deveria informar à paciente, que retornava à consulta, esse diagnóstico, e propor um plano de cuidados. O foco de observação foi a relação estabelecida pelo egresso com a paciente durante essa consulta.

Em relação à interpretação dos dados, trabalhou-se com: (a) os textos que foram produzidos com base no caso clínico; (b) as transcrições das gravações das entrevistas, e (c) relatórios e filmagens das atuações dos egressos na situação simulada. Todo esse material foi trabalhado com base no método de interpretação de sentidos (Gomes, 2007; Gomes et al., 2005), fundamentado na abordagem hermenêutica-dialética (Minayo, 2002), buscando a compreensão dos sentidos presentes em mensagens e procurando interpretar o contexto, as razões e as lógicas de falas, ações e inter-relações entre grupos e instituições.

Na trajetória analítico-interpretativa dos textos, foram percorridos os seguintes passos: (a) leitura compreensiva do material; (b) identificação e problematização das idéias explícitas e implícitas nos materiais; (c) busca de sentidos mais amplos (socioculturais), subjacentes às falas e às ações dos sujeitos da pesquisa, e (d) elaboração de síntese interpretativa, procurando articular objetivo do estudo, base teórica adotada e dados empíricos.

Após a interpretação dos dados, os resultados do curso foram avaliados a partir de três indicadores de caráter qualitativo, elaborados com base em Assis e colaboradores (2005) e no planejamento curricular do curso. Assim, foi considerado que o curso teria alcançado os resultados pretendidos se: (1) os egressos conseguissem articular as dimensões biológica, psicológica e social em seus depoimentos e em suas ações simuladas; (2) os egressos apontassem, em seus depoimentos, o aprender a aprender como base para uma melhor atuação profissional, e (3) gestores e usuários de serviços de saúde reconhecessem que a atuação do egresso iria além do foco da doença.

Apresentação e discussão dos resultados

Avaliação positiva do curso

Em geral, os sujeitos envolvidos no estudo atribuíram sentidos positivos ao Curso de Medicina da Famema. A positividade desse curso foi observada tanto nas falas dos sujeitos, quanto nas ações simuladas e na elaboração de um plano de cuidados.

O primeiro sentido atribuído ao curso, por parte dos egressos, foi a formação humanista. Em geral, eles se aproximaram de uma lógica de cuidados em que se articula o uso das tecnologias com uma perspectiva que parte da escuta, passando pela gerência dos afetos, em busca de um comprometimento com a felicidade humana (Deslandes, 2006).

Caminhando nessa lógica, diz um egresso, "ser especialista do paciente e não da doença e tratar o paciente como se fosse alguém da própria família" (Alberto). Outro depoimento reforça esse resultado do curso, quando considera que, em primeiro lugar, é importante "se ater ao interesse do paciente [...] pois somente desse modo o médico vai conseguir identificar as necessidades dentro das dimensões biopsicossociais" (Antenor).

Essa formação, segundo os egressos, contribuiu para que, em sua atuação, eles conseguissem ver seus pacientes de uma forma integral, a partir de uma perspectiva biopsicossocial, não reduzindo seu tratamento à doença, atendendo "a pessoa de forma integral, ouvindo qual que é a necessidade dela [...] ter uma relação de confiança" (Cristiano).

Em síntese, por conta da formação que tiveram, conseguiram ampliar o seu foco para o sujeito da doença e estabelecer uma boa relação com os seus pacientes. Os dados quantitativos - que são objeto de outro estudo - reforçam esse resultado, uma vez que, na pergunta do questionário sobre o fato de o curso ter contribuído ou não para um atendimento baseado na articulação entre as dimensões biológica, psicológica e social, 97,6% das respostas se situaram no limite superior de respostas positivas.

