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Gestão participativa e corresponsabilidade em saúde: limites e possibilidades no âmbito da Estratégia de Saúde da Família

Gestión participativa y co-responsabilidad en salud: límites y posibilidades en el ámbito de la Estrategia de Salud de la Familia

Participative management and co-responsibility in healthcare: limits and possibilities within the scope of the Family Health Strategy

Resumos

De acordo com a Política Nacional de Humanização do SUS - HumanizaSUS - a gestão participativa implica o envolvimento dos trabalhadores da saúde, gestores e usuários em um pacto de corresponsabilidade baseado em contratos e compromissos com o sistema de saúde. Este artigo discute limites e possibilidades de incorporação da gestão participativa e incorporação do princípio da corresponsabilidade no âmbito da Estratégia Saúde da Família (ESF). Foi desenvolvido um estudo de casos múltiplos, integrando estratégias qualitativas (dominante) e quantitativas, no qual se privilegiou a percepção de profissionais e usuários. Foram contemplados seis municípios da Bahia, Sergipe e Ceará. Evidenciou-se que o processo de participação social e a incorporação do princípio da corresponsabilidade no escopo da gestão e atenção na ESF é bastante incipiente. Constatou-se que a participação cidadã não é incentivada pelos profissionais e que muitos usuários assumem uma atitude de gratidão diante dos serviços recebidos.

Humanização; Corresponsabilidade; Participação social; Estratégia Saúde da Família; Planejamento participativo


De acuerdo con la Politica Nacional de Humanización del Sistema Único de Salud brasileño, la gestión participativa implica la cooperación de los trabajadores de la salud, gestores y usuarios en un pacto de co-responsabilidad basado en contratos y compromisos con el sistema de salud. Este artículo discute los límites y posibilidades de incorporación de la gestión participativa e incorporación del principio de co-responsabilidad en el ámbito de la estrategia de salud de la familia. Se ha desarrollado un estudio de casos múltiples, integrando estrategias cualitativas (dominante) y cuantitativas en el que se privilegia la percepción de profesionales y usuarios. Se contemplan seis municipios de Bahia, Sergipe y Ceará, estados de Brasil. El estudio ha puesto en evidencia que el proceso de participación social y la incorporación del principio de la co-responsabilidad en el escopo de la gestión y atención en la Estrategia de Salud de la Familia es bastante incipiente. Se constata que la participación ciudadana no es incentivada por los profesionales y que muchos usuarios asumen una actitud de gratitud ante los servicios recibidos.

Humanización; Co-responsabilidad; Participación social; Estrategia de Sálud de la Familia; Planificación participativa


According to the National Humanization Policy of the Brazilian Unified Health System (Humaniza-SUS), participative management implies the involvement of healthcare workers, managers and users in a pact of co-responsibility based on contracts and commitments with the healthcare system. This paper discusses the limits and possibilities for incorporating participative management and the principle of co-responsibility within the scope of the Family Health Strategy. A multiple-case study was developed, integrating qualitative (dominant) and quantitative strategies, with emphasis on professionals' and users' perceptions. Six municipalities in Bahia, Sergipe and Ceará were included. The study showed that the process of social participation and the incorporation of the principle of co-responsibility within the scope of the management and healthcare of the Family Health Strategy is at a very early stage. It was observed that the professionals did not encourage citizen participation and that many users took an attitude of gratitude for the services received.

Humanization; Co-responsibility; Social participation; Family Health Strategy; Participative planning


ARTIGOS

Gestão participativa e corresponsabilidade em saúde: limites e possibilidades no âmbito da Estratégia de Saúde da Família* * Artigo inédito, resultado de Pesquisa sobre Humanização no PSF, financiada pelo CNPq, edital 37/2004. A pesquisa não apresenta conflitos de interesses e o projeto base foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, registro 023-06/CEP-ISC/UFBA.

