Acessibilidade / Reportar erro

Um agir micropolítico e pedagógico intenso: a humanização entre laços e perspectivas

Intense micropolitical and pedagogical action: humanization between ties and perspectives

Una acción micro-política y pedagógica intensa: la humanización entre lazos y perspectivas

Resumos

Este artigo aborda os desafios de uma estratégia brasileira no sistema de saúde para melhorar a qualidade da sua resposta assistencial e gerencial, a Política Nacional de Humanização. Independentemente de análise política, conceitual ou de resultados, discute a humanização do corpo na saúde por meio do confronto com suas reificações na clínica, tal como presentes na soberania dos sistemas profissionais sobre as práticas, na disciplinarização que legitima as condutas do tipo diagnóstico-prescrição ou na disseminação de mecanismos que, em nome da longevidade dos indivíduos, estancam a produção de singularidade da vida. As noções de "corpo de órgãos", "corpo ex-órgãos" e "corpo sem órgãos" foram usadas para problematizar a clínica (atenção) e a noção de laços e perspectivas, para discutir a transformação de realidades (gestão). A educação e a participação são tematizadas como indissociáveis da atenção e gestão.

Educação em saúde; Trabalho em saúde; Corpo sem órgãos; Medicalização; Humanização da assistência


This paper deals with the challenges of a Brazilian strategy for the healthcare system to improve the quality of its care-giving and managerial response, i.e. the National Humanization Policy. Independent of political, conceptual or results analysis, it discusses the humanization of the healthcare body by means of comparison with its reifications in clinical practice, as seen in the sovereignty of the professional systems regarding practices, in the disciplinarization that legitimizes diagnostic/prescriptive conduct or in the dissemination of mechanisms that, in the name of individuals' longevity, staunch the production of the singularity of life. The notions of the body of organs, body ex-organs and body without organs are used to question clinical practice (care) and the notion of ties and perspectives to discuss the transformation of realities (management). Education and participation are defined as indissociable from care and management.

Healthcare education; Healthcare work; Body without organs; Medicalization; Humanization of assistance


Este artículo afronta los desafios de una estrategia brasileña en el sistema de salud para mejorar la calidad de su respuesta asistencial y gerencial: la Política Nacional de Humanización. Independientemente de análisis política, conceptual o de resultados, discute la humanización del cuerpo en la salud por medio del confronto con sus reificaciones en la clínica, tal como están presentes en la soberania de los sistemas profesionales sobre las prácticas, en la acción disciplinante que legitima las conductas del tipo diagnóstico-prescripción o en la diseminación de mecanismos que, en nombre de la longevidad de los individuos, estancan la producción de singularidad de la vida. Las nociones de cuerpo de órganos, cuerpo ex-órganos y cuerpo sin órganos se usan para los problemas de la clínica (atención) y la noción de lazos y perspectivas para discutir la transformación de realidades (gestión). La educación y la participación se consideran indisociables de atención y gestión.

Educación en salud; Trabajo en salud; Cuerpo sin órganos; Medicación; Humanización de la atención


ARTIGOS

Um agir micropolítico e pedagógico intenso: a humanização entre laços e perspectivas

Intense micropolitical and pedagogical action: humanization between ties and perspectives

Una acción micro-política y pedagógica intensa: la humanización entre lazos y perspectivas

Ricardo Burg CeccimI; Emerson Elias MerhyII

IPrograma de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rua Dr. Raul Moreira, 550, Porto Alegre, RS, Brasil. 90.820-160 burg.ceccim@ufrgs.br

IIPrograma de Pós-Graduação em Clínica Médica, Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO

Este artigo aborda os desafios de uma estratégia brasileira no sistema de saúde para melhorar a qualidade da sua resposta assistencial e gerencial, a Política Nacional de Humanização. Independentemente de análise política, conceitual ou de resultados, discute a humanização do corpo na saúde por meio do confronto com suas reificações na clínica, tal como presentes na soberania dos sistemas profissionais sobre as práticas, na disciplinarização que legitima as condutas do tipo diagnóstico-prescrição ou na disseminação de mecanismos que, em nome da longevidade dos indivíduos, estancam a produção de singularidade da vida. As noções de "corpo de órgãos", "corpo ex-órgãos" e "corpo sem órgãos" foram usadas para problematizar a clínica (atenção) e a noção de laços e perspectivas, para discutir a transformação de realidades (gestão). A educação e a participação são tematizadas como indissociáveis da atenção e gestão.

Palavras-chave: Educação em saúde. Trabalho em saúde. Corpo sem órgãos. Medicalização. Humanização da assistência.

ABSTRACT

This paper deals with the challenges of a Brazilian strategy for the healthcare system to improve the quality of its care-giving and managerial response, i.e. the National Humanization Policy. Independent of political, conceptual or results analysis, it discusses the humanization of the healthcare body by means of comparison with its reifications in clinical practice, as seen in the sovereignty of the professional systems regarding practices, in the disciplinarization that legitimizes diagnostic/prescriptive conduct or in the dissemination of mechanisms that, in the name of individuals' longevity, staunch the production of the singularity of life. The notions of the body of organs, body ex-organs and body without organs are used to question clinical practice (care) and the notion of ties and perspectives to discuss the transformation of realities (management). Education and participation are defined as indissociable from care and management.

Keywords: Healthcare education. Healthcare work. Body without organs. Medicalization. Humanization of assistance.

RESUMEN

Este artículo afronta los desafios de una estrategia brasileña en el sistema de salud para mejorar la calidad de su respuesta asistencial y gerencial: la Política Nacional de Humanización. Independientemente de análisis política, conceptual o de resultados, discute la humanización del cuerpo en la salud por medio del confronto con sus reificaciones en la clínica, tal como están presentes en la soberania de los sistemas profesionales sobre las prácticas, en la acción disciplinante que legitima las conductas del tipo diagnóstico-prescripción o en la diseminación de mecanismos que, en nombre de la longevidad de los individuos, estancan la producción de singularidad de la vida. Las nociones de cuerpo de órganos, cuerpo ex-órganos y cuerpo sin órganos se usan para los problemas de la clínica (atención) y la noción de lazos y perspectivas para discutir la transformación de realidades (gestión). La educación y la participación se consideran indisociables de atención y gestión.

Palabras clave: Educación en salud. Trabajo en salud. Cuerpo sin órganos. Medicación. Humanización de la atención.

