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Sobre "o olho do furacão"

A propósito "del ojo del huracán"

About the "eye of hurricane"

DEBATE

Sobre "o olho do furacão"

About the "eye of hurricane"

A propósito "del ojo del huracán"

Marco Aurélio Da Ros

Médico. Departamento de Saúde Pública, Universidade Federal de Santa Catarina. Rodovia Jornalista Manoel de Menezes, 1750, Praia Mole, Barra da Lagoa, Florianópolis, SC, Brasil. 88.061-700. ros@ccs.ufsc.br

O artigo das autoras surge num momento em que debater o rumo das residências multiprofissionais em saúde (RMS) é fundamental.

Parto da concordância de que é um novo conceito em construção, com todas as dificuldades em que, parafraseando Marx, as condições materiais para sua existência ainda não estão assentadas. Portanto, é um momento de luta para criar um outro modelo de trabalhar saúde. O olho do furacão parece ser uma analogia apropriada e, sem dúvida, tem, entre outros, o mérito de estimular a discussão sobre o tema.

Dentre o universo de questões que o artigo traz, e dado o limite de espaço, optei por alguns recursos, tais como, evitar citações de outros autores, e acrescentá-los ao final, e englobei alguns temas sob três pontos: 1) o modelo analítico-metodológico, que envolve o referencial teórico; 2) a questão histórica; 3) o jogo estratégico em pauta nas RMS.

1) Quanto ao modelo de análise: a metodologia qualitativa é, sem dúvida, bem indicada para abrir espaço de reflexão, mais do que dar respostas "matematicamente comprovadas". Por outro lado, também é verdade que existem sérios riscos de que a subjetividade do(s) autor(es) permita um grau de inferências, no mínimo, duvidosas. Por exemplo, sem discordar que possa ser uma interpretação possível, a capa da revista médica, citada no artigo, poderia ter todo um outro apanhado de subjetividades, se fosse guardado outro referencial teórico. As coisas que me ocorrem naquela imagem, poderiam ser de um ato-falho dos editores (concepção freudiana), admitindo que o modelo médico hegemônico é de esterilização necessária (luva fria e de borracha), mas distante do paciente, sem afeto, em que o instrumento (no caso, o bisturi) é a tecnologia utilizada, inclusive para sublimar atos de agressão, e o trabalho, dentro de um hospital, lócus por excelência da doença, e não da saúde. Por outro lado, a lã agasalha, não tem mesmo que segurar um bisturi. A imagem poderia significar a admissão implícita de sua limitação e fragilidade, e, portanto, assumindo que a RMS cria um novo que eles não sabem bem o que é. Se meu referencial é de saúde, e penso em trabalhar fora do hospital - que o branco não é pureza mas assepsia - me relacionando com os pacientes, a imagem definitivamente não me incomoda.

Ainda dentro do referencial analítico... Dado que o referencial é foucaultiano, não marxista, as análises tendem para o pós-moderno, com a questão de gênero colocada em relevo, ou a questão corporativa como essencial. Não são questões pouco importantes, mas, para além da aparência e em busca da essência, teríamos de analisar as relações sociais postas que determinam a serviço de quem está o atual modelo de saúde brasileiro; o tipo de profissionais que se forma, e, por outro lado, o que significa uma luta contra-hegemônica. Apesar dos esforços do movimento sanitário, a hegemonia, no modelo capitalista brasileiro, ainda copia o 'malchamado' modelo flexneriano, que na verdade é o modelo que permite a expansão do chamado complexo médico-industrial. Este modelo privilegia a tecnologia dura, o hospital, os seguros-saúde e a hipertrofia de medicamentos, eludindo a determinação social do processo saúde-doença. Isso leva a pensar que o bom modelo de formação seria, portanto (aparência), o conteúdo técnico, médico, biologicamente centrado (bisturi-hospital), em detrimento, por exemplo, dos eixos de promoção de saúde (discussão posta desde a Conferência de Ottawa em 1986), que envolveria luta por cidadania, espaços públicos de lazer, empoderamento. Não que sejam excludentes, mas a ruptura com a lógica biomecanicista não está colocada nas graduações em saúde.Médicos,fisioterapeutas, dentistas, enfermeiros, por exemplo, são dirigidos para o olhar que interessa ao capital. Como pensar, então, numa RMS que possibilite/ rompa com esse modelo? Penso que indo à essência, e buscando vislumbrar para onde pode caminhar o novo nesta nova crise capitalista internacional.