Os resultados da formação humanista promovida pelo curso também se evidenciam durante as situações simuladas. Observou-se que os egressos acolhiam e se preocupavam em estabelecer um contato com a paciente simulada, olhando-a, escutando-a e examinando-a de uma forma respeitosa. Isso se evidenciou não só a partir da escuta das falas, mas também com base no olhar, nos gestos e nos movimentos dos egressos estabelecidos durante a consulta simulada, possibilitando a interpretação das condutas e abordagens estabelecidas por eles. A título de ilustração, destacamos aspectos de uma das simulações:

Antenor foi até a porta, cumprimentou a paciente, se apresentou e pediu que ela se sentasse. Ouviu atenciosamente a queixa da paciente, intercalando o olhar com o registro dos dados que ia coletando em sua escuta. Enquanto os fatos iam sendo relatados, Antenor mantinha o tronco inclinado à frente, olhando nos olhos da paciente, numa postura de escuta atenta. Ele validou os sentimentos expressados por ela diante de seus problemas. Quando a paciente diz que "eu estou acabada, estou sem chão", ele a tranquiliza, respondendo "é natural que isso aconteça, quando se descobre que tem uma doença que causa medo... fique tranqüila [...] as coisas vão se resolver". Durante o exame, manteve a atitude respeitosa, solicitando licença para tocar na paciente a fim de verificar a pressão arterial. Quanto à conduta e propostas terapêuticas, observou-se também uma abordagem da dimensão coletiva, e não apenas da individual: "a senhora trabalha com carteira registrada? Então a senhora tem direito de continuar no trabalho e se sua patroa estiver esclarecida [...] não vai ter motivo para ter esse tipo de preocupação. Eu estou te dizendo, eu me coloco à disposição para conversar". Despediu-se da paciente, apertando sua mão e acompanhando-a até a porta.

A análise dos planos de cuidados elaborados pelos egressos com base em um caso clínico descrito no questionário também revelou a preocupação com o sujeito da doença, que pode indicar um resultado de uma formação humanista. Aproximadamente 74,3% dos egressos contemplaram, em seu plano de cuidados, uma terapêutica mais ampliada, não se restringindo à indicação de medicamentos para o tratamento de um caso clínico que constava do questionário. Nos planos de cuidado, isso também ficou patente, sobretudo pela utilização de linguagem acessível ao usuário e o investimento para estabelecer maior vínculo, buscando a melhoria na adesão ao tratamento.

A formação humanista promovida pelo curso não só foi atestada nas falas e nas ações dos egressos, mas também pode ser inferida das falas dos usuários dos egressos entrevistados, que mencionam atitudes positivas de seus médicos (os egressos). São atitudes que revelam atenção, respeito e cuidado em relação aos usuários. Ilustrando esse tratamento humanizado, destacam-se os depoimentos dos seguintes usuários: "Não foi um atendimento igual [aos outros que ela teve]... foi totalmente diferente... ele foi... assim mais cuidadoso" (Mariana); "Ele [o egresso] é muito bom, é atencioso, conversa, explica o que está se passando" (Mônica); "[O egresso] atende humano" (Marcos).

Nos depoimentos dos gestores, também foram identificados aspectos que apontam para a diferença na atuação do egresso da Famema quanto a: segurança no atendimento, acolhimento, escuta, atenção e bom relacionamento interpessoal. Como disse um gestor: "a gente vê [...] como é bem feita a anamnese desse profissional e [...] você vê que ele tem um olhar bem ampliado do paciente" (Deise).

Outro sentido atribuído à positividade do curso é a promoção do aprender a aprender,um dos princípios da ABP, como exemplificado nas falas de egressos que gostaram muito da busca constante das informações e a possibilidade de autogerir seu tempo para o estudo e para a formação complementar: "[O curso deu] muita segurança [...] para resolver problemas, [para ir] atrás [...] não ficar dependendo de outras pessoas" (Aurora); "[A faculdade ajudou] principalmente a aprender a pesquisar mesmo, a aprender sozinha, a buscar informações" (Cristina).

Com base nesses depoimentos, pode-se inferir que a metodologia utilizada no curso contribui para esses médicos serem mais ativos, críticos e reflexivos. A busca constante de novos conhecimentos, não somente em livros textos, mas em artigos científicos, é uma habilidade que se sobressai entre os egressos da Famema, contribuindo para um melhor raciocínio clínico. Os depoimentos dos gestores/preceptores reforçam esse sentido atribuído pelos egressos, ilustrado na seguinte fala: "Que continue usando o que aprenderam lá [Famema], de correr atrás das coisas, de ler, de pesquisar e de discutir, questionar as coisas, não ficar aceitando... Tem que perguntar, tem que discutir..." (Denise).