Participative management and co-responsibility in healthcare: limits and possibilities within the scope of the Family Health Strategy

Gestión participativa y co-responsabilidad en salud: límites y posibilidades en el ámbito de la Estrategia de Salud de la Familia

Leny Alves Bomfim TradI; Monique Azevedo EsperidiãoII

IInstituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA). Rua Basílio da Gama, s/n, Campus Universitário Canela. Salvador, BA, Brasil. 40.110-040 trad@ufba.br

IIDoutoranda, ISC/UFBA

RESUMO

De acordo com a Política Nacional de Humanização do SUS – HumanizaSUS - a gestão participativa implica o envolvimento dos trabalhadores da saúde, gestores e usuários em um pacto de corresponsabilidade baseado em contratos e compromissos com o sistema de saúde. Este artigo discute limites e possibilidades de incorporação da gestão participativa e incorporação do princípio da corresponsabilidade no âmbito da Estratégia Saúde da Família (ESF). Foi desenvolvido um estudo de casos múltiplos, integrando estratégias qualitativas (dominante) e quantitativas, no qual se privilegiou a percepção de profissionais e usuários. Foram contemplados seis municípios da Bahia, Sergipe e Ceará. Evidenciou-se que o processo de participação social e a incorporação do princípio da corresponsabilidade no escopo da gestão e atenção na ESF é bastante incipiente. Constatou-se que a participação cidadã não é incentivada pelos profissionais e que muitos usuários assumem uma atitude de gratidão diante dos serviços recebidos.

Palavras-chave: Humanização. Corresponsabilidade. Participação social. Estratégia Saúde da Família. Planejamento participativo.

ABSTRACT

According to the National Humanization Policy of the Brazilian Unified Health System (Humaniza-SUS), participative management implies the involvement of healthcare workers, managers and users in a pact of co-responsibility based on contracts and commitments with the healthcare system. This paper discusses the limits and possibilities for incorporating participative management and the principle of co-responsibility within the scope of the Family Health Strategy. A multiple-case study was developed, integrating qualitative (dominant) and quantitative strategies, with emphasis on professionals' and users' perceptions. Six municipalities in Bahia, Sergipe and Ceará were included. The study showed that the process of social participation and the incorporation of the principle of co-responsibility within the scope of the management and healthcare of the Family Health Strategy is at a very early stage. It was observed that the professionals did not encourage citizen participation and that many users took an attitude of gratitude for the services received.

Keywords: Humanization. Co-responsibility. Social participation. Family Health Strategy. Participative planning.

RESUMEN

De acuerdo con la Politica Nacional de Humanización del Sistema Único de Salud brasileño, la gestión participativa implica la cooperación de los trabajadores de la salud, gestores y usuarios en un pacto de co-responsabilidad basado en contratos y compromisos con el sistema de salud. Este artículo discute los límites y posibilidades de incorporación de la gestión participativa e incorporación del principio de co-responsabilidad en el ámbito de la estrategia de salud de la familia. Se ha desarrollado un estudio de casos múltiples, integrando estrategias cualitativas (dominante) y cuantitativas en el que se privilegia la percepción de profesionales y usuarios. Se contemplan seis municipios de Bahia, Sergipe y Ceará, estados de Brasil. El estudio ha puesto en evidencia que el proceso de participación social y la incorporación del principio de la co-responsabilidad en el escopo de la gestión y atención en la Estrategia de Salud de la Familia es bastante incipiente. Se constata que la participación ciudadana no es incentivada por los profesionales y que muchos usuarios asumen una actitud de gratitud ante los servicios recibidos.

Palabras clave: Humanización. Co-responsabilidad. Participación social. Estrategia de Sálud de la Familia. Planificación participativa.

Introdução

A Política Nacional de Humanização (PNH) reconhece claramente o princípio da democratização como um dos requisitos da humanização em saúde. A PNH, entendida como uma política que atravessa as diferentes ações e instâncias gestoras do SUS, propõe a transversalização destas instâncias, reafirmando o exercício da descentralização e da autonomia da rede de serviços e dos coletivos que integram o Sistema Único de Saúde (SUS) (Brasil 2006, 2004a).

Entre os princípios desta política, destacam-se alguns diretamente relacionados com novos modos de produção e circulação de poder em saúde, a saber: a construção da autonomia e protagonismo dos sujeitos e coletivos que constituem o SUS; o aumento do grau de corresponsabilidade na produção de saúde e de sujeitos ou nos processos de gestão e atenção em saúde; o fomento da autonomia e do protagonismo dos sujeitos; o estabelecimento de vínculos solidários e de participação coletiva no processo de gestão (Brasil, 2006, 2004b). A PNH preconiza a construção de uma gestão participativa que envolva trabalhadores da saúde, gestores e usuários em um pacto de corresponsabilidade baseado em contratos e compromissos com o sistema de saúde.

