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Planografias em pesquisa: mapas e fotografias na saúde mental

Planografías en investigación: mapas y fotografías en la salud mental

Planographs in research: maps and photographs within mental healthcare

Resumos

Discute-se a produção e uso de inscrições no percurso de uma pesquisa junto à unidade de atendimento de crianças e adolescentes do Hospital Psiquiátrico São Pedro em Porto Alegre, RS, Brasil. Oficinas de mapas e de fotografia foram propostas com o intuito de os jovens produzirem um plano com legitimidade diferenciada quanto aos planos existentes em sua internação hospitalar (prontuários, livro de ocorrência). As diferenças entre a produção de mapas e de fotografias permitiram especificar a noção epistemológica plano de inscrição, na qual estabelecemos três campos de análise: uma posição de observação frente ao plano, as condições técnicas de sua produção e a posição destes planos nos jogos de verdade. Evidenciou-se a necessidade de um questionamento sobre as técnicas envolvidas na produção de conhecimento, já que o uso de artefatos técnicos articula de maneira específica o campo do discurso e as materialidades que o suportam.

Oficinas de fotografia; Oficinas de mapa; Saúde mental; Metodologia de pesquisa


Se discute la producción y el uso de inscripciones en el curso de una investigación junto a la unidad de atención de niños y adolescentes en el Hospital Psiquiátrico São Pedro, en Porto Alegre, estado de Rio Grande do Sul, Brasil. Talleres de mapas y de fotografías se propusieron con la intención de que produzcan un plano con legitimidad diferenciada en relación a los planos existentes en sus internaciones en el hospital. Las diferencias entre la produccón de mapas y de fotografías han permitido especificar la noción epistemológica plano de inscripción en la cual esteblecemos tres campos de análisis: una posición de observación frente al plano, las condiciones técnicas de su producción y la posición de estos planos en los juegos de verdad. Se ha evidenciado la necesidad de discusión de las técnicas involucradas en la producción de conocimiento ya que el uso de artefactos técnicos articula de manera específica el campo de discurso y las materialidades que lo soportan.

Taller de fotografía; Taller de mapas; Salud mental; Metodología de investigación


The production and use of inscription within research at a unit caring for children and adolescents at the São Pedro Psychiatric Hospital, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil, is discussed. Workshops on maps and photography were proposed, with the aim that the young people could produce a plan with differentiated legitimacy in relation to the existing plans for their hospitalization (medical files and occurrence books). The differences in the production of maps and photographs made it possible to specify the epistemological notion of inscription plans, from which three fields of analysis were established: a position from which to observe the plan, the technical conditions for producing it and the position of such plans in truth games. The need to question the techniques involved in knowledge production was shown, since the use of technical artifacts specifically connects the field of discourse and the material issues that support it.

Photography workshops; Map workshops; Mental health; Research methodology


ARTIGOS

Planografias em pesquisa: mapas e fotografias na saúde mental* * Elaborado com base em Diehl (2007), dissertação com bolsa Capes.

Planographs in research: maps and photographs within mental healthcare

Planografías en investigación: mapas y fotografías en la salud mental

Rafael DiehlI; Cleci MaraschinII; Jaqueline TittoniII

IDoutorando, Programa de Pós-Graduação em Informática na Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Rua Ramiro Barcelos, 2600, sala 201d. Porto Alegre, RS, Brasil. 90.035-003. diehlrafael@yahoo.com.br

IIDepartamento de Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia, UFRGS

RESUMO

Discute-se a produção e uso de inscrições no percurso de uma pesquisa junto à unidade de atendimento de crianças e adolescentes do Hospital Psiquiátrico São Pedro em Porto Alegre, RS, Brasil. Oficinas de mapas e de fotografia foram propostas com o intuito de os jovens produzirem um plano com legitimidade diferenciada quanto aos planos existentes em sua internação hospitalar (prontuários, livro de ocorrência). As diferenças entre a produção de mapas e de fotografias permitiram especificar a noção epistemológica plano de inscrição, na qual estabelecemos três campos de análise: uma posição de observação frente ao plano, as condições técnicas de sua produção e a posição destes planos nos jogos de verdade. Evidenciou-se a necessidade de um questionamento sobre as técnicas envolvidas na produção de conhecimento, já que o uso de artefatos técnicos articula de maneira específica o campo do discurso e as materialidades que o suportam.

Palavras-chave: Oficinas de fotografia. Oficinas de mapa. Saúde mental. Metodologia de pesquisa.

ABSTRACT

The production and use of inscription within research at a unit caring for children and adolescents at the São Pedro Psychiatric Hospital, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil, is discussed. Workshops on maps and photography were proposed, with the aim that the young people could produce a plan with differentiated legitimacy in relation to the existing plans for their hospitalization (medical files and occurrence books). The differences in the production of maps and photographs made it possible to specify the epistemological notion of inscription plans, from which three fields of analysis were established: a position from which to observe the plan, the technical conditions for producing it and the position of such plans in truth games. The need to question the techniques involved in knowledge production was shown, since the use of technical artifacts specifically connects the field of discourse and the material issues that support it.

Keywords: Photography workshops. Map workshops. Mental health. Research methodology.

RESUMEN

Se discute la producción y el uso de inscripciones en el curso de una investigación junto a la unidad de atención de niños y adolescentes en el Hospital Psiquiátrico São Pedro, en Porto Alegre, estado de Rio Grande do Sul, Brasil. Talleres de mapas y de fotografías se propusieron con la intención de que produzcan un plano con legitimidad diferenciada en relación a los planos existentes en sus internaciones en el hospital. Las diferencias entre la produccón de mapas y de fotografías han permitido especificar la noción epistemológica plano de inscripción en la cual esteblecemos tres campos de análisis: una posición de observación frente al plano, las condiciones técnicas de su producción y la posición de estos planos en los juegos de verdad. Se ha evidenciado la necesidad de discusión de las técnicas involucradas en la producción de conocimiento ya que el uso de artefactos técnicos articula de manera específica el campo de discurso y las materialidades que lo soportan.