Introdução

Este texto foi construído como uma conversa pedagógica, na expectativa de maior potencial comunicativo. A conversa favorece a aproximação, enquanto a intenção pedagógica – como pragmática dessa conversa – a troca de saberes. A aposta é por um texto-em-interação sobre os desafios da Política Nacional de Humanização na Saúde (PNH), uma estratégia que se propõe a melhorar a qualidade da resposta assistencial e gerencial do sistema de saúde e que configura projeto em construção. Para dar qualidade aos componentes da atenção e da gestão e melhorar a resposta assistencial e gerencial do sistema de saúde, entendemos que a PNH, desde sua identificação com o conjunto dos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde – HumanizaSUS, precisou colocar em cena as tentativas de se alcançar um atendimento resolutivo e acolhedor sem despersonalizar seus usuários, valorizando seus operadores (trabalhadores) e apoiando mecanismos participativos de gestão na cotidianidade do trabalho em saúde.

Independentemente de análise política, conceitual ou de resultados dessa Política, a conversa que entabulamos ambiciona uma humanização do corpo, na saúde, pelo confronto com suas reificações na clínica, presentes na soberania dos sistemas profissionais sobre as práticas, na disciplinarização que legitima as condutas do tipo diagnóstico-prescrição ou, mais contemporaneamente, na disseminação de mecanismos que, em nome da longevidade dos indivíduos, estancam a sua produção de singularidade. Utilizamos as noções de "corpo de órgãos", "corpo ex-órgãos" e "corpo sem órgãos" para tematizar a clínica (atenção), e a noção de "laços e perspectivas" para abordar a transformação de realidades (gestão) em face da humanização.

De um lado, observamos, nas práticas vigentes, a passagem de uma clínica voltada aos sintomas para uma clínica da ausência dos sintomas: do silêncio dos órgãos sadios à dispensa dos órgãos sob controle. Essa clínica afasta-se ou diverge da produção de encontros e de sensações afirmativas do viver, ao passo que uma clínica do viver intenso precisa dos órgãos, mas também de um corpo sem órgãos para atravessá-los pela maior potência de vida. Nesse sentido, colocamos a clínica, na humanização, como ato de encontro e de ressingularização por alteridade.

De outro lado, alertamos para a necessidade de laços da humanização com as várias vertentes de estudos brasileiros para qualificar o encontro e a alteridade na clínica e sua possível perspectiva de fluxo de rede: ativação das comunicações como rede científica de pesquisa-ação (escapando da sedução das totalizações), potência de transformar realidades como efeito de produção de conhecimentos que decorrem do contato vivo com processos cotidianos sob interrogação, e colocação em conexão da diversidade de estudos que ambicionam a saúde como viver intenso.

Políticas da vigência e políticas do minoritário

De uma maneira geral, quando analisamos a prática de atender nos estabelecimentos de saúde, ou a censuramos, apontamos quanto as relações que aí se estabelecem estão marcadas pela presença de forças externas, antecedentes ao encontro, numa espécie de ausência de interação: relação fria, tecnicista, excessivamente objetiva, centrada em procedimentos, orientada pelo paradigma biologicista etc.; onde as pessoas são tomadas por objeto, por um diagnóstico de doença, por um histórico de queixas ou por uma situação de risco, entre outras condições que as dessingularizam/reificam.

As imposições do mercado em saúde, a exemplo da indústria de medicamentos, por exemplo, entre outras disposições, definem o que é o atender/tratar. Emerge desta análise uma denúncia do trabalho em saúde, no qual conhecimentos técnicos, protocolares, disciplinares e dependentes, fundamentalmente do domínio de saberes formais, prescrevem certos modos de atuar. Trata-se da crítica ao trabalho capturado por seu gerenciamento, por sua protocolização, por sua corporativização ou pelas racionalidades em que se inscreve ou de onde se desdobra. A análise - ou censura - é a de que o profissional coletivo da saúde, ao atuar no cotidiano dos serviços, junto aos usuários, está submetido a ordenamentos que definem, de forma imperativa, suas formas de agir/pensar na prestação da atenção ou no exercício da clínica. Dizemos, portanto, que uma ordem profissional ou as condições de trabalho realizam a captura do profissional, que não age e nem pensa por si mesmo, atua como refém de políticas da atenção (modelos assistenciais), tal como vigentes em sua corporação profissional ou nos sistemas e serviços de saúde.

Entretanto, quando olhamos com mais acuidade o cotidiano das práticas, vemos que os profissionais, mesmo aqueles de igual categoria profissional, atuam de modo distinto, no interior da mesma situação de atenção à saúde. Percebemos, por exemplo, que os profissionais são bem diferentes entre si na maneira de cuidar, parecendo - muitas vezes - que uns cuidam e outros não, ou que uma dada equipe de saúde ocupa-se do cuidado e outra não. Alguns observadores ou analistas do trabalho em saúde, diante disso, apontam, então, que uma micropolítica do trabalho em saúde se oporia - ou poderia resistir - à macropolítica do gerenciamento, da protocolização, da corporativização ou das racionalidades. Um trabalho vivo, em ato, faria oposição aos modelos assistenciais impostos ou impositivos, pois, na prática do atender, se presentificaria - resistiria - uma ordem do encontro e as condições da interação, não apenas uma ordem profissional e as condições de trabalho. Acontece que, entre os analistas que referem a micropolítica do trabalho, muitos anunciam essa avaliação sob uma condição esvaziada de criação e, portanto, sem potência de resistência, uma micropolítica apontada como macropolítica de menor escala, a do espaço microssocial (gestão do trabalho, local de trabalho, profissão), representante, portanto, das mesmas forças de captura. Em lugar de encontrar/reconhecer/buscar as forças de liberdade, idealizam processos, caminhos ou estratégias: em geral, à custa de treinamentos, normativas e sistemas de fluxo/encaminhamento. Na micropolítica, não na microssociologia, encontramos/reconhecemos/buscamos a resistência às capturas, a luta pelo direito à criação, a exposição e a vivência, em ato, de uma relação. A micropolítica opõe-se à política das vigências disciplinares, das racionalidades hegemônicas, é a política do minoritário, das forças minoritárias, resistência aos instituídos, resistência ao saber-poder-desejo hegemônico, disputa por outros modos de ser-existir-agir, inventivos, criativos, em ato. A noção esvaziada da micropolítica refere-se à análise das decisões ideológicas, dos modos culturais locais, das regras de exercício da profissão ou do trabalho, onde as diferenças quase individualizantes teriam um peso mais significativo. A micropolítica não é local/individual, é força instituinte, transversalidade de processos e projetos, luta contra-hegemônica e anti-hegemônica.