Campos (2005) é categórico ao afirmar que não é possível haver projeto de humanização, sem que se leve em conta o tema da democratização das relações interpessoais e, em decorrência, da democracia em instituições. Ele defende o aperfeiçoamento do sistema de gestão compartilhada no SUS de modo a integrar os distritos, serviços e relações cotidianas na saúde. Reforça-se ainda a necessidade de estratégias que se destinem a aumentar o poder do usuário ou da população em geral frente ao poder e à autoridade sanitária. Trata-se de mecanismos preventivos que dificultem o abuso de poder, lembrando que a predominância de saídas jurídicas, post factum, é um sintoma da perversidade de instituições e das normas vigentes (Campos, 2005).

O debate sobre democratização, participação social ou o princípio de corresponsabilidade contido tanto nas diretrizes da Estratégia de Saúde da Família (antes denominada programa), quanto na PNH, remetem inevitavelmente a questões de ordem ética e política que põem em evidência categorias como sujeito, igualdade e autonomia. Com efeito, o projeto de humanização em saúde que vem sendo delineado no Brasil persegue:

a produção de um cuidado orientado pelo reconhecimento de pessoa [o sentido de ser membro, de pertencimento a um ethos, a uma cultura, a um grupo que define os próprios significados do "eu"] e de sujeito [o sentido de uma identidade a partir de uma biografia singular, articulada a uma cultura, capaz de dotar de legitimidade a autonomia de cada um]. (Deslandes, 2005, p.40)

Benevides e Passos (2005a) defendem a idéia de que a aposta da humanização do SUS se faz pela produção de subjetividades, e esclarecem que tal proposição não pressupõe a busca de uma equivalência ou indiferenciação entre os múltiplos atores presentes no campo da saúde. Eles refutam esta hipótese apoiados na convicção de que a posição diferenciada que ocupa o conjunto de sujeitos da saúde resulta em subjetividades díspares e conflitivas que produzem a realidade e são produzidas por ela. Ao entender que as subjetividades são produzidas, estes autores propõem que o trabalho de explicitação do plano de produção do instituído deve ser acompanhado por um outro trabalho, que é o de criar condições para a emergência de efeitos-subjetividades compatíveis com as mudanças das práticas de saúde preconizadas pelo SUS. Advertem ainda que a predeterminação daquilo que se espera alcançar em termos de ação inventiva dos sujeitos envolvidos com o processo de produção de saúde, dificulta o processo de valoração dos processos de autonomia, protagonismo, corresponsabilidade ou cogestão.

Os desafios para a participação no âmbito da gestão em saúde no Brasil, particularmente pela via dos conselhos de saúde e/ou conferências, vêm sendo alvo privilegiado no debate na produção mais recente sobre o tema. Um entusiasmo inicial sobre as potencialidades destes mecanismos, enquanto vetores de participação política e de controle social, cede lugar a uma posição mais cética, ou quiçá mais crítica. Com efeito, termos como "dilemas", "utopias", "desafios", "problemas" são evocados por diferentes autores para realçar as dificuldades evidenciadas nos processos de participação social no Brasil (Martins et al., 2008; Guizardi, Pinheiro 2006; Morita et al., 2006; Silva, 2006).

Ribeiro (2007) destaca três questões essenciais na produção de políticas públicas comprometidas com a garantia do direito à saúde e valorização dos direitos humanos e da cidadania: a integridade e a dignidade como fundamentos para a organização e regulação das intervenções públicas; o reconhecimento e o respeito à diferença como condição para a realização do direito à saúde; a territorialização dos problemas e das políticas na produção de respostas às novas realidades.

Discute-se menos, na literatura nacional, a corresponsabilidade referida ao cuidado em saúde. A concepção de humanização do cuidado, segundo Howard (1975 apud Deslandes, 2006), deveria se basear numa relação de igualdade, posto que as posições de inferioridade e superioridade seriam antítese de um cuidado humanizado. Compartilhar decisões e responsabilidades seria uma consequência e uma reafirmação do fato de se considerar o outro como igual. Entretanto, a literatura consultada pelo próprio Howard já questionava essa possibilidade, dada a assimetria entre o conhecimento específico que o profissional (médico em especial) detém no que diz respeito ao paciente (termo utilizado pelo autor), além de caber moralmente ao médico a tomada de decisões. Assim sendo, o acesso à informação sobre o diagnóstico, tratamento e suas consequências é apontado como condição necessária para se construírem relações menos desiguais no âmbito do cuidado em saúde.