Palabras clave: Taller de fotografía. Taller de mapas. Salud mental. Metodología de investigación.

Introdução

Este artigo propõe-se a realizar uma análise da produção e uso de inscrições no contexto de uma pesquisa no Centro Integrado de Atenção Psicossocial (CIAPS) do Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP) em Porto Alegre. Com base em oficinas desenvolvidas no serviço, buscou-se investigar quais diferenças eram passíveis de observação pelo uso de artefatos digitais na produção de inscrições em relação às que eram produzidas sem esses artefatos. Para essa análise não tomamos as inscrições de modo isolado, mas referidas às superfícies que as suportam. Definimos superfícies de inscrição como qualquer superfície capaz de suportar traços com caráter simbólico para um grupo humano, tais como: paredes pichadas, folhas de papel, tela de computador e tela da TV. Escolhemos usar esse termo para reforçar o caráter material das produções simbólicas e sua relação com as condições de reconhecimento por um coletivo. Dessa forma, o objetivo deste artigo é propor uma análise da relação dos sujeitos da pesquisa com as superfícies de inscrição, levando em consideração três aspectos: a especificidade técnica dos suportes; a condição humana enquanto observador e os tensionamentos políticos daí emergentes. Trabalharemos com dois níveis de referência: o percurso de pesquisa enquanto fonte dos questionamentos teórico-metodológicos e uma proposição conceitual que articula campos teóricos heterogêneos, que se pretende justificar por sua operacionalidade no decorrer do trabalho. Nomeamos planografias ao conjunto de superfícies de inscrição e suas condições de inteligibilidade e legitimidade em determinado recorte empírico.

A análise presente neste artigo utiliza uma articulação teórica entre a noção de inscrição de Latour (2004), poder-saber de Foucault (2002) e o conceito de observador em Maturana (2001) para abarcar a proposição metodológica utilizada, que consistiu em oferecer a máquina fotográfica para que os sujeitos da pesquisa produzissem fotografias. A fotografia foi escolhida por tratar-se de artefato técnico de produção de superfícies de inscrição que pode ser considerado como marco importante na relação entre humanos e a produção de inscrições.

A fotografia tem sido utilizada de diversos modos em contextos de pesquisa, constituindo-se como parte significativa da metodologia e colocando questões importantes quanto ao seu uso e divulgação nos meios científicos. Em uma extensa revisão da literatura, Neiva-Silva e Koller (2002) identificam quatro funções da fotografia em uso nas pesquisas em psicologia: registro, modelo, feedback e autofotografia. Como suposto registro objetivo de dados, era utilizada para fazer comparações entre a inteligência dos sujeitos e a fotografia dos mesmos; como recurso semântico, utilizava-se a fotografia como modelo de algum conceito, sendo escolhida por ser mais facilmente reconhecida do que uma descrição verbal. Como exemplo de feedback, mostravam-se aos sujeitos fotos de si mesmos, com avaliações antes e depois, procurando avaliar efeitos sobre a autoestima por meio da mudança nos escores de testes. Nesses exemplos, podemos perceber que a fotografia encontrou os mais diversos usos, que tanto explicitam a atitude exploratória dos pesquisadores referente ao instrumento que utilizavam, como as concepções epistemológicas dos mesmos.

O método autofotográfico (Ziller, Smith, 1977 apud Neiva-Silva, Koller, 2002), que consiste no pedido para que os sujeitos da pesquisa façam suas próprias fotos com base em um tema sugerido ou em resposta a uma pergunta, inaugura o uso da máquina fotográfica pelos sujeitos da pesquisa, mesmo que ainda dependente do contexto discursivo no qual ocorre. O que nos interessa nessa modalidade metodológica é que ela põe em ação uma torção nas posições frente à máquina, podendo acarretar implicações epistemológicas e políticas, uma vez que aquele que é capaz de fotografar é o mesmo que, muitas vezes, é despotencializado frente a outras superfícies de inscrição.

Apesar de diversos usos metodológicos, tais como o de Achutti (2004) na antropologia visual e de Kirst (2000) na psicologia social, nos quais os autores fazem uma problematização quanto ao instrumento, a câmera ainda é manipulada pelo pesquisador. A pesquisa a que nos referimos se situa próxima a experiências nas quais a câmera é entregue para os sujeitos de pesquisa (Maurente, Tittoni, 2007; Maurente, 2005; Neiva-Silva, 2003; Wals, 2003; Tacca, 1991), com a peculiaridade de que a torção nas posições frente à máquina teve como objetivo explicitar as diferenças técnicas na produção de superfícies e sua articulação com o modo de leitura das planografias no local.

O campo da pesquisa e sua planografia

A pesquisa de dissertação de mestrado que serviu de referência para este artigo inseriu-se no projeto de pesquisa e extensão denominado Oficinando em Rede1 1 Projeto com apoio financeiro do CNPq. , por meio de uma parceria entre o Instituto de Psicologia e a Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e o CIAPS/HPSP. O Oficinando em Rede constituiu um campo de pesquisa e intervenção a partir da realização de oficinas com o apoio das tecnologias da informação e comunicação (TIC) no laboratório equipado com computadores e acesso à internet instalado no CIAPS.