Não são regras de exercício da profissão ou do trabalho, nem diferenças de escala que marcam o território da micropolítica, mas coengendramentos de si e de mundos. Na análise do processo de trabalho, a micropolítica interroga que territórios de ser são criados, que rupturas são introduzidas, que acolhimentos são ofertados, que responsividade é buscada, que satisfação interessa. São territórios aquilo que constituímos quando estabelecemos uma relação. Então: o que tem e o que não tem pertencimento a esses territórios constituídos? São atores em relação que constituem territórios, territórios que dão ou não passagem aos devires ou para campos de possíveis. Pela dimensão micropolítica, detectamos - na prestação do atendimento - uma produção política da atenção, a produção política dos seres, não apenas o registro de assistências.

A centralidade da atenção de saúde no usuário, defendida por aqueles contrários à dessingularização (observadores ou analistas das condições de interação ou da ordem dos encontros), diz de uma orientação da atenção ao outro, não para com os fatores externos ao encontro, como técnica, rotina, protocolo, profissão, instituição ou razão. Logo, essa centralidade no usuário é a centralidade no encontro/na interação, centralidade no contato com a alteridade. A atenção implicando a constitutividade de relações de alteridade, portanto, implicando encontros para além das forças a que chamamos por externas. Aí, o cotidiano do atender passa a ser visto como um campo singular da produção de saúde, e não como um campo particular da prestação de assistência. O cotidiano adquire natureza de produção de realidades, trabalho vivo em ato, constituidor de mundo, território de disputa com as ditas forças externas pelas forças de criação.

A humanização como desafio nos apresenta chances, não totalizações

Os desafios apontados pelo HumanizaSUS tanto permitem disputar a desfragmentação do que antes aparecia como diversidade programática (humanização da assistência hospitalar; do parto e do nascimento; no contexto da atenção básica; nos serviços de saúde; do processo de morrer; como qualidade de vida no trabalho etc.), quanto permitem imputar uma totalização ou constituir um equivalente geral às diversidades que cada programa colhia e suprimir a potência de comunicação das suas "desobediências" ao instituído/hegemônico/vigente. Se tornada uma "escola", não porque promove cursos, mas porque unifica discursos, a PNH, em lugar de emprestar potência, enfraquecerá a potência dependente da maneira como desobediências, linhas de fuga ou desejo de disruptura comunicam-se e estabelecem a invenção de mundos (forjando redes pela surpresa, entrega, diferenciação, carona etc.).

O maior desafio está na sua eventual capacidade de armar uma "rede de guarida", rede de encontros, rede de potências. Quando apontávamos, antes de 2003, como críticos acadêmicos das ações programáticas de governo, o equívoco dos programas de humanização como lugares a humanizar, era pela ausência desse tipo de rede, a ausência da noção de sistema de saúde, a opção por uma dimensão local/individualizante. Agora, apontamos a necessidade de uma rede de interferências-em-interação , não uma rede de comunicações-coordenadas, trata-se de um cenário de difícil conquista e construção, mas, virtualmente, de instigante potência. A riqueza do nosso SUS é vir acompanhado pela dedicação ao conhecimento e à melhor resposta às necessidades das pessoas e coletividades. Muitas vertentes de estudos brasileiros vêm operando por esse caminho e têm mostrado resultados interessantes na disputa por modos mais efetivos de atender nos serviços de saúde: a humanização dos cuidados em saúde; a integralidade; o cuidado como a alma dos serviços de saúde; o acolhimento como rede de conversações; as práticas de saúde como projeto de felicidade; a atenção integral como escuta à vida; saúde e cidadania de braços dados, entre outras designações. Iniciativas, muitas vezes, substitutivas das modalidades hegemônicas nas práticas de atender e, por vezes, desinstitucionalizadoras dos ordenamentos profissionais e do trabalho, ambicionando outra educação na saúde e uma ousada responsividade às necessidades em saúde sentidas pelos usuários.

As modalidades hegemônicas são constituídas sob o manto das ações profissional-centradas, nas quais o outro é um caso a ser enfrentado por tecnologias duras ou leve-duras (intervenções invasivas ou cabalmente protocolares), das quais apenas o profissional detém saber-poder e justamente por elas se justifica. Novas intervenções - ou intervenções substitutivas - surgem das maneiras "em rede" de se construírem configurações tecnológicas ao atender, projetos pedagógicos ao formar, sistemas avaliativos por satisfação e responsividade e estratégias de gestão democráticas e participativas. Como "maneiras em rede", pensamos em comunidades científicas ampliadas de pesquisa-ação: uma dimensão coletiva (encontros/interação) e uma dimensão individual (entrega/diferenciação), produção de conhecimento e produção da formação, para a pesquisa e para o trabalho (Pimenta, 2005).

A aposta representada pelo HumanizaSUS é desafiadora por sua proposta de reconstruir ações institucionais, tendo apoiadores das ações de mudança na função de penetrar lugares recheados por intencionalidade e conseguir trazer o conjunto dos produtores diretos da atenção para o debate de suas ações, fazendo-os operar intervenções em si mesmos, conduzindo as situações de trabalho para a construção do campo singular da produção de saúde, ou seja, ativando a produção singular do atender e do encontro.

Nessas apostas, duplos encontros - trabalhadores-trabalhadores e trabalhadores-usuários – exigem, das formulações do HumanizaSUS, processos de condução que levem a momentos de intensa singularização e quase nada de particularização, ou seja, não basta que apoiadores cheguem a esses encontros armados com ferramentas para neles atuarem, tomando o outro como um caso a ser enfrentado e já conhecido a priori, instalando as práticas humanizadas. Há que se colocar as ferramentas do agir do apoiador a serviço de encontros-acontecimento. Esse desafio implica não só colocar em análise, a todo tempo, o modo de se construírem os encontros, mas centralmente de tornar visíveis os atos cuidadores e os agires pedagógicos que esses encontros contêm.