O trabalho de Delfino et al. (2004) descreve uma experiência de "cuidar participante" realizada com um coletivo de gestantes. O processo se desenvolveu por meio de ações que integravam momentos de análises, reflexões e sínteses abrangendo as seguintes dimensões: a gestante com ela própria; a gestante com o seu bebê e com os familiares; e os familiares e a gestante com a comunidade. Segundo o autor, esta experiência revelou que a adoção da abordagem participante influenciou na ampliação do conceito de saúde e de cidadania no contexto das gestantes e dos seus coletivos.

Deslandes (2006) salienta que a questão da autonomia e legitimidade dos pacientes para a tomada de decisões é um tema bastante discutido no debate sobre humanização e, sem dúvida, suscita muitas polêmicas. Ela levanta uma série de questionamentos com respeito às proposições de Howard. Seria legítimo eleger, como faz Howard, os pacientes de determinado nível educacional? Numa sociedade hierarquizada, seria real pressupor a relação entre pessoa doente e cuidador como uma relação de iguais? Qual a diferença entre considerar a capacidade do paciente em dividir decisões como referência a ser construída em cada encontro real e tomá-la, de forma equivocada, como substituto da responsabilidade médica em arbitrar tecnicamente? Pode-se dizer que o lugar atribuído ao paciente vem sendo progressivamente transformado. A 'passividade' e 'fragilidade' do papel de paciente cederam lugar ao reconhecimento de um paciente-consumidor, sujeito e portador de direitos, entre eles: o de informação, autonomia (ainda que relativa) e arbítrio, aproximando-se do que denominamos hoje "usuário".

Em texto anterior (Deslandes, 2005), a autora trazia duas outras questões: de quais capitais de protagonismo e autonomia os diferentes atores usufruem? Quais as margens e mecanismos de negociação e ampliação destas fronteiras? No caso dos profissionais, a liberdade de ação pode ser restringida em consequência da limitação de recursos, de compromissos e exigências administrativas ou pela pressão dos seus pares. Os usuários, por sua parte, poderiam ter sua liberdade limitada pela ocorrência de determinadas enfermidades, pela falta de conhecimentos especializados ou pelas normas estabelecidas em protocolos institucionais.

É preciso dizer que, a despeito dos desafios conceituais e práticos que possam permear o debate sobre mecanismos de democratização, protagonismo dos sujeitos ou autonomia, existe um consenso sobre a necessidade de se enfrentarem estas questões e se criarem as bases de um movimento realmente instituinte do projeto de humanização em contexto ao ideário do SUS (Ayres, 2006; Deslandes, 2006; Trad, 2006; Benevides, Passos, 2005b; Caprara, Franco, 1999). Na busca de possíveis alternativas aos dilemas apresentados, vislumbram-se possíveis vias no enfrentamento destas questões.

Benevides e Passos (2005a) sugerem a ampliação do grau de transversalidade das práticas e relações em saúde, o que permitiria uma comunicação multivetorializada construída na interseção dos eixos vertical (que hierarquiza os gestores, trabalhadores e usuários) e horizontal (que cria comunicações por estames). O conceito de transversalidade adotado pelos autores deriva de Guattari (1981) e diz respeito ao grau de abertura que garante, às práticas, a possibilidade de diferenciação ou invenção, a partir de uma tomada de posição que faz dos vários atores sujeitos do processo de produção da realidade em que estão implicados.

Ayres (2006) propõe um processo de diálogo e responsabilização mútua que comprometa tecnicamente e moralmente profissionais e usuários na tarefa do cuidado. Um movimento que será mais facilitado quanto maior for a confiança no outro, embora a responsabilidade prescinda dessa garantia: "responsabilizar-se implica tornar-se caução de suas próprias ações" (p.73). Outra alternativa, já referida em trabalhos anteriores (Trad, 2006), é conceber a interação trabalhador de saúde-usuário enquanto rede de relações e de comunicações, nos moldes sugeridos por Teixeira (2001). É preciso reconhecer, sobretudo, a complexidade inerente ao encontro entre estes sujeitos e as contradições que ele encerra.