O CIAPS é a unidade de internação e ambulatório de crianças e adolescentes do Hospital Psiquiátrico São Pedro, que encontra-se em uma situação híbrida em relação à reforma psiquiátrica ao oferecer serviços de internação para parte dos usuários do estado do Rio Grande do Sul e atendimentos ambulatoriais para a população de seu território dentro do município. Foi criado a partir de uma ação judicial do Ministério Público destinada à observância do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), pois os adolescentes eram internados no hospital junto com os adultos. Inicialmente, conteve a proposta de ser um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) conforme a influência do movimento antimanicomial, mas pela presença marcante das internações teve, por decisão da equipe técnica, seu nome modificado de CAPS para CIAPS.

Os jovens em atendimento na internação do CIAPS são identificados predominantemente sob o diagnóstico de transtornos mentais e de comportamento devido ao uso de substância psicoativa (F10-19), seguido de categorias como transtorno de humor e diagnósticos identificados às psicoses (Scisleski, 2006). Na avaliação dos encaminhamentos, o CIAPS parece funcionar como último recurso em uma espécie de errância desses jovens, que, não encontrando situações ou instituições que os acolham ou deem continência a eles, chegam por via judicial ou via conselho tutelar para a internação psiquiátrica, havendo um predomínio percentual de internações por ordem judicial (Scisleski, Maraschin, Silva, 2008; Scisleski, 2006).

O mote inicial do percurso investigativo partiu da observação de que as paredes da sala de atividades de grupo da internação de adolescentes se encontravam repletas de inscrições de nomes de pessoas e de cidades de proveniência dos jovens, apesar das constantes reprimendas quanto ao ato de nelas escrever. Ao mesmo tempo, percebiam-se restrições quanto à possibilidade de os jovens produzirem inscrições em superfícies institucionalmente legitimadas. Uma dessas manifestações podia ser percebida na atividade de "Leitura do Livro", que consistia em um livro de ocorrências que era lido diariamente e servia de referência "oficial" para os acontecimentos na internação, mesmo que os jovens relatassem outras versões para esses acontecimentos. Além disso, na semana seguinte às primeiras observações, as inscrições nas paredes da sala de atividades foram cobertas por uma nova camada de tinta.

Antes mesmo da instalação do laboratório, a equipe do projeto já havia escolhido a modalidade oficina como instrumento metodológico; e, a partir da observação das inscrições nas paredes, propusemos uma oficina de desenho de mapas, na qual eram levados mapas do estado do Rio Grande do Sul e da cidade de Porto Alegre como disparadores de comentários a respeito da origem dos jovens. Em seguida, pedíamos que desenhassem um mapa com aquilo que julgavam importante. A escolha do mapa como tipo peculiar de inscrição sobre uma superfície procurava relacionar a superfície produzida com experiências dos jovens que não estivessem reduzidas ao âmbito da escrita ou da produção pictórica já desenvolvidas em outras oficinas. Apostávamos que, frente a um mapa, os jovens teriam mais autoridade sobre as inscrições produzidas do que se estivessem, por exemplo, convocados a escrever, pois o mapa situa-se a meio caminho entre a escrita e a fotografia, no sentido de que torna mais objetiváveis as inscrições sobre a superfície ao enfraquecer a figura do autor, que está melhor estabelecido num texto escrito, levandonos a considerar que, no mapa, já há uma posição de observação estabilizada frente ao plano.

Essa oficina buscava oferecer aos jovens a possibilidade de produzirem inscrições nas quais estivessem ocupando uma posição mais legítima, pois, ao desenharem os mapas, referiam-se a um espaço que eles conheciam muito bem, mesmo que os mapas levados adquirissem um valor de modelo a serem seguidos, e apesar de muitos dizerem que não sabiam desenhar.

Procurando avaliar quais diferenças a tecnologia digital colocaria para a produção de inscrições pelos jovens, propusemos, na sequência, uma oficina de fotografia na qual perguntávamos se os jovens queriam fotografar, apenas oferecendo uma máquina fotográfica digital sem propor um tema específico. A proposição causou estranhamento nos jovens ao serem convocados a assumirem a posição de produtores das fotografias e, complementarmente, parte da equipe sentiu-se incomodada com o fato de os jovens empunharem uma câmera e de se encontrarem na posição de objeto para as fotografias.

Os efeitos provocados no local pelo fato de os jovens empunharem uma câmera fotográfica nos levaram a interromper as oficinas e propor uma nova modalidade na qual todos os envolvidos foram convidados a participar e dar seu consentimento para a organização de uma exposição dentro dos limites da internação. Essa proposta ocorreu no período de uma semana devido à rotatividade dos jovens na internação, pois queríamos que participassem de todas as etapas do processo. O comitê de ética do hospital não permitiria que os jovens aparecessem nas fotografias expostas fora do âmbito da internação.

As fotografias não permaneceram mais do que uma semana nas paredes da mesma sala em que haviam as pichações sobre as cidades, ao contrário dos mapas e outras produções pictóricas que os jovens faziam em oficinas. quando questionados sobre o destino das fotografias, ninguém na internação soube informar o que acontecera com elas, ficando apenas o livro de visitas que foi colocado junto da exposição, que continha recados semelhantes aos deixados pelos oficineiros.

Metodologia e análise

Duas peculiaridades metodológicas são expostas neste artigo para situarmos as planografias no contexto da pesquisa em ciências humanas: a torção produzida pelo oferecimento da câmera fotográfica para os jovens acostumados a ocuparem a posição de objetos do conhecimento, e a decisão do percurso de pesquisa aqui reportado de deslocar o foco do conteúdo das planografias para as condições de sua produção, o que justifica o estranhamento de um artigo que fala de fotografias sem mostrá-las.

Metodologicamente, escolhemos trazer para o plano da divulgação científica apenas inscrições referentes ao diário de campo porque é ele que permite, em nosso caso, acompanhar o processo de produção de planografias no CIAPS, deslocando nossa atenção do possível conteúdo dos mapas e fotografias produzidos para as condições de sua produção. Tal escolha implica não só a exposição do que foi relatado no diário de campo, mas exige algumas considerações epistemológicas, já que nossa pergunta refere-se às diferenças que a técnica de produção de uma superfície de inscrição coloca para o campo discursivo relacionado à leitura das planografias.