Muitos daqueles que também apostam na mudança das práticas de saúde, a veem como possibilidades inscritas em encontros, nos quais uns sabem criticamente o que os outros devem fazer e, então, não contemplam o desafio da ressingularização das práticas, mas a instalação de boas práticas. Nessa forma de entender e agir, cada encontro é um momento particular de uma estratégia geral que já está dada a priori, para ser realizada no momento em que o encontro acontece. Não é diferente do modo como o modelo hegemônico de se produzir saúde é realizado. Esse modo - que é sempre o agir de um profissional de saúde que se legitima por ser o portador do saber em saúde que o outro deve adotar ou incorporar - vê o acontecimento do encontro, mesmo que o diga como cada caso é um caso, como momento particular: para o qual já tem tudo preparado. Estamos diferindo singular (criação) de particular (requalificação). Não será prudente verter "práticas em ato" em "equivalentes gerais de interpretação", nem adjetivar as práticas para construir uma totalização de sentidos à humanização.

Nos desafios do HumanizaSUS isso não é dilema, tampouco dialética, pois, levado às últimas consequências, na prática, é a sua própria negação como estratégia assessora, não a construção de superações. Ocorre uma implicação fundamental: toda arma que o trabalhador tiver para operar encontros tem de estar a serviço dos "movimentos em ato" de que um encontro é portador, não o contrário. Suas ferramentas tecnológicas só serão efetivamente tecnologias singularizadoras como encontros-acontecimento. O enfrentamento de tensões/paradoxos será necessário para dar substância à aposta que o HumanizaSUS declara, buscando aumentar, de forma significativa, as potências de produção de vida na organização da atenção à saúde. Esse enfrentamento não estará em justificações - mas na surpresa - das interferências-em-interação.

A produção da atenção na capilaridade das relações cotidianas

Os componentes de singularidade que existem onde o atender é produzido não permitem que uma abordagem mais generalizadora lhe dê conta. Exatamente onde mais há captura, mais ocorrem transversalidades capazes de linha de fuga e capazes de operar transformações na delicadeza de cada encontro ou nas próprias linhas de fuga, muitas vezes únicas, pois os furos nas capturas só fazem sentido para aqueles implicados. Falamos da produção da atenção onde ela não é esperada, na capilaridade das relações cotidianas, não nas assistências profissionais em sua instância formal de intervenção como procedimento restaurador de funções orgânicas. Falamos da capacidade de acolhimento, encontro, não da clínica das profissões ou de uma cogestão de interesses negociados e pactuados.

A produção da atenção não se esgota na prestação de práticas biomédicas ou normativo-cuidadoras, envolve nossa capacidade de acolhimento do outro, contato com a alteridade, produção de um dizer-se respeito em que a interação promove práticas de si, nascidas para cada agente em relação, produção de um ambiente-tempo comum ou, cada vez mais, comum entre dois, um momento intensamente intercessor, encontro, onde, de um jeito ou de outro, dele esperam seus agentes a mesma coisa: que seja eficaz para resolver ou aplacar sofrimentos tidos como problemas de saúde. O acolhimento em alteridade (encontro) é um momento que tem em si certos mistérios, pela riqueza dos processos relacionais que contém, por ocorrer segundo razões muito diferenciadas e por não ser apreendido por nenhum saber exclusivo.

Damos contexto a esse plano da humanização - a construção de práticas de saúde cuja contemporaneidade esteja na atualização de processos intensivos de viver a vida, e não apenas sobreviver, ou de, acima de tudo, estar vivo, apesar da ausência de prazer, de compartilhamento, de potência de si e de produção de entornos criativos e audazes. A potência de si e de produção de entornos criativos e audazes é o viver intensamente a invenção do vivo, daquilo que afirma a criação ou que põe a vida como obra de arte da existência. Nessa condição, o cuidar do outro é operado por distintas modalidades de saber e fazer, não culmina com as práticas particulares das profissões, das tecnologias do cuidado ou dos protocolos, prolonga-se pela invenção de si, dos entornos, de mundos. Esta é uma pontuação necessária no momento atual em que vivemos, onde a conformação do campo da saúde, nas sociedades mais ocidentalizadas, vive uma contemporaneidade do fenômeno da medicalização e suas consequências, entre as quais: um perfil de prestação das práticas de atenção, de educação dos profissionais da área e de gestão dos sistemas de saúde para a oferta ampliada destas práticas em forma de diagnóstico, prescrição e condutas coletivas.

Trazemos, então, como primeira aproximação, a noção de que um encontro é da ordem micropolítica. Os encontros estão sempre em aberto, sob alteridades intercessoras (Ceccim, 2004; Merhy, 1997), sob distintas possibilidades de subjetivação, que podem caminhar de um processo biopolítico para um processo de biopotência (Pelbart, 2003) e da serialização à singularização (Guattari, Rolnik, 1986). Além disso - e ao mesmo tempo -, os encontros, na micropolítica, são intensamente pedagógicos, operam, ante as práticas inculcadoras/homogenizadoras, com trocas entre domínios de saberes e fazeres, construindo um universo de processos educativos em ato, em um fluxo contínuo e intenso de convocações, desterritorializações e invenções. Uma segunda aproximação é a de que as interações são estratégias de resistência e criação, vividas como paradoxo num mundo habitado pela profusão de práticas clínicas e pela profunda fragilização da vida (despotencializada para conduzir processos intensivos, afastada da alegria, desumanizada).

Em torno dessas duas aproximações propomos constatar laços e perspectivas: diversos solos de formulação da atenção convergem pela humanização das práticas de saúde e uma condição de rede pode abrir conexões inéditas. Diversos solos enlaçam-se pelo desejo de instituir práticas cuidadoras, práticas de atenção integral, o intercruzamento das necessidades biológicas e as de natureza existencial ou dos saberes humanísticos, agregando uma escuta sensível do outro e uma oferta de ambiência acolhedora e produtora da sensação de conforto, entre outras leituras/práticas necessárias da humanização. Uma condição de rede instaura possibilidades e potencialidades de uma comunidade científica ampliada de pesquisa-ação (vários e diferentes portadores e produtores de saber, com sua linguagem-ferramenta, ousadias e desobediências singulares); escuta aguda das realidades para compor saberes assessores; perspicácia de não veicular conceitos, mas saber cartografar; de não preencher imaginários por "melhores verdades", abrir experimentações; captar as práticas em ato, dar-lhes lugar, ampliar incisivamente a existência de linhas de conexão.