Vale destacar que, ao focalizar a questão da corresponsabilidade na gestão e no cuidado em saúde no âmbito da ESF, se reconhece a sua clara vinculação com a temática mais ampla da participação social. Neste sentido, considera-se que o conceito de autopromoção proposto por Demo (1996) permite estabelecer uma aproximação entre as categorias corresponsabilidade e participação social. O autor define "autopromoção" como característica de uma política social centrada nos próprios interessados, os quais passam a autogerir ou cogerir a satisfação de suas necessidades e a reconhece enquanto uma conquista processual e um expoente da cidadania.

O presente estudo procurou investigar os limites e possibilidades da incorporação da gestão participativa ou corresponsabilização de trabalhadores da saúde, gestores e usuários com o sistema de saúde, conforme preconiza a PNH (Brasil, 2006, 2004b) no âmbito da ESF e pela PNH. Focalizou-se, especificamente, a experiência de seis municípios da Bahia, Sergipe e Ceará.

Metodologia

Esta investigação consiste em um estudo comparado de casos múltiplos (Yin, 1989) de tipo quali-quanti, com primazia do enfoque qualitativo. O estudo foi realizado em três estados do Nordeste: Bahia, Sergipe e Ceará. Para a escolha destes estados, foram decisivos os seguintes aspectos: 1) o tempo diferenciado de implantação efetiva e cobertura da ESF: o Ceará destaca-se como um estado pioneiro neste processo e que apresenta maior cobertura, seguido pelos estados de Sergipe e Bahia; 2) a experiência prévia da equipe de pesquisa em estudos de avaliação da atenção primária de saúde nos três estados.

Foram selecionados, em cada estado, dois municípios, considerando: o critério populacional, a cobertura do PSF e um quadro positivo em termos da implantação do PSF. No critério populacional, foram consideradas duas situações: um município de pequeno porte com até vinte mil habitantes com 100% de cobertura do PSF; um município de grande porte caracterizado como grande centro urbano e incluído no PROESF (Projeto de Expansão e Consolidação da ESF), excluindo as capitais. Destaque-se que, nos municípios de grande porte, a margem de escolha foi reduzida, uma vez que um dos estados (Sergipe) dispunha apenas de um município enquadrado no PROESF, além da capital.

Com base nos critérios mencionados, foram selecionados os seguintes municípios: Madre de Deus (13.824 hab.) e Vitória da Conquista (285.925 hab.), no estado da Bahia; Nossa Senhora do Socorro (171.842 hab.) e Carmópolis (10.960 hab.), no estado de Sergipe; Maracanaú (193.879 hab.) e Pindoretama (17.138 hab.), no estado do Ceará. Em cada município foram eleitas áreas de estudo que contemplassem os seguintes critérios: quatro áreas nos municípios de grande porte que variavam segundo a qualidade de vida (boa, intermediária; precária e uma área rural, semirrural ou bastante periférica); uma área urbana e uma área rural, semirrural ou periférica nos municípios de pequeno porte.

Para a abordagem extensiva (quanti) foram elaborados dois questionários de múltipla escolha aplicados, respectivamente, a uma amostra intencional de profissionais das unidades de saúde da família contempladas no estudo (168) e uma amostra aleatória de usuários residentes nas áreas de abrangência das mesmas unidades (1.223). Os questionários de usuários foram aplicados majoritariamente nos domicílios dos entrevistados. No caso dos profissionais, este processo ocorreu no seu local de trabalho. Ambos os instrumentos foram testados em estudo piloto e foram realizados ajustes prévios a sua aplicação.

A abordagem qualitativa, que pretendeu explorar dimensões mais subjetivas associadas com as questões de estudo, foi realizada por meio de grupos focais envolvendo equipes e usuários. Foram realizados 18 grupos focais com usuários nas seis áreas selecionadas para estudo, nos três estados: quatro nos municípios de grande porte e dois nos de pequeno porte. Em média, os grupos contaram com o número de 12 participantes e duraram em torno de uma hora e vinte minutos.

Os questionários e roteiros de grupos focais foram orientados pelas seguintes categorias de estudo: os sentidos ou significados da humanização para os usuários; a relação entre profissionais e usuários da ESF nos diferentes espaços de atuação da equipe, considerando aspectos como: escuta, comunicação (transmissão adequada de informações e orientações); acolhimento às demandas do usuário (consultas, orientações, medicamentos, encaminhamento para outras unidades etc.); infraestrutura (instalações, equipamentos etc.) disponível no programa.

Na análise dos dados utilizou-se o programa EPI-Info para o tratamento dos dados coletados por meio dos questionários. Para a sistematização e interpretação dos conteúdos dos grupos focais, adotou-se a análise de conteúdo.