A passagem da oficina de mapas para a de fotografias baseou-se na condição de que as duas modalidades de planografias mantêm uma estabilidade de compartilhamento de inscrições possibilitada por um plano que estabiliza uma posição de observação frente a ele, permitindo que diferentes sujeitos possam ocupar uma posição frente à superfície. Essa posição de observação estabilizada frente ao plano torna-se mais marcada num mapa do que na escrita, por exemplo, porque a relação das inscrições do plano com o referente abdicam da centralidade do autor ou narrador encontrado no texto, criando um efeito de objetividade que encaminha o mapa a um modo de planografia que a fotografia vai concretizar com o auxílio do artefato da câmera escura. Essas diferenças estão intimamente relacionadas ao campo discursivo de cada planografia, pois sua afiliação a uma maior objetividade coloca a fotografia como instrumento diferenciado no contexto do CIAPS, motivo pelo qual propomos concentrar nossa análise nas condições de produção das planografias.

No domínio da produção de conhecimento científico, Latour (2004) denomina "central de cálculo" o tipo de superfície plana que o cientista tem ao domínio do olhar e que permite fazer previsões e relações em referência a outro domínio de realidade sem necessariamente estar imerso nele. Um exemplo é o trabalho do cartógrafo frente a um mapa, pois a possibilidade de o cartógrafo trabalhar com inscrições sobre o mapa só é possível porque outros cartógrafos estiveram no território e articularam inscrições produzidas in loco com outras estabilidades que permitiram estabelecer o desenho do mapa que pode ser contemplado na calma de um gabinete. Essa "mobilidade imutável" das inscrições permite que o observador, diante de uma central de cálculo, aumente seu poder preditivo ao multiplicar sua possibilidade de relacionar inscrições. Um exemplo da estabilização da posição de observação em campo pode ser vista na utilização de uma tabela que contenha diferentes matizes de cores de solo e seus respectivos códigos. De posse dessa classificação, um pesquisador pode aproximar o pedaço de solo que tem em mãos e os orifícios em cada matiz, podendo assim anotar o código da cor mais próxima do solo encontrado (Latour, 2001). Essa condição de central é mantida com a estabilização de uma posição de observação que exige a diminuição das singularidades de cada observador ao tratar com as inscrições, pois a consistência da central é dependente desse acordo entre diversos observadores. Por esse motivo, o mapa é um tipo de planografia que situa seu produtor na posição de um observador legítimo, desde que consiga articular, com os códigos de inscrições de mapas, sua experiência relativa ao espaço.

Nós nos aproximamos da questão central da metodologia ao percebermos que a tensão encontrada na produção de planos no CIAPS refere-se à posição em que os jovens estão acostumados a serem colocados diante de uma central de cálculo que se refere a eles mesmos. A diferença metodológica é que o objeto a que se referem as centrais de cálculo do hospital são os próprios pacientes que se encontram impossibilitados de participarem na definição das inscrições válidas para figurarem na central, ou, quando participam, o fazem como testemunho ou prova dos argumentos oficiais.

Acreditamos que essa é, também, uma peculiaridade da pesquisa nas ciências humanas, pois ao se utilizar de superfícies de inscrição que configuram as centrais de cálculo para produzir conhecimento sobre o humano, a própria posição de observação frente ao plano legível deve ser recolocada como problema de pesquisa. Os critérios de conduta que definem um diagnóstico sofrem uma determinação importante de fatores históricos e do próprio modo de funcionamento de instituições psiquiátricas, o que vai ao encontro do que Hacking (2001) define como classes interativas, ou seja, objetos que, ao serem classificados, sofrem modificações resultantes da própria ação de estarem classificados sob determinado traço. Como essas classes dizem respeito, sobretudo, ao domínio da conduta humana, entendido como domínio de coordenações de ações entre sujeitos linguajantes (Maturana, 2001), a atividade de produção de centrais de cálculo num campo de conhecimento que tem o humano como objeto fica mais sensível à dimensão política.

A condição de observador, teorizada pela Biologia do Conhecer (Maturana, 2002, 2001; Maturana, Varela, 2001), possibilita compreender a emergência da linguagem com base na convivência entre humanos, estabelecendo a condição dinâmica do linguajar como coordenações consensuais de coordenações consensuais de ações2 2 Para Maturana (2002), a linguagem é um efeito recursivo de coordenações de ações consensuais, o que a torna sempre dependente do contexto e da articulação entre ações e inscrições. (Maturana, 2002), na qual as possibilidades de ações estão codeterminadas pela convivência com outros organismos da mesma espécie. Esse domínio, por ser constituído de ações, é dependente do acordo entre os vários agentes sobre as ações pertinentes para cada situação e aquelas válidas como passíveis de se referirem à realidade. É nesse ponto que a política, no sentido de correlações de força entre diversos agentes, participa da constituição dos modos de representação do mundo.

A dimensão política refere-se ao campo de ações e de relações entre agentes que estabelecem as ações possíveis e legítimas em determinadas condições em articulação com cristalizações técnicas, o que inclui agentes humanos e não-humanos. No que se refere às planografias, essa tensão pode ser percebida no tipo de assunção que um sujeito toma para si em relação ao que pode produzir sobre uma superfície, como pode ser percebido no trecho a seguir.