A atenção, nas práticas especificamente de saúde, envolve uma compreensão específica de corpo humano. Base da educação dos profissionais de saúde, tradicional ciclo básico da formação, o ensino da anatomia e da fisiologia humanas e a dissecção do corpo em seus órgãos são os percursos condicionais à apropriação da clínica. No ciclo profissional, o corpo já dissecado em órgãos surge como o território onde evoluem as doenças. Este tem sido o corpo pouco humano da clínica, limitado a seus órgãos e aos modos de evoluir da doença como uma história natural. Um corpo mais humano para a clínica, compreendido em sua natureza de desejo e sensação, território de afecções (capacidade de afetar e ser afetado), enseja a existência de um corpo sem órgãos, corpo do encontro ou corpo pré-pessoal (que se coloca entre os corpos agentes do atendimento), corpo virtual cuja atualidade faz-se no corpo pessoal. Todavia, uma outra clínica, da ausência de doenças, também detecta um corpo sem órgãos ou um corpo com seus órgãos virtualizados (órgãos em potência permanente de adoecimento), que dispensa a singularidade das sensações, onde a clínica se faz sem encontro, captando os corpos por tecnologias do imaginário e submetendo-os à prescrição impessoal.

O corpo como sede dos órgãos e a oferta da clínica

Não é estranho falarmos e identificarmos, no cotidiano do mundo do trabalho em saúde, que as práticas de atenção estão orientadas pela clínica de um corpo sede dos órgãos ou por uma clínica do corpo de órgãos - essa é a maneira com que cada uma das profissões de saúde pratica a clínica e pensa o atendimento. É com base nessa condição que as profissões buscam distinguir-se e organizar o seu padrão de intervenções para provocar a cura, o que pode ocorrer em detrimento do promover a terapêutica (o sentir-se cuidado). Mesmo que cada uma das profissões de saúde procure dar sua marca ao campo de suas ações e opor-se entre si na disputa por territórios privativos de intervenção, isso, muitas vezes, não ultrapassa a condição de uma prática discursiva, porque tratar com qualidade, cuidar com integralidade ou escutar com sensibilidade não são oposições e nem fragmentos autossuficientes. Para provocar a cura, não concorrem saberes em oposição ou fragmentados, e para promover a terapêutica não convergem saberes parciais ou focados em padrões particulares.

A distinção radical entre as profissões, na esfera do cuidado, do acolhimento do outro, da oferta de encontro para compreender processos de produção de saúde, em realidade, não se verifica. O que se verifica é a fragmentação da cura e do cuidado e a busca, pelos usuários das ações de saúde, de práticas não apenas profissionais, a fim de se sentirem cuidados e/ou curados. Muitas vezes, sob a denúncia profissional da não adesão dos usuários à prescrição, às orientações ou à terapêutica, está a denúncia da oferta fragmentada, particularizada e corrompida da clínica.

Quando se fala do lugar da Saúde Pública, que procura compreender a instalação dos processos de adoecimento no plano das populações para produzir intervenções no âmbito coletivo, visando ao controle dos adoecimentos, vê-se que o pano de fundo também é essa mesma compreensão do fenômeno saúde-doença: a instalação de patologias nos corpos biológicos. O sistema profissional de saúde é o lugar para tratar as doenças e para a sua prevenção ou o seu tratamento; o lugar para a promoção da saúde e proteção da qualidade de vida é "o fora" do sistema profissional de saúde. Ainda que sejam introduzidos novos elementos nesse olhar, como, por exemplo, a distribuição desigual do processo saúde-doença entre os vários grupos populacionais, demarcados socialmente por questões de gênero ou de idade etc., o ideal da saúde é o do equilíbrio entre as funções dos órgãos.

A combinação de saberes entre a clínica do corpo de órgãos e a epidemiologia deu substância, como conhecimento-ferramenta tecnológica, para a conformação de campos produtivos em todos os lugares de construção dos processos de tratamento, cuidado e escuta, inclusive de maneira dessemelhante, uma vez que é muito grande a variabilidade de composição dos recursos de saber dentro de cada profissão e, mesmo, dentro de cada campo de ação, como se observa na construção das especialidades profissionais. Na base das especialidades/especializações, estão práticas que reafirmam um corpo biológico que se patologiza no plano individual e/ou coletivo. Por dentro dos saberes operados como ferramentas para as especialidades, está o olhar que torna sempre visível apenas o corpo de órgãos e que anima a construção de certas formas do agir clínico em detrimento de outras. O particular suprime a demanda pelo singular, protege-se o exercício das profissões em detrimento do acolhimento do outro em suas reais demandas (nem se sabe quais seriam).

Essa constatação ou a construção dessa modelagem de práticas não é óbvia, nem imediata, uma vez que foi processada nas sociedades ocidentais durante séculos, desenhando-se como a maneira mais comum de se olhar para o adoecimento humano: como processo de patologização do corpo biológico. Modelagem que se sobressaiu das disputas sobre saberes e fazeres, acumulando/registrando um potencial de imposição de valor. Foucault (2004), em "O nascimento da clínica", e Luz (2004), em "Natural, racional, social: razão médica e racionalidade científica moderna", mostram-nos de forma muito elucidativa como foi dura a disputa entre os diferentes "práticos" do cuidado no insidioso processo de disputa por racionalidades, regimes de verdade, legitimidade. Disputas que ocorreram no plano epistemológico, no interior das organizações e estabelecimentos considerados lugares de cuidado em saúde e na vida em sociedade até o alcance da institucionalização do modo "certo" de ver a vida e o corpo humano. Esse "modo certo" passou a ser-nos revelado em oposição aos modos distintos, fossem as formas legítimas antecedentes, ou as formas em emergência, designadas, por contraposição, como charlatãs/de risco.

Esse processo social, prático e discursivo, quando institui-se de maneira hegemônica como o modo de fazer a atenção em saúde e compreender o processo saúde-doença, passa a produzir intensa subjetivação nos vários grupos sociais, além da formação de seus próprios militantes: os novos profissionais de saúde. Estamos todos, os implicados com o campo da produção da atenção, diante de um sofisticado jogo de forças, pois, de modo não muito claro e explícito, estão em luta regimes de verdade e modos de subjetivação.

Foucault (2004) revela como esse processo fez-se no momento histórico e social em que se instala, na cotidianidade do fazer, certa forma de olhar o corpo adoecido. O corpo, em lugar de ser território para sensações (contexto do sentir), é reconhecido como território onde evoluem as doenças, lugar físico da existência das lesões orgânicas/corporais (órgãos, tecidos, células, genes), que deveriam ser visualizadas para possibilitar a compreensão dos processos de adoecimento e, desse modo, do corpo, saúde, doença, tratamento e cura.