Um terceiro sentido positivo atribuído ao curso é a valorização da convivência com outros profissionais ligados à saúde - observada na abordagem multidisciplinar e na convivência com outra profissão - sobretudo com a enfermagem. Ilustrando essa idéia, destaca-se o seguinte depoimento: "[...] a Famema só deu experiência junto com enfermagem, mas eu acho que isso já ajudou muito nesse diálogo com outras profissões" (Carmem).

Os egressos fizeram várias referências ao plano de cuidado elaborado com base no caso clínico em relação à importância do trabalho em equipe multiprofissional. Em 53,8% dos planos, houve referência ao trabalho multiprofissional, como em um plano de cuidado no qual o egresso "elabora um plano multidisciplinar [...] [destacando que] seriam úteis visitas domiciliares pela equipe de saúde (médico, enfermeira, agente de saúde, nutricionistas, entre outros), grupos de orientação ao hipertenso e ao diabético" [situação presente no caso clínico]. Entretanto, alguns egressos apenas citaram o encaminhamento que fariam, como, por exemplo: "encaminharia para psicólogo", demonstrando a pertinência do trabalho multidisciplinar, e não, necessariamente, sua atuação em equipe.

A importância do trabalho em equipe multiprofissional também foi constatada nos depoimentos, como exemplificado a seguir:

Tinha um monte de questões biopsicossocial que a gente conseguiu dar conta. Isso que é o mais legal. Não precisei encaminhar para o [especialista] [...] a dentista participou, a agente comunitária participou, a auxiliar de enfermagem foi fazer a medicação [...] a equipe toda participou para que a gente cuidasse dele. E ele quer fazer o tratamento aqui com a gente. (Cristiano)

O preparo para trabalhar em equipe multiprofissional foi muito bem avaliado por meio dos dados quantitativos, na medida em que 97,6% das respostas dos questionários preenchidos avaliaram positivamente esse quesito.

Essa avaliação positiva surge, também, nas entrevistas com os gestores/preceptores, onde o egresso, na sua atuação, tem a capacidade de trabalhar em equipe, de saber ouvir e discutir com outros profissionais, como se constata no relato: "[...] essa disponibilidade de sentar e de conseguir discutir um caso com outro profissional com paciência [...] e a gente sabe que não é pra qualquer pessoa, qualquer médico que a gente vai ter essa liberdade de falar [...] a gente sente que é bem recebido" (Débora).

Por último, destaca-se o sentido de integração teoria e prática como mais uma fortaleza atribuída ao curso, refletida na ênfase com que apareceu a referência à importância de se "colocar a mão no doente desde cedo" (Amaro) e ao "contato espontâneo" (Aurora) com as pessoas e a comunidade, ao falar da unidade educacional de IC da quarta série. Nesse momento, o estudante passava a integrar o dia-a-dia de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e de uma Unidade de Saúde da Família (USF), aprendendo, a partir dessa prática, a estabelecer uma interação natural com a comunidade e com os outros profissionais de saúde, especialmente com os estudantes de enfermagem.

No relato de um gestor/preceptor, há o reconhecimento de que o egresso, na sua atuação, tem a capacidade de integração/articulação de conteúdos, articulação entre teoria e prática e resolubilidade, vendo "o problema de forma ampla [...] [sendo] mais prático no que faz" (Dirce). Também foi apontado, por outro gestor/preceptor, que: "[...] estar no serviço desde o início é muito importante mesmo, porque é a possibilidade de o aluno ter uma orientação tanto do professor da faculdade quanto do supervisor no campo, e conseguir sanar várias dúvidas e vir mais preparado para atuação" (Débora).