Pedro era um jovem que nas primeiras oficinas de mapas apenas circulou dizendo que não sabia desenhar. Outras vezes desvalorizava a oficina. Desenvolveu comigo uma relação na qual parecia esperar a minha aprovação, apesar de que na minha chegada fazia um comentário de desprezo ao fato de eu estar ali de novo. Em uma das oficinas, pede que eu escreva uma carta de amor para sua namorada, pergunto porque ele não faz, ele diz que prefere que eu escreva como se fosse para minha namorada, mas quando espero que ele dite, ele diz que eu devo escrever. Acabo dizendo que não posso escrever uma carta por ele. Em outro dia em que me pede para escrever uma carta para sua mãe, escrevo a seu pedido o nome dela, sendo que depois ele completa com mais alguns nomes de sua família. Circula pela oficina sempre sem se dedicar aos mapas e diz, em uma ocasião em que me perguntam onde guardo os mapas, que eu os deixo largados lá na sala. Em uma das oficinas, quando ele ouve eu dizer que moro na mesma cidade que ele, me pergunta porque eu não havia dito isso antes, e pede para eu ir na casa da avó dele que ficaria perto da minha casa. Ele se dispõe a desenhar um mapa das proximidades, e posso reconhecer no mapa a localidade a que se referia. Falo com a assistente social para que conseguissem entrar em contato com sua avó, mas nas semanas seguintes ele ainda me cobra a visita e parece desanimado com minha negativa. Depois disso, algumas vezes o encontraria pelas ruas da cidade e nos cumprimentaríamos, tangenciando os assuntos que diziam respeito a sua estada nas ruas. (Diário de Campo)

Fica claro nesse episódio que a relação do jovem com as superfícies de inscrição disponibilizadas na oficina era marcada pela desvalorização de sua possibilidade enunciativa, seja na escrita ou no endereçamento dela para sua namorada. quando ele percebe uma operacionalidade efetiva que o mapa teria para localizar a casa de sua avó, pode perfeitamente ocupar a posição de observação e articular as inscrições de modo efetivo. Assim, podemos perceber que o jovem dominava as condições técnicas de desenhar um mapa legível mas que, em sua relação com o pesquisador e os planos usados na internação, não se sentia legítimo em produzi-los.

Essa condição de articulação entre posições de observação, planos e legitimidades quanto ao ato de produzir inscrições reconhecíveis num coletivo levou-nos a delimitar uma questão teóricometodológica: quais determinantes no domínio da conduta humana - que por emergir da dinâmica das relações também se refere à política - eram provocados ou explicitados no uso de uma máquina fotográfica no contexto da pesquisa?

A análise destina-se a compreender os motivos pelos quais o oferecimento da máquina fotográfica aos sujeitos da pesquisa produziu uma torção nas posições de observação frente ao plano de inscrição muito mais potente do que as que foram observadas em outras circunstâncias existentes na própria pesquisa, como foi o caso das oficinas de mapas. Para compararmos um mapa desenhado pelos jovens com uma fotografia feita por eles, os definiremos como dois tipos de plano de inscrição. Acompanharemos as diferenças de cada plano em seus três campos de análise: (1) condições técnicas de produção do plano (ou os determinantes do meio fotográfico), (2) a posição de observação frente ao plano, e (3) a posição nos jogos de verdade (ou política de distinções).

Os determinantes do meio fotográfico

Ao produzir um plano que é resultado do sucesso da fixação das imagens produzidas pelo artefato da câmara escura, a fotografia, desde o seu surgimento, suscita constantes discussões a respeito do seu estatuto. Segundo Dubois (1994), a teorização da fotografia passou por três tempos: inicialmente, teve sua manifestação no discurso da mimese, em que a fotografia era o espelho do real e deixava para a pintura o estatuto de arte, pois prescindia da participação subjetiva do operador. Em seguida, houve o movimento contrário de apontar quanto a fotografia era codificada e, dessa forma, determinada culturalmente. O terceiro tempo permite ressurgir o primado do referente, sobretudo com Barthes (1988, p.115), em sua "Câmara clara", no qual "a referência é a ordem fundadora da fotografia"; e, com o próprio Dubois (1994), inicia a conceituação da fotografia como traço de um real, em que o conceito de índice de Peirce (1984) vai sustentar uma abordagem que procura se aproximar de uma pragmática semiológica na fotografia.

Essa variação na ênfase explicativa da fotografia explicita uma tensão na própria concepção de percepção do mundo. Assim como no conceito de central de cálculo de Latour (2004), as inscrições na superfície de uma fotografia exigem uma explicação de sua relação com o mundo, recebendo sua ênfase conforme o caráter mais realista ou construtivista daquele que a explica. A aproximação do conceito de índice permite uma abordagem semiótica que explicita melhor as relações entre as inscrições e suas condições de produção, introduzindo a problemática da relação entre determinantes técnicos e condições de leitura. O que buscamos definir para este trabalho é justamente o contexto em que surgem os determinantes técnicos da fotografia, não como configurações da matéria alheias ao campo discursivo, mas como articulação entre práticas tecnológicas e práticas discursivas.

Seguindo a problematização proposta por Batchen (2004), que consiste em perguntar por que a fotografia só tem seu nascimento atestado em 1839 com Daguerre, mesmo existindo as condições técnicas da câmara escura e os desenvolvimentos da química muito antes desta data, queremos situar os determinantes do meio fotográfico a partir do surgimento de uma técnica no contexto histórico e político de sua gênese.

Dessa forma, pensar a fotografia como técnica de produção de uma superfície de inscrição requer buscar as suas condições de surgimento como prática, situando-a tanto em relação aos determinantes mais "duros", como o tipo de substância química necessária para a fixação das imagens no papel, e, também, as condições políticas de sua rápida proliferação, como artefato de produção de superfícies de inscrição.