O cruzamento da racionalidade científica com a razão médica colocou o pensamento em saúde e suas várias racionalidades no operar do cuidado ou da cura, sob a mesma lógica de saber, a do corpo de órgãos. O mistério do encontro - presente na atenção usuário-centrada, dependente do contato com a alteridade e, por isso, não normalizado/não regulado pelas forças externas - está em que, mesmo sob lógicas idênticas de pensamento racional, pode gerar práticas bem distintas. O saber não é, de fato, o elemento determinante das práticas, mas seu componente, estando submetido aos processos em ato da clínica que se oferece como acolhimento. O mistério do encontro está nos intercessores que a construção, em ato, da atenção põe em cena. A observação sobre a integralidade da atenção ou a análise sobre a humanização na produção de saúde pode promover essa visibilidade e ampliar a potência dos encontros, tornando a atenção voltada mais àquilo que produz do que à discussão sobre quais meios utiliza ou pode utilizar para o agir em saúde. Isso deve criar, em quem pensa a mudança das práticas de saúde, ocupação com a educação da saúde (o território de produção das novas gerações profissionais) e com a participação social (o território de produção dos movimentos na sociedade), não apenas o desenho da díade gestão-atenção em saúde (território de produção dos serviços).

Apesar de verificarmos que a noção de corpo de órgãos é um dos lugares fundantes desses longos processos de construção discursiva e de pretensão de verdade, as nossas sociedades têm vivido e continuarão a viver intensas disrupturas, da mesma forma que estas estiveram presentes na instalação desse saber hegemônico. Olhando com delicadeza, podemos ver que existem disputas de práticas e inúmeras linhas de fuga pedindo passagem. É como se devêssemos preparar o nosso olhar para ver não apenas o mundo dado (instituído), também os mundos se dando (instituintes). O que vai acontecendo, insidiosamente nos cotidianos, são práticas de invenção da atenção, acopladas em práticas hegemônicas. Podemos deparar-nos com dois movimentos mais visíveis que nos interessam para a finalidade dessas reflexões: um plano racional-cognitivo e um plano imaginal-afetivo. No primeiro, a captura ou disruptura/singularização pelo conhecimento, a razão, a elaboração interpretativa, e, no segundo, a captura ou disruptura/singularização pelo sensível, a afecção, a tomada do inconsciente.

O primeiro movimento está marcado por um confronto explícito de campos de saberes, como o que nega a existência do corpo biológico, tal como foi construído, imaginária e simbolicamente, ao afirmar que o corpo é subjetivação, e não biológico, é potencialidade e representação de modos de existência, que por diferentes modos serão qualificadas como normais ou não. Porém, no fundo, isso é sempre um impor de uns sobre outros, pois modos de existência tomados como anormais ou patológicos serão sempre produtos da construção de relações de poder, entre distintos poderosos. Disputa-se não só o modo de se construir socialmente, o que é um problema para a produção das práticas de saúde, mas o modo como enfrentá-lo, abrindo-se um franco confronto sobre a que se refere esse campo de problematização e a quem interessa um ou outro olhar. Nesse movimento, explicita-se que há uma disputa pelo saber-fazer e pelo fundamento da ciência que lhe dá substância. É uma luta no campo da política do conhecimento.

O segundo movimento é aquele que se dispara de dentro do campo simbólico e imaginário, o dos afetos, que vai se construindo nas fissuras do hegemônico, nos seus vazios, nos seus conflitos e contradições. Insurge-se por onde as respostas não estão prontas ou não são mais aceitas, onde há resistência ante o que temos ou ante o instituído, e, por isso, ousamos, criamos, fazemos, com o não-saber, com a pergunta, com o desejo. Lugar fortemente produtivo que aparece de modo muito evidente em situações sociais e históricas nas quais os vários grupos sociais implicados com o mesmo campo de práticas emergem, não só operando-o, mas disputando-o de diferentes lugares situacionais, atravessando-o por vários outros focos de interesses a ponto de miná-lo por dentro, na ação. Tecnologias do imaginário (Ceccim et al., 2008), entretanto, operam permanentemente a captura do afetivo, promovendo impulsos para a ação, é quando esforços conceituais viram meras palavras de ordem e sensações são traduzidas em significados para os quais a resposta está aguardando.

Vale registrar que o primeiro e o segundo movimentos desdobram-se um no outro, de modo muito evidente. Por isso, aqui não se dá um valor claro ou mais positivo a qualquer desses processos, pois parece que ambos não pedem licença para ocorrer e, muito menos, nos são dados a priori como mais efetivos ou anteriores um ao outro. Podem ocupar lugares diferenciados ou, mesmo, emergir um no outro. No Brasil, hoje, esse segundo movimento é muito rico e presente na sociedade como um todo, na medida em que a complexificação do campo de disputa social próprio da saúde vem permitindo a explícita luta de diferentes movimentos sociais e de suas distintas pautas para esse campo; abrindo-o para a aparição do primeiro movimento no seu interior.

O corpo sem órgãos, a recuperação da clínica e a nova oferta da medicalização

À semelhança do que vimos falando sobre a construção da clínica do corpo de órgãos, estamos, agora, como sociedade, inseridos, também, em uma disputa de construção de novas lógicas de gestão da atenção em saúde e pelo desenho de um novo campo para a clínica: a do corpo na ausência dos órgãos (ex-órgãos ou "com os órgãos exteriorizados"). Falamos da evidência contemporânea de uma clínica do corpo ex-órgãos, sem órgãos, do mesmo modo que se diz exangue (sem sangue). Corpo sem órgãos porque não requer mais a tecnologia disciplinar do exame ou de que sejam vistos para o diagnóstico que gera a prescrição "clínica". O diagnóstico antecede o exame físico, é o diagnóstico do risco, e estamos todos sob o risco da doença dos órgãos. Esse corpo sem órgãos, em contrapartida, é um corpo sem forças, débil, exausto.