Ora, isso faz com que as caminhadas não sejam homogêneas, logo, a diversidade de modelos é regra boa neste momento, essencial para a contra-hegemonia.

2) Alguns aspectos históricos:As condições para emergência das RMS, considerando o jogo de poder das corporações profissionais, o peso do complexo médico-industrial e a luta dentro de setores dos Ministérios da Saúde e da Educação, eram muito tênues. Dentre as condições de barganha, após diversas reuniões entre MS-Segetes-Mov. Sanitário e Mec-Sesu-corporação médica-interesses do capital, nos primeiros anos do governo Lula, permitiram que somente perdida no meio de uma lei, a de n. 11.129, que cria uma secretaria nacional da juventude, em seu artigo 12, apareça - e fica criada - a RMS, para todas as profissões da área da saúde, exceto a médica. Isso permitiu que ela existisse de fato, mas oficializando uma separação da profissão médica que lutávamos para que não acontecesse. Mas a acumulação de forças, naquele momento, não permitiu que a legislação pudesse ser diferente. Por outro lado, isso traz à pauta, também, o que são as profissões da área da saúde. Elas existem oficialmente desde que foram aprovadas as diretrizes curriculares em 2001, nominando 14 profissões. Para que existissem essas diretrizes, foi necessário o protagonismo de diversos elementos do movimento sanitário. E é escandaloso que não as tenhamos entre nós, profissionais da área de educação, de sociologia, de engenharia sanitária, ou meio ambiente. Mas se entendemos a dinâmica dos processos brasileiros veremos que é, na luta, que se constrói o possível. Não é a partir das idéias que nos parecem certas que a realidade estará posta. É processo, e luta. É bom lembrar, por exemplo, que desde 1988, quando foi aprovada a Constituição, e nela diz que cabe ao SUS ordenar a formação de RH em saúde, no Brasil, até hoje, só conseguimos aprovar duas leis orgânicas do SUS, e ambas em 1990. De lá para cá, se esperássemos as condições ideais, hoje não teríamos 30 mil equipes de PSF, nem núcleos de apoio, nem RMS. Portanto, contra-hegemonia se faz quando se podem ampliar espaços. Eles não são perfeitos, e são contraditórios. Mas, contradição é mola da história.

3) Por último, o jogo estratégico. Mario Testa coloca o pensar estrategicamente como fundamental para o planejamento. Arouca nos ensinava da importância de se ter um sonho, para depois construir sua viabilidade, como a alma do processo de planejamento. Afirmava que se não sabemos onde queremos chegar, não chegaremos nunca. Portanto, foi assim que nasceu o SUS, e para que começássemos a organizar um sistema como se faz no mundo inteiro, organizando primeiro a porta de entrada (ou o nome que se quiser dar). É do sonho que nasceu a possibilidade do MS e o MEC sentarem juntos para iniciar as reformas curriculares na graduação, e que se criassem as RMS. As residências são esse sonho, e por isso mesmo elas são o próprio olho do furacão (parabéns pela feliz imagem dos autores), porque é como consequência delas que poderá nascer o novo profissional, que saiba trabalhar em equipe, que trate humanamente os que necessitam, que colabore com o empoderamento da população, que promova saúde e que ensine nas universidades esse, que ainda está por nascer.

Algumas leituras realizadas para este pequeno comentário passaram por Marx, Gramsci, Testa, Escorel, Arouca, Czeresnia e portarias e legislações do MS e MEC.

Recebido em 12/02/09.

Aprovado em 18/02/09.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2009
  • Data do Fascículo
    Mar 2009
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