Como resultado da fixação em uma superfície das imagens produzidas pela câmara escura, a fotografia agrega não só uma descoberta da óptica, relativa às propriedades de refração da luz e dos compostos químicos colocados na placa sensível, mas se situa como uma forma de representação herdeira da perspectiva renascentista, que centraliza tudo no olho de quem vê (Berger, 1999). Além disso, é contemporânea do pintoresquismo, forma de apreensão estética muito em voga na época do seu surgimento, que tinha, no enquadramento das paisagens representadas, a constituição "de un personaje, una figura que observa con discernimiento a la vez que se constituye como discerniente por 'el habito de ver'" (Batchen, 2004, p.81).

Temos, assim, um movimento que apontava não só uma maneira de representar, mas também uma maneira de ser observador à época da busca pelas primeiras fotografias, mostrando a indissociabilidade das formas técnicas de representar e os modos de percepção do mundo.

Ao inaugurar a possibilidade de imagens planas muito próximas ao que o olho humano percebe, a fotografia, para Flusser (2002), pode ser tomada como modelo de todas as outras imagens técnicas posteriores, constituindo, para o autor, uma revolução em nossa cultura comparável à invenção da escrita linear. Para Flusser (2002), o caráter de magia das imagens foi substituído pela linearidade dos conceitos dois séculos antes de Cristo, o que possibilitou a noção de história, uma vez que as imagens foram decompostas em linhas e passaram a ser representadas de forma linear, ao invés de circular, como nas imagens que contemplamos. Com o advento das imagens técnicas, temos imagens que são transcodificações de conceitos em cenas, produzindo um tipo de percepção de imagens atravessada pela codificação técnica, o que nos aproxima da problemática da participação do discurso nas formas de produção de materiais que informam.

Essa importância da fotografia no desenvolvimento das imagens técnicas nos auxilia a determinar as diferenças técnicas na produção de planos de inscrição, uma vez que a análise de Flusser (2002) parece indicar essa diferença, pois tanto a escrita linear como as imagens técnicas se estabelecem como formas peculiares de produção de inscrições em uma superfície plana. Ao inserir um artefato técnico na produção do plano, a fotografia produz novas relações entre o plano e seus produtores e leitores. É essa modificação que vai produzir os discursos em torno do estatuto da fotografia na linguagem e como categoria epistemológica, já que, ao produzir um plano que supostamente prescinde da participação da subjetividade do operador, a relação entre a natureza (photo) e a cultura (grafia) adquire outra conotação quando do uso do plano que a fotografia inaugura.

Essas diferenças podem ser percebidas na experiência das oficinas quando oferecemos a possibilidade de os jovens produzirem um plano que não necessita do domínio de um código complexo, como no caso da escrita linguística, mas que exige apenas a manipulação da máquina facilmente reconhecida em nossa cultura. Para Flusser (2002, p.31-2):

A manipulação do aparelho é gesto técnico, isto é, gesto que articula conceitos. O aparelho obriga o fotógrafo a transcodificar sua intenção em conceitos, antes de poder transcodificála em imagens. Em fotografia não pode haver ingenuidade. Nem mesmo turistas ou crianças fotografam ingenuamente. Agem conceitualmente porque tecnicamente.

Mesmo com essa aparente capacidade técnica de manipular o aparelho, os jovens não se sentiam autorizados a empunharem a câmera e produzirem um plano fotográfico, e, ao primeiro convite, entenderam que era para eles se posicionarem como objetos para serem fotografados. Este fato aponta que o uso da máquina fotográfica articula não apenas determinantes técnicos, relativos às especificidades da matéria de expressão utilizada, mas coloca em jogo determinantes de ordem política, no sentido de tensionamentos relativos ao uso da máquina no contexto da instituição.

Esses tensionamentos políticos, entendidos como correlações de força no domínio da conduta, articulam não só os agentes envolvidos, mas implicam uma dimensão epistemológica, que, no caso da fotografia, se refere a uma posição de observação que o artefato da fotografia estabiliza, deslocando o estatuto do plano que produz em direção a um realismo. A constituição de uma posição de observação frente ao plano, como condição de reconhecimento de inscrições, pode ser situada em um contexto histórico e discursivo específico, mas a consideração epistemológica do ser humano como observador sem acesso a uma realidade exterior serviu-nos como pressuposto epistemológico e estratégia de pesquisa.

Uma posição de observação frente ao plano

Um dos jovens vê a máquina, diz que uma dessas ele vende por trezentos reais. quando oferecemos para que ele tire fotos, ele parece indeciso, e tira rapidamente três poses das dez que dissemos que podia fazer. Fala depois que não é viciado, que os amigos dele, quando roubam uma câmera, ficam deslumbrados, e daí os brigadianos (policiais) pegam. (Diário de campo)

A posição de observação que a máquina fotográfica explicita pôde ser utilizada como tática de empoderamento dos jovens, mas essa posição não pode ser confundida com a condição epistemológica do observador para Maturana (2001). Para esse autor, a condição de observador não se refere ao fato de cada um ocupar uma posição no espaço que justificaria a noção de ponto de vista, mas ao fato de não sermos capazes, como organismos vivos, de diferenciar entre o que consideramos uma ilusão de uma percepção verdadeira sem recurso a outras experiências próprias ou de outro observador. Tal condição enfatiza a participação das distinções feitas por um observador como necessárias para a constituição daquilo que consideramos verdadeiro. Como "tudo o que é dito é dito por um observador a outro observador que pode ser ele ou ela mesma" (Maturana, 2001, p.37), a validade de um enunciado só pode ser estabelecida na relação com outras experiências e estabilidades na linguagem, sendo que a participação de suportes para marcas simbólicas encontra um papel importante no estabelecimento da cultura humana. A questão então é a de como estas marcas adquirem valor de verdade numa comunidade de observadores.