A inserção na prática profissional, desde o início do curso, segundo alguns egressos, fez com que a resolução de problemas propostos nas sessões de tutoria tivesse uma maior articulação com a realidade da qual eles se integrariam como profissional. Essa observação reflete não só a eficácia de uma proposta pedagógica ancorada na APB, mas também um princípio político-pedagógico adotado pelos planejadores e gestores do curso.

Os resultados obtidos na presente avaliação se articulam a resultados obtidos em avaliações internacionais. Ainda que pesem as diferenças entre a realidade brasileira e a realidade de outros países que vêm adotando a ABP, é possível serem pensados pontos de intersecção entre as conclusões das diferentes avaliações, que, de certa forma, podem ser utilizadas para a construção de indicadores a fim de se avaliarem ou se validarem os resultados de cursos médicos que utilizam esse modelo de metodologia ativa.

Dentre os resultados de avaliações internacionais que, de certa forma, reforçam os achados deste estudo, observa-se que os estudantes formados por esse modelo pedagógico: (a) revelaram ser capazes de ter uma aprendizagem autodirigida, facilitando, dessa forma, o seu constante autoaperfeiçoamento (Jones, MCardle, O'Neil, 2002; Steele, Medder, Turner, 2000; Birgegärd, Lindquist, 1998; Finucane, Johnson, Prideaux, 1998); (b) demonstraram qualidades humanísticas (Maheux et al., 2000); (c) expressaram habilidades interpessoais e psicossociais, integradas ao raciocínio baseado na anatomofisiopatologia (Prince et al., 2005), e (d) evidenciaram - após a graduação - competências médicas relacionadas ao trabalhar com os aspectos sociais e ao aprender a aprender (Koh et al., 2008).

Os resultados obtidos na presente avaliação podem atestar que a Famema se encontra no caminho para lidar com o desafio apontado por Campos (1999), que é o de reformar saberes e práticas para reorientar tanto a clínica quanto a saúde pública. Segundo o mencionado autor, os cursos de medicina deveriam se voltar para a formação de médicos capazes de: resolver problemas de saúde; integrar-se em equipes multiprofissionais; reconhecer as determinações social, subjetiva e biológica, da saúde/doença; elaborar planos terapêuticos articulados a essas determinações; construir vínculos, e assumir responsabilidade em lidar com a cura e a reabilitação dos seus pacientes.

Limites do curso

Além dos sentidos positivos atribuídos ao Curso de Medicina da Famema pelos egressos, este estudo também identifica limites durante o processo de formação desse médico.

Um sentido atribuído como limite pelos egressos foi o papel do tutor. Esse papel, na percepção de alguns egressos, deveria ser desenvolvido por especialista nos conteúdos específicos da medicina. A exemplo disso argumenta um egresso: "[Se o tutor] não tem esse conhecimento, como que ele vai poder falar que está errado? Com certeza eu saí com algum conceito diferente porque não foi me corrigido na hora, mas eu acho que no quinto e sexto ano foi corrigido" (Camilo).

O tutor sempre foi entendido como aquele que deveria estar atento ao processo grupal e facilitar a discussão e o entendimento do problema. Assim, independente de ser médico ou não, o tutor mal preparado para a função de facilitador pode trazer prejuízos para o trabalho no grupo de tutoria quando o problema proposto não for devidamente explorado.

Os egressos referiram a necessidade de o tutor ter de "vestir a camisa" (Celina), estar envolvido, ser interessado, alavancar a discussão e cobrar o estudo dos estudantes. A mesma idéia foi compartilhada por gestores/preceptores que consideram a necessidade de "um desempenho maior por parte do tutor e uma cobrança também maior sobre o aluno" (Denis).

Os egressos também deram exemplos de situações consideradas prejudiciais ao processo tutorial, como é o caso de tutor que dormia durante a tutoria e de tutor muito exigente com um conteúdo específico.