A indústria de medicamentos alia-se a esse olhar, não mais a farmacoterapia, mas a farmacoprevenção, da orientação ao corpo doente a ser curado, para o corpo saudável que deve ser tratado (preventivamente) para não adoecer, para não correr o risco de ter de consumir atos de saúde custosos segundo o modelo médico-hegemônico do corpo de órgãos, que ambiciona o uso ambulatorial de atos profissionais de saúde, não mais os atos médico-hospitalares. Surgem maciçamente medicamentos para manter a normalidade do corpo biológico; o risco de adoecer passa a ser medicamentalizado. Surgem preocupações em empresas de seguro e planos de saúde pela promoção e prevenção e pela produção de hábitos de vida que possam minorar processos de adoecimento. A medicalização social fica intensamente mais sofisticada. A patologização de certos sofrimentos, sob a ótica do modelo médico-hegemônico (clínica do corpo de órgãos), com a finalidade de patrocinar cuidados individuais e coletivos e o consumo de inúmeros atos profissionais de saúde centrados em tecnologias duras ou leve-duras, objeto de estratégias disciplinares das profissões clássicas da saúde e da saúde pública em geral, agora, sob a clínica de um corpo que não tem órgãos a serem perscrutados e tratados, instaura um olhar que patologiza os modos de viver a vida, individuais e coletivos - em um corpo ex-órgãos (corpo sem sintomas).

No bojo desse processo, um universo novo de patologias vai sendo construído. Há um processo de medicalização bem sofisticado. Comer certos alimentos, andar ou não, brincar de certo jeito ou de outro, por exemplo, passam a ser vistos como risco. Ser uma criança agitada é hiperatividade; viver a aflição com a mídia das violências é síndrome do pânico; fumar é matar-se; entrar na adolescência é agudizar riscos; o envelhecimento é uma nova nosologia.

Iriart (2008) alerta sobre esses movimentos e novas estratégias produtivas da atenção, inclusive com intensa medicamentalização, e que nos colocam diante, não só da reestruturação produtiva, mas de uma forte transição tecnológica do campo da saúde (Merhy, Franco, 2006). Para esses processos, é indiferente se o cuidado é produzido para curar uma doença, para impedir o adoecimento, para alterar sensibilidades ou para mudar comportamentos. Agora, sob novo desenho, o que se pretende com os trabalhadores da atenção à saúde é regulá-los onde antes exerciam de modo fragmentado seus atos produtivos. Agora, o que interessa é agir de modo integrado e protocolizado em termos multiprofissionais sobre os processos desejantes vinculados à produção dos modos de existência, sob o tacão do olhar do risco de adoecer e morrer.

A aliança estreita entre fazer uma nova forma de gestão da atenção para impedir a autonomia do exercício dos trabalhadores de saúde e a clínica ex-órgãos vem reposicionar e produzir, de modo mais conservador, as estratégias disciplinares dos momentos anteriores. Vem agora operar uma clínica sem o limite disciplinar do corpo de órgãos, uma atuação dirigida à produção do desejo ali onde se modulam as formas de viver. Vêm agregar-se estratégias de controle sobre os modos de cuidar de si.

Tudo isso ocorre absorvendo, até certo ponto, o modo de agir do campo da clínica do corpo de órgãos, agora subsumida, e não mais como território imperativo de ordenamento das práticas e das profissões de saúde. Esse corpo (sem órgãos/desvitalizado, sem um viver intensivo, mas um viver normativo) é o corpo do sistema profissional de saúde, ampliadamente prescrito, muito mais independente da vida que se leva. A vida é explicada pelo laboratório. Medicamentos, alimentos e atividades podem ensejar o corpo do laboratório.

Entretanto, em lugar de normalizar a vida, os trabalhadores de saúde podem participar da produção da vida, ali onde cada um pode gerar um cuidar de si, não para construir um jeito protocolar de viver, mas para construir seu modo original de viver. Essa seria uma clínica do corpo sem órgãos, onde cada indivíduo se sabe e seus cuidadores se sabem e o sabem em redes de fluxos, em redes intercessoras, em efeitos de encontro. No fio da navalha, portanto, outra proposta de corpo sem órgãos. Do corpo sem forças, débil, desvitalizado (ex-órgãos) para o corpo que corre riscos, que sente a vida de todas as maneiras. Na contemporaneidade, esse corpo humano pede socorro, não para sobreviver, mas para viver. A poeta Alice Ruiz (1994) deu texto a essa condição em "Socorro": "Socorro, não estou sentindo nada. Nem medo, nem calor, nem fogo. Não vai dar mais pra chorar, nem pra rir".

Para o corpo sem órgãos (exangue), a que Ruiz roga socorro, oferta-se o controle da alimentação, o controle da atividade física, o controle da sexualidade, o controle dos níveis de estresse; alimentos-remédio, exercícios-saúde, relacionamentos-calmante, lazeres-descarga etc., sem necessidade de buscar o "comum de dois" (usuário e profissional que se dizem respeito): ou todos são iguais, de maneira identitária ou todos são diferentes de modos isolados, passíveis de uma prescrição ampliada. Ruiz pede de volta um órgão que sinta e para o sentir: "Socorro, alguém me dê um coração [...]. Por favor, uma emoção pequena, qualquer coisa. Qualquer coisa que se sinta". Pede um terapeuta: "Socorro, alguma alma, mesmo que penada, me empreste suas penas. Já não sinto amor nem dor, já não sinto nada". Não é o apagamento de sintomas que o corpo humano pede, é o sentir: "Socorro, alguma rua que me dê sentido, em qualquer cruzamento, acostamento, encruzilhada. Socorro, eu já não sinto nada". O corpo humano é um corpo de órgãos acoplado a um corpo sem órgãos, não se trata de um corpo saco de órgãos (anatomofisiologia). Deleuze e Guattari (1996) nomeiam esse humano do corpo (sem a forma homem) por Corpo sem Órgãos (CsO). Não haverá um anima ao corpo na sua ausência. Os autores falam, então, em substituição da anamnese pelo esquecimento, da interpretação pela experimentação. Dizem da necessidade de encontrarmos nosso CsO, de saber fazê-lo, como uma questão de vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. O risco, nesse caso, não é o de morrer, mas o de não viver intensamente. Um CsO possui uma tal maneira que só pode existir povoado por intensidades, as intensidades passam e circulam, não constituem órgãos, precisam deles. O contrário do corpo tornado corpo sem órgãos pela nova medicalização é o Corpo sem Órgãos exuberante, ardente. Para os autores, nesse corpo está a arte da medicina ("terapêutica").