Dessa forma, como cada observador é autoridade no que diz respeito ao que percebe, o estabelecimento de critérios de realidade e verdade ocorre por reformulações da experiência com o auxílio de suportes como as centrais de cálculo. No caso das centrais de cálculo das ditas ciências da natureza, a validade das inscrições na central são mantidas pelo rigor na conduta de cada observador singular que produz os dados, e o erro, nesse caso, acontece quando o observador singular não segue a conduta de pesquisa de acordo com a comunidade científica. Mas a noção de erro assume outra conotação quando o objeto da ciência é o ser humano e seu domínio de conduta, pois a manipulação das centrais de cálculo não situa todos os possíveis observadores na mesma posição de cientista ou observador-padrão. Assim, o erro pode ser associado não mais à conduta de observador-padrão, mas à inclusão-exclusão em classes determinadas pela conduta e usadas para classificar observadoresobjeto nas centrais. Uma vez que a definição de pertencimento a uma classe depende do enunciado de um observador legitimado, o uso das superfícies de inscrição como suporte de centrais de cálculo nas ciências da conduta humana sofre uma determinação importante das condições políticas de cada observador frente ao plano de inscrição.

É por esse motivo que as superfícies produzidas pela fotografia adquirem o valor de uma central de cálculo das ciências da natureza, pois a posição de observador estabilizada pelo artefato técnico funciona como um observador-padrão, já que, na fotografia, é como se a centralidade do olho do observador inaugurada com a perspectiva pudesse encontrar estabilidade técnica além da mão do desenhista.

Os jovens saem da sala de atividades com a câmera, a reação inicial da equipe que estava no posto de enfermagem é de um incômodo seguido de uma pergunta sobre a razão do jovem estar segurando a câmera. quando um dos jovens surpreende os auxiliares de enfermagem dentro da sala, há um estranhamento logo suplantado por uma disponibilidade e organização das poses. (Diário de campo)

O que o uso da máquina fotográfica, pelos jovens, tornava explícito era a condição de que as posições frente aos planos de inscrição do hospital são fixadas não por uma conduta científica ou não, mas por tensionamentos políticos que especificam quem tem legitimidade de fazer marcas em planos legítimos. A diferença da máquina fotográfica é que ela restabelece a condição de qualquer observador poder ocupar a posição de observador-padrão da ciência. Isso pode ser visto pelas diferenças entre as oficinas de mapas e de fotografia, pois a posição de observação na fotografia parece prescindir da ocupação de um observador singular, já que os objetos nela registrados forçam a dimensão da máquina fotográfica em direção a um realismo, enquanto, nos mapas, a participação de um subjetivismo no desenho dos mesmos poderia sempre ser um álibi para a refutação de sua condição de verdade.

Nas oficinas, a posição de observação que os jovens ocupam ao empunhar a câmera não era tão visível na produção de mapas, pois estes eram tomados como produções mais ligadas à subjetividade dos produtores e facilmente poderiam ser relacionadas à sua condição psíquica. Apesar de os códigos para tornar um mapa legível estabilizarem, de certa maneira, uma posição de observação, a posição explicitada pelo uso da câmera é muito mais potente, pois além de os jovens ocuparem uma posição de observação objetivada pelo artefato técnico, também as superfícies produzidas pela fotografia se relacionam de uma maneira diferenciada com os objetos que representam. Essa identidade entre a imagem produzida pela fotografia e as imagens que temos dos objetos por nossos próprios olhos é um dos efeitos que Flusser (2002) aponta como característica de nossa sociedade tomada pelas imagens técnicas. O que se torna necessário levar em consideração é o caráter codificado das imagens técnicas, o que, no contexto da pesquisa, exige que as questões de posse e identidade do plano da foto sejam dialogadas com todos os participantes na produção das superfícies.

Política de distinções

O que a proposta das oficinas procurou colocar em questão no âmbito do CIAPS, sobretudo por meio da torção, foi menos os possíveis conteúdos dos planos que os jovens poderiam produzir do que as possibilidades de ocupação de uma posição de observação legitimada capaz de produzir superfícies que adquiram valor de verdade. quando Foucault (2002) busca definir o discurso como um tipo de determinação que escapa do campo meramente formal das matérias de expressão, ele acaba por relacionar essas produções ao que chama de jogos de verdade, pois não se trata de encontrar no discurso um acesso privilegiado ao mundo, mas justamente situar o discurso como campo pelo qual e no qual se luta (Foucault, 1996), já que, no que se refere ao domínio do poder, a verdade ocupa posição privilegiada.

Dessa maneira, quando se estabilizam formas de compartilhamento de inscrições, como no caso dos planos de inscrição - seja um mapa, uma fotografia, uma tela de computador -, o campo do sentido das inscrições lidas está articulado aos modos de constituição técnica daquela superfície, o que explica as diferentes considerações quanto ao conteúdo das superfícies produzidas. Assim, tal característica exige, no contexto de pesquisa, uma pergunta sobre a articulação entre as condições técnicas dos materiais de pesquisa e o campo discursivo, uma vez que a especificidade técnica modifica o domínio da conduta humana onde podemos situar a política. quando uma posição de observação é cristalizada com o advento da capacidade técnica de fixar imagens em um plano, temos um artefato que, ao ser estabilizado, opera num domínio independente do campo discursivo enquanto máquina já produzida, mas na sua invenção e no momento em que nos oferece uma superfície de leitura, o domínio da conduta humana e da política na linguagem passam a operar também no uso desse artefato.