Outro sentido atribuído como limite pelos egressos é a dificuldade de integração entre as unidades educacionais, entre básico e clínico, entre teoria e prática. Nas duas primeiras séries, a unidade de IC foi apontada como desarticulada das outras unidades da série, sem propiciar "um cenário de aprendizado feliz" (Antenor). Foi lembrada, negativamente, como uma unidade que não serviu para nada, em que os estudantes não assimilaram nenhum conhecimento, nenhuma aprendizagem. Entretanto, a possibilidade de "pôr a mão no doente desde cedo" (Amaro) e a inserção na comunidade durante essa unidade, "principalmente no quarto ano" (Alberto), foram apontadas como experiências positivas, possibilitando uma aprendizagem significativa.

A mesma idéia surge quando os egressos relatam que o curso de graduação se dividiu em dois, sendo que, do primeiro ao quarto ano, trouxe uma visão bastante abrangente, e, no internato, foi quando ocorreu a integração entre a teoria e a prática intra-hospitalar. Reforçaram que, apesar de terem tido, nos anos anteriores, várias atividades práticas, foi só no internato que conseguiram integrá-las. Além disso, consideraram que tanto a teoria como a prática foram bem exploradas, apesar de ter faltado maior integração entre elas.

O mesmo sentido surgiu nos depoimentos de gestores/preceptores quanto a essa desarticulação. Ainda "está faltando coadunar os problemas com a realidade enfrentada no dia-a-dia e muitas vezes com realidades complexas, não no sentido da dificuldade por si só, mas dos inúmeros fatores envolvidos e na tomada de decisão" (Donizete).

Outro sentido atribuído como limite, pelos egressos, é a dificuldade de trabalhar com os conteúdos das disciplinas básicas unicamente nas sessões de tutoria.Segundo eles,essas disciplinas não foram devidamente valorizadas, e tiveram dificuldade de integrá-las com a clínica, tendo de "aprender fisiologia na raça" (Cristiano). Embora a insegurança em relação aos conteúdos das disciplinas básicas seja lembrada, depois de formados, perceberam que o curso havia conseguido alcançar os objetivos propostos, visto que, quando estavam cursando a graduação, haviam achado que "não ia dar certo" (André).

O acompanhamento de professores especialistas em aulas tradicionais e conferências é sinalizado como importante para orientar e facilitar o estudo. Foi apontada, também, a necessidade de se ampliar a quantidade de atividades práticas, e os gestores/preceptores apontaram que:

[...] quando se desenvolve o problema [de papel] existe espaço para que a cadeira básica contribua, mas de forma pontual. E, na discussão do problema, [esse aspecto] está sendo insuficiente [...] havendo então a necessidade de promover uma discussão e [que] os estudantes tinham que ter noções sistemáticas de anatomia, fisiologia, patologia, farmacologia, ou seja, as disciplinas das cadeiras básicas, [questionando se] isso não seria um acréscimo ao processo e não entendendo o processo anterior [tradicional] como desprezível. (Donizete)

Esse depoimento mostra o despreparo de alguns tutores e construtores de unidades para alcançarem a integração, entre aspectos básicos e a clínica, de forma adequada na discussão dos problemas. Entretanto, ao longo desses dez anos de ABP na Famema, esse processo vem se aprimorando. Assim, a organização curricular implementada em 1997 com unidades educacionais baseadas em sistemas isolados e com as unidades de HP e de IC desvinculadas evoluiu para unidades anuais que contemplam não somente essa integração, mas também a interdisciplinaridade, a integração teoria e prática, compreendendo o processo saúde-doença na lógica da vigilância à saúde.

Outra evolução positiva foi a troca de problemas inicialmente centrados num órgão ou sistema doente, para problemas mais contextualizados, em que o foco passa a ser o indivíduo, doente ou não, e sua família, e não mais seu organismo doente. Essa visão integral do indivíduo permite que o estudante tenha motivação interna para o estudo das disciplinas básicas, pois a aprendizagem torna-se significativa, já que ele busca compreender a pessoa no seu contexto e, desta forma, intervir nas suas necessidades.

A partir de 2003, a nova proposta da Famema foi a de trabalhar um currículo por competência na abordagem dialógica, pautado no conceito de integralidade do cuidado, sob a ótica das necessidades de saúde e com uma educação transformadora, crítica e reflexiva, cuja aprendizagem significativa passa a sustentar essa proposta, estimulando a produção do conhecimento, promovendo a reflexão sobre a prática e, consequentemente, sua transformação.