Milton Nascimento (1982) diz desse corpo em "Änïmä": "casa cheia de coragem, vida, todo afeto que há no meu ser". Fala de uma saúde que "vai além de tudo que nosso mundo ousa perceber; onde se esquece a paz" e da necessidade de, em tal caso, "ir mais, atravessar fronteiras do amanhecer e ao entardecer olhar com calma, então". Diz desse corpo: "te quero ser".

Fechamento

Vale a pena olhar para os lugares em que produzimos as relações humanas, dando-lhes visibilidade, buscando apurar certa perspicácia para tirar proveito das infinitas disrupturas micropolíticas que estão agindo no mundo da produção social do desejo, desfazendo instituídos. As práticas de atenção ocupam lugares fundamentais por seu contato com as vivências em forma de sensação, sintoma, aflição, sofrimento e doença, que buscam cuidado profissional de saúde.

Uma situação que não está necessariamente inscrita no interior de uma rede de serviços de saúde permite-nos mostrar o desenvolvimento de certa perspicácia para olhar a tensão relativa aos processos de subjetivação que a medicalização do corpo já sem seus órgãos vem propiciando. Castello (2007), em um ensaio sobre João Cabral de Melo Neto, relata que, no final da vida, esse poeta encontrava-se muito triste. Contava que os médicos diziam para ele que isso era depressão e ele contestava, dizia que era melancolia, completando que não haveria remédio capaz de lhe resolver essa situação, pois não era algo que se cura, tem-se. Talvez até a partir dessa sua melancolia sentisse certas inspirações poéticas. O olhar médico continha uma explicação, as sensações do poeta, outra, revelando-se um plano de disputa sobre o projeto terapêutico a entabular. Situações como essa podem ocorrer em qualquer lugar - em um serviço de saúde de pronto-atendimento, em uma equipe de saúde da família, em um ambulatório, entre professores de uma escola qualquer e assim por diante - não são exceção, habitam o cotidiano dos nossos mundos de modo bem efetivo.

De fato, esse modo de ver certas situações e denominá-las buscando dar-lhes certo significado e não outro - propor, por exemplo, que ser gordo é ser doente, pelo risco de ser; que ser velho é ser doente, pelo risco de ser etc. - é termos um olhar armado para ver doença diante de algumas "coisas". Não é um fenômeno casual e nem individual, é uma construção ampla de processos de subjetivação do olhar de cada um e de todos ou, pelo menos, de muitos. São agenciamentos produzidos de maneira intencional pelo domínio de recursos de manejo comunicativo e de poder, tais como os dos setores empresariais ou de certos grupos sociais como o dos profissionais de saúde. Podem ser também agenciamentos mais ocasionais, capilares, como no caso de explorarmos o poeta que temos em nós, mais do que o usuário de saúde que temos em nós, quando somos trabalhadores da atenção em saúde e disputamos sentidos mais plurais para nossas práticas.

A produção do "comum de dois" culmina na produção de confiança, confiança que provê acolhimento de autopoieses, que culminam na produção de diferença (defasagem de si) e, portanto, singularização. Sem essa problematização, de fato, não construímos a possibilidade de um devir à humanização, no bojo dos princípios e diretrizes do SUS, pautada pela produção da saúde como produção de vida, um modo autopoiético e solidário de invenção das práticas de atenção. A grande perspicácia, entretanto, estaria na construção de um agir micropolítico e pedagógico intenso: apoiar as desobediências ao instituído/vigente/hegemônico que as humanizações ensejam (antigos ou novos programas) e aproveitar sua oportunidade de política para ser a causa ou motivo de possibilitar a interferência-em-interação, a circulação e a repercussão das vertentes brasileiras de estudo que inspiram e experimentam o contato vivo com processos cotidianos de encontro e alteridade.

Colaboradores

Emerson Elias Merhy preparou o texto de base, indicando um argumento à problematização; Ricardo Burg Ceccim reorganizou o texto, reconstruindo sua argumentação final. Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de redação do artigo.

Recebido em 10/03/09. Aprovado em 19/05/09.

  • CASTELLO, J. Poesia na penumbra. Literatura. Bravo! (São Paulo), v.10, n.121, p.68-74, 2007.
  • CECCIM, R.B. Equipe de saúde: a perspectiva entre-disciplinar na produção dos atos terapêuticos. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Orgs.). Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: Hucitec, 2004. p.259-78.
  • CECCIM, R.B. et al. Imaginários da formação em saúde no Brasil e os horizontes da regulação em saúde suplementar. Cienc. Saude Colet., v.13, n.5, p.1567-78, 2008.
  • DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Como criar para si um Corpo sem Órgãos. In: ______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. p.9-29. v.3.
  • FOUCAULT, M. O nascimento da clínica 6.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
  • GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1986.
  • IRIART, C. Capital financiero versus complejo médico-industrial: los desafíos de las agencias regulatorias. Cienc. Saude Colet., v.13, n.5, p.1619-26, 2008.
  • LUZ, M.T. Natural, racional, social: razão médica e racionalidade científica moderna. 2.ed. São Paulo: Hucitec, 2004.
  • MERHY, E.E. O SUS e seus dilemas: mudar a gestão e a lógica do processo de trabalho (um ensaio sobre a micropolítica do trabalho vivo). In: FLEURY, S. (Org.). Saúde e democracia: a luta do Cebes. São Paulo: Lemos, 1997. p.125-42.
  • MERHY, E.E.; FRANCO, T.B. Reestruturação produtiva em saúde. In: BRASIL PEREIRA, I.; FRANÇA LIMA, J.C. (Coords.). Dicionário da educação profissional em saúde Rio de Janeiro: EPSJV /Fiocruz, 2006. p.225-30.
  • NASCIMENTO, M. Änïmä In: Änïmä (LP). Ariola, 1982.
  • PELBART, P.P. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.
  • PIMENTA, S.G. Pesquisa-ação crítico-colaborativa: construindo seu significado a partir de experiências com a formação docente. Educ. Pesqui., v.31, n.3, p.521-39, 2005.
  • RUIZ, A. Socorro In: Cássia Eller - 1994 (CD). Universal Music, 1994.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Ago 2012
  • Data do Fascículo
    2009

Histórico

  • Aceito
    19 Maio 2009
  • Recebido
    10 Mar 2009
UNESP Distrito de Rubião Jr, s/nº, 18618-000 Campus da UNESP- Botucatu - SP - Brasil, Caixa Postal 592, Tel.: (55 14) 3880-1927 - Botucatu - SP - Brazil
E-mail: intface@fmb.unesp.br