Os efeitos dessas considerações no campo da pesquisa podem ser avaliados tanto do ponto de vista metodológico como no de intervenção. A própria proposta de torção se apóia em um posicionamento político e epistemológico capaz de indicar a diretriz da intervenção, pois no âmbito dessa pesquisa tornou-se mais importante especificar os determinantes técnicos e discursivos na produção de um plano como o fotográfico, do que utilizar estes artefatos para a produção de superfícies que serviriam de suporte para sentidos sobre os sujeitos da pesquisa. Além disso, somado ao fato de não podermos mostrar as fotos nas quais os jovens apareciam fora dos limites da internação, sustentamos a postura de não utilizar, no âmbito da divulgação científica, as superfícies produzidas pelos jovens justamente para deslocar a atenção do campo de sentido das planografias para as condições técnicas e discursivas de sua produção.

Se as planografias adquirem outro tipo de validade na pesquisa no domínio da conduta humana, pois o objeto a que se referem são muitas vezes os sujeitos e seus comportamentos, o modo como as utilizamos torna-se uma questão crucial para as ditas ciências humanas. Além de serem usadas como suporte para transferir dados do campo para uma central de cálculo na universidade, por exemplo, elas precisam ser pensadas como campo de disputas políticas, em seu sentido discursivo, já que a função de estabilidade de um observador-padrão frente ao plano tem de considerar a posição dos sujeitos da pesquisa frente a esse mesmo plano. quando as posições frente ao plano não são potencialmente equiprováveis, a posição do pesquisador frente aos seus materiais de pesquisa deve levar em consideração as possíveis relações de seus sujeitos de pesquisa com os planos de inscrição com os quais trabalha.

Considerações finais

Levando em conta que, apesar do consentimento de todos os que apareciam nas fotos da exposição, as fotografias produzidas pelos jovens não conseguiram permanecer por muito tempo na sala em que foram fixadas por sobre as inscrições na parede; que a atividade de os jovens fotografarem causou efeitos intensos nos modos de se relacionarem com os planos produzidos dentro do CIAPS; e que suas imagens não poderiam aparecer fora dos limites da internação, podemos tecer alguns comentários sobre esses limites experimentados nesta proposição de pesquisa.

O conjunto de limitações encontradas na atividade de produção e exposição das fotografias feitas pelos jovens se referem, no nosso entendimento, não só à posição que os jovens ocupam frente aos planos de inscrição do local, mas também aos tensionamentos colocados pela atividade de pesquisa. Isso porque, na medida em que as posições frente aos planos implicam não só os jovens, mas os pesquisadores e os trabalhadores do local, a atividade de pesquisa precisa levar em consideração todas as posições dos agentes frente aos planos que utiliza, pois a não permanência das fotos na parede não pôde ser exaustivamente analisada porque o esclarecimento de tais condições teria de envolver um trabalho com toda a equipe do CIAPS, o que fugia dos limites da proposta.

Por nos concentrarmos em questões de cunho epistemológico, essas limitações nos interessam na medida em que mostram as relações entre um domínio que seria dependente do discurso e outro não dependente, pois, quando se cristalizam procedimentos sob a forma de objetos técnicos, eles alcançam autonomia em relação às determinações discursivas, pois operam de forma independente do domínio da conduta humana. Isso não quer dizer que o discurso não esteja presente, mas que ele opera no limite entre uma estabilidade alcançada pela técnica e que modula o campo dinâmico das relações a partir do que foi cristalizado. Assim, nem tudo é determinado pelo discurso, como nem tudo é determinado por uma operatividade causal encontrada nos objetos técnicos, mas há uma articulação entre essas duas dimensões.

Essa articulação e o presente trabalho permitem afirmar que os limites impostos à loucura, outrora feitos com o auxílio dos muros e grades, hoje estão mais relacionados aos suportes que comportam matéria informativa, tornando a relação entre discurso e práticas de segregação mais dependente das tecnologias de informações e comunicação e dos modos estabilizados de perceber.

Nesse sentido, a atividade de pesquisa nesse campo precisa assumir a condição constitutiva dos usos das tecnologias da informação e comunicação em suas práticas, pois o posicionamento político do uso de tais artefatos tem papel importante na constituição de práticas de cuidados na saúde que considerem a relação entre os saberes da população e as tecnologias empregadas em um serviço.

Com base no modo de produção de superfícies no percurso da pesquisa, pudemos explicitar que as determinações discursivas do uso da máquina fotográfica se encontram potencializadas no espaço do CIAPS, provavelmente por sua localização em um antigo hospital psiquiátrico. As possibilidades de rupturas parecem ter de passar pelos modos de perceber, já que o uso da máquina fotográfica nesta proposta demonstrou um ponto de fragilidade na configuração de saberes, apontando para a necessidade de questionarmos as formas de perceber recorrentes que produzem as distinções do louco, do marginal e do perigoso. Mas, por outro lado, as determinações que o campo do discurso sofre com as mudanças tecnológicas nos permitem apostar no uso destas tecnologias como ferramentas para a afirmação da condição de construção coletiva do conhecimento, sobretudo no campo da saúde mental, onde os sujeitos precisam ser potencializados com essa construção, e não presos em categorias que os acompanharão ao longo da vida.

Colaboradores

O autor Rafael Diehl participou de todas as etapas da elaboração do artigo. Cleci Maraschin e Jaqueline Tittoni participaram como coorientadoras da pesquisa, supervisoras e revisoras do artigo, contribuindo com reformulações e sugestões para sua versão final.

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Recebido em 01/07/2008.

Aprovado em 16/10/2008.

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  • *
    Elaborado com base em Diehl (2007), dissertação com bolsa Capes.
  • 1
    Projeto com apoio financeiro do CNPq.
  • 2
    Para Maturana (2002), a linguagem é um efeito recursivo de coordenações de ações consensuais, o que a torna sempre dependente do contexto e da articulação entre ações e inscrições.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Jul 2012
    • Data do Fascículo
      Set 2009

    Histórico

    • Aceito
      16 Out 2008
    • Recebido
      01 Jul 2008
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