Outro sentido atribuído como limite pelos egressos é a avaliação,na qual, segundo eles, há necessidade de mais cobrança nas provas para melhor perceberem suas deficiências e se prepararem de forma mais adequada. Em função disso, vários estudantes foram fazer cursinho para prestarem residência. As avaliações das unidades foram consideradas como sendo um processo imaturo, sem avaliação sistematizada do conteúdo das unidades, com constantes mudanças de regras durante as séries.

Por último, destaca-se, como limite do curso, na ótica dos egressos, a falta de atividades de iniciação científica. Referiram que os poucos trabalhos científicos desenvolvidos aconteceram devido ao esforço do estudante e por encontrarem uma "abertura" (Carla) maior com o pessoal das cadeiras básicas. Apesar dessas dificuldades, foi pontuado, pelos gestores/preceptores, que a capacidade de pesquisa no sistema tradicional era muito menor, comparada com a dos estudantes desse novo sistema de ensino.

Paralelamente aos limites, na fala dos egressos, destacam-se algumas recomendações, tais como: a necessidade de conhecer e aprender sobre administração clínica hospitalar; a promoção de uma avaliação da prática profissional mais rigorosa; maior desenvolvimento do atendimento a emergências no currículo; fortalecimento do diretório acadêmico, promovendo maior participação do estudante no processo de ensino e construindo uma relação de responsabilidade e compromisso; maior incorporação da medicina preventiva e da medicina baseada em evidências. Segundo uma egressa, se no início do curso tivesse sido mais trabalhada a medicina baseada em evidências, os estudantes não seriam levados a gastar "dinheiro com xérox de artigo ruim" (Celina).

Ainda em relação à medicina baseada em evidências, a sua utilização na atuação do egresso não é considerada diferenciada da atuação do profissional formado no ensino tradicional, segundo um dos gestores/preceptores entrevistados. Ele relatou que o egresso utiliza essa ferramenta, bem como os consensos, com propriedade, mas considera que nem sempre sua aplicação na prática é adequada.

Os sentidos atribuídos aos limites do curso por parte dos egressos, de certa forma, revelam inseguranças frente ao fato de o curso ter sido inovador. Essas inseguranças, por sua vez, se relacionaram às dificuldades de: (a) ter um professor-tutor preparado para a promoção da ABP; (b) a gestão curricular integrar as diferentes unidades do curso; (c) o estudante lidar com o novo; e (d) o próprio mercado de trabalho aceitar um profissional formado por um curso não tradicional.

Comparando os resultados positivos com os limites do curso apontados pelos egressos, observa-se que não se trata de dois blocos excludentes. O que é limite para alguns egressos pode ter sido percebido como aspecto positivo por outros. Isso faz lembrar as avaliações de cursos baseados na ABP, descritas na literatura. Uma desvantagem de um curso baseado nessa proposta pedagógica deve-se ao fato de uma avaliação nem sempre ser validada por outra. O mesmo ocorre com os resultados positivos. Caminhando nesse raciocínio, Finucane, Johnson e Prideaux (1998) concluem que os médicos egressos de cursos com APB revelam ter adquirido menos conhecimentos das áreas básicas. Já Antepohl e Heizig (1999) encontraram evidências de que egressos desse tipo de curso são mais bem preparados para pôr em prática conceitos das ciências básicas do que os oriundos de cursos tradicionais.