O estudo seguiu rigorosamente as recomendações éticas previstas na resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. O projeto base foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP). Ressalta-se ainda que todos os nomes de usuários e/ou profissionais referidos no texto são fictícios.

Resultados e discussão

Corresponsabilidade na gestão e no cuidado: a visão dos usuários

Ao focalizar a visão dos usuários, sob uma perspectiva panorâmica, encontramos vários indícios da fragilidade de ordem conceitual e prática associada aos temas de participação ou controle social, cidadania, direito à saúde etc., nos seis municípios pesquisados. Foram recorrentes depoimentos que revelam uma postura de conformismo diante dos problemas do sistema de saúde local, mesmo aqueles que afetam mais diretamente o cotidiano dos territórios investigados. Apesar de reclamarem do tempo de espera e/ou da dificuldade de acesso a alguns serviços, ao adotarem uma análise retrospectiva, na qual comparam a situação atual com aquela anterior à implantação da ESF, muitos usuários tendem a reconhecer como "normal" ou, pelo menos, "aceitável" estas ocorrências.

Chama atenção, sobretudo, o fato de que a maioria dos usuários consultados mantém uma postura de gratidão diante de avanços identificados em termos de ampliação do acesso ou qualidade dos serviços de saúde. São raros aqueles que reconhecem os progressos no sistema de saúde como um direito de cidadania. Nestes termos, a qualidade dos serviços e as melhorias no funcionamento da unidade são percebidas quase como favores.

Por outro lado, é interessante identificar, entre os usuários, depoimentos que revelam um exercício de autocrítica diante deste quadro:

Eu acho que há relaxamento, muitas vezes, por parte da comunidade [...]. Isso vem de longe, é uma falta de informação, mais por parte, por causa da questão social, que muita gente se acomoda mesmo. Nós estamos aqui, né? "Somos todos iguais. Então, eu acho que falta conscientização da comunidade de também buscar. A gente sabe muito reclamar em casa, com o vizinho, mas na hora de recorrer pras autoridades, a gente se inibe. Eu não sei porque, isso acontece muito. (Usuário, Jardim Bandeirantes, Maracanaú, Ceará)

A ausência de interesse da comunidade por questões relativas à organização ou qualidade dos serviços de saúde é justificada, também, como decorrência da postura adotada pelos profissionais de saúde ou pela descrença na efetividade da participação. Há também os que se interrogam sobre o "quê poderiam fazer", indicando um desconhecimento quanto aos possíveis mecanismos de mobilização social diante dos problemas identificados no sistema de saúde:

Antes, eles se preocupavam muito com a opinião da gente, hoje não tem mais isso...há três anos atrás...o último médico fazia reunião e tudo, agora não, teve mas eu não vou porque não resolve nada. Algumas pessoas quando tem reunião também não quer falar, ou não vai. Diz: Eu perdi o que lá? Tenho mais o que fazer! Depende da pessoa porque nem todo mundo quer ir, não sabendo que é muito importante ir. (Usuário, Programa de Saúde da Família (PSF) III, Madre de Deus, Bahia)

Tem endoscopia, gastro e tudo demora demais. Então, eu achava melhor assim, se pudesse, né... O quê que a gente podia fazer pra não demorar tanto assim, né?! E também a respeito de médica, sabe?! É uma médica só. O quê que a comunidade podia fazer pra vir mais de um médico para aqui? (Usuário, Iguá, Zona rural, Vitória da Conquista, Bahia)

Destoando da tônica dominante, encontramos, no discurso de um usuário da USF da Vila Serrana, em Vitória da Conquista (Bahia), o reconhecimento de que determinadas ações realizadas pelas equipes de saúde traduzem um direito conquistado pela sociedade: Tratar bem o idoso não é que eles estão fazendo de boa vontade não é obrigação, tem o estatuto do idoso que ta ai em vigor e todo mundo tem que obedecer, não é porque eles são bonzinhos não. (Usuário, Vila Serrana, Vitória da Conquista, Bahia)

A maioria dos usuários consultados nos seis municípios demonstra que desconhece o papel dos conselhos locais de saúde e as ações dos seus representantes nestes conselhos. No limite, desconhece a sua existência.

Eu vejo falar que tem...Mas aqui acho que não têm conselho dos idosos, essas coisas. Só saúde mesmo, né? O conselho da saúde é aqui, né? O postinho. Das meninas, né? Porque a gente vem prai, né? (Usuário, Sede, Carmópolis, Sergipe)

Os trabalhos de Vázquez et al. (2005) reforçam a importância de se investir na divulgação dos mecanismos de participação social para a população, ressaltando, contudo, que não é suficiente ter conhecimento sobre a existência destes. Em um inquérito populacional realizado com usuários dos serviços de saúde, em dois municípios de Pernambuco, constatou-se que cerca de metade da população entrevistada conhecia o Disque Saúde e o Conselho Municipal de Saúde (CMS). Entretanto, a taxa de participação era bastante inferior.

Voltando ao nosso estudo, observamos que, entre aqueles usuários que demonstram uma postura mais crítica e participativa, encontramos um sentimento de descrédito em relação àqueles que deveriam representar os interesses da população (ocupantes de cargos políticos, representantes de associações etc.), ou mesmo uma lacuna em termos de lideranças que possam assumir o papel de porta-voz da comunidade:

Aqui não tem algum trabalho de pastoral, de igreja, de comunidade... não tem nada.. Só político, que vem... Vem, mas só promete. Eles só vêm fazer promessas. (Usuário, Taiçoca, N. S. do Socorro, Sergipe)

Aqui não temos representantes. Aqui não temos fiscal. Aqui não temos uma pessoa do prefeito que a gente possa se dirigir pra fazer, pra comunicar as ocorrências. Então, quando tem necessidade de falar sobre o trabalho administrativo municipal, fica de lado, né?! Porque não existe uma pessoa que tenha, assim, autonomia pra chegar e fazer e resolver os problemas. (Usuário, Iguá, Zona rural, Vitória da Conquista, Bahia)

Com relação à participação em reuniões promovidas pelas equipes da ESF, muitos usuários atribuem a baixa representatividade da comunidade nestes eventos a um "descuido" ou "descompromisso" por parte deles. Os agentes convidam, mas a população não vai (como se verificou em Madre de Deus). Tanto nas unidades urbanas, quanto na rural, nota-se certa apatia das comunidades estudadas. Outra posição frequente assumida pelos usuários é transferir para outro, "com mais tempo", "com mais jeito para falar":

A gente fica calado [...]. Então se agente não é atendida aqui agente vai para Pindoretama, se faltar lá vai para Pratius ...se tiver ficha bem, se não tiver vamos se embora. (Usuário, Coqueiro do Alagamar, Pindoretama, Ceará)

Eu pelo menos nunca reclamei, to falando agora, eu nunca cheguei para enfermeira chefe para reclamar nada não.... mas sempre alguém fala né? (Usuário, Conjunto Industrial, Maracanaú, Ceará)

E eu não podia participar. Mesmo assim, eu fiquei como suplente [do conselho local de saúde] porque não tinha outra pessoa. E foi Iraci... na hora de falar... Iraci é ótima. Porque Iraci é velha de idade, mas é nova em espírito. Iraci é muito mais jovem do que eu... Agora mesmo, tava olhando pro relógio querendo sair, mas ela não tá nem preocupada com isso. (Usuário, Iguá, Zona rural, Vitória da Conquista, Bahia)

Em alguns casos, a "apatia" aparece como resposta ao "medo" da perda do serviço, fazendo do usuário um "usuário cativo", sem poder de escolha entre os serviços:

Aqui as pessoas parece que tem medo de falar quando surge, mas não dá nem tempo né...não sei se é porque os médicos faltam muito né?...eles vão embora, mudam muito ai não dá tempo nem de reclamar para botar outro. (Usuário, Conjunto Industrial, Maracanaú, Ceará)

Por outro lado, em diferentes momentos, os usuários relataram experiência de participação em reuniões entre as equipes da ESF e a comunidade, enfatizando a importância de terem tido a oportunidade de discutir / opinar / sugerir sobre o funcionamento do USF.

Toda vez que teve reunião eu participei. A gente pelos menos sabia, falava o queria, ouvia o que eles queriam dizer, né? (Usuário, PSF III, Madre de Deus, Bahia)

Eu acho importante estas reuniões porque eles passam a maneira deles lá de trabalhar, de fazer as coisas, mas nós passamos a maneira que a gente gostaria que fosse. (Usuário, PSF III, Madre de Deus, Bahia)

No caso de Madre de Deus, alguns usuários