A literatura vem apontando que um dos limites dos cursos ancorados na ABP se relaciona à qualidade da discussão dos problemas que define as questões de aprendizagem (Schmidt, 1993, 1983; Barrows, 1988) e ao papel do tutor como facilitador do trabalho em grupo tutorial (Barrows, 1985). Desvantagens têm sido apontadas quando esse papel é exercido de uma maneira mais diretiva, predominando a interação tutor-estudante em detrimento da interação estudante-estudante (Silver, Wilkerson, 1991); ou quando o tutor usa mais o conhecimento referente à sua área de especialidade durante as sessões de tutoria, enquanto o tutor, que não domina um conteúdo específico, usa mais a sua habilidade de facilitador (Schmidt et al., 1993). Entretanto, outros autores têm mostrado vantagens de o tutor ser um detentor do conhecimento específico, pois os estudantes direcionam o dobro de seu tempo com a elaboração de questões de aprendizagem e com o estudo autodirigido, e produzem mais questões de aprendizagem, sendo essas mais congruentes (Schmidt et al., 1993; Eagle, Harasym, Mandim, 1992).

É importante que essa discussão seja levada em conta em futuros estudos sobre os limites dos cursos de medicina ancorados na ABP. Tal discussão precisa avançar com outras pesquisas de avaliação. Para que se caminhe na direção desse avanço, segundo Dolmans (2003), é preciso que as pesquisas de avaliação não focalizem apenas a efetividade das intervenções educacionais fundamentadas na APB, mas também determinem por que uma intervenção é ou não efetiva e sob que condições. Em outras palavras, não bastam as pesquisas de resultados, sendo também necessárias as que avaliem o processo. O mesmo autor ainda chama atenção de que não bastam as revisões estatísticas e quantitativas para se avaliarem os cursos em ABP, mas também é importante se promoverem estudos de narrativas sobre tais cursos.

Considerações finais

Em geral, os egressos avaliaram o curso de forma positiva, visto de maneira significativa, tanto para a formação, como para a vida profissional. Embora os dados quantitativos não tenham sido focalizados neste trabalho, eles podem reforçar a positividade da avaliação qualitativa. Esses dados apontaram que - numa escala de um a cinco, sendo, o um, resposta francamente negativa, e, o cinco, resposta francamente positiva - os escores médios se situaram entre quatro e cinco.

Ao se interpretarem esses resultados, faz-se necessário observar que a positividade atribuída ao curso não serve efetivamente para atestar que a atuação dos egressos ocorre nos parâmetros desejados pela Instituição. Entretanto, com base nos achados, pode-se afirmar que tais parâmetros fazem parte do imaginário dos egressos, servindo de referência para a elaboração de seus depoimentos e para as suas atuações em situação simulada da prática profissional.

Em termos qualitativos, tomando como base os indicadores de avaliação, conclui-se que o Curso de Medicina tem alcançado os resultados esperados. Isso se evidencia porque os egressos: demonstram ser capazes de articular as dimensões biológica, psicológica e social; destacam a importância de terem conseguido aprender a aprender para darem continuidade à sua formação; elaboram planos de cuidado que focalizam aspectos que vão para além do tratamento medicamentoso, prevendo ações integradas com outros profissionais de saúde. Os depoimentos apresentados na discussão, tanto nas falas dos pacientes - que consideram os egressos cuidadosos, respeitando-os e escutando-os com atenção - quanto nas dos gestores dos serviços de saúde - que reconhecem que a atuação do egresso vai além do foco da doença - também reforçam o êxito do curso de Medicina.

Por último, é importante destacar que, para que um curso ancorado na APB seja eficaz, não bastam apenas ações eficientes relacionadas ao planejamento e à gestão curriculares. É preciso que esse curso avance na integração entre currículo e realidade profissional, promovendo ações que objetivem mudanças tanto no espaço acadêmico como fora dele. Esse tipo de curso demanda tanto a reorientação dos saberes quanto a das práticas, aí incluídas as que ocorrem no âmbito do sistema de saúde.

Colaboradores

Os autores Romeu Gomes, Anete Maria Francisco, Silvia Franco da Rocha Tonhom, Maria Cristina Guimarães da Costa, Cássia Galli Hamamoto, Osni Lázaro Pinheiro, Haydée Maria Moreira, Maria de Lourdes Hafner participaram igualmente de todas as etapas de elaboração do artigo.

Recebido em 20/01/08.

Aprovado em 02/07/08.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2009
  • Data do Fascículo
    Mar 2009

Histórico

  • Aceito
    02 Jul 2008
  • Recebido
    20 Jan 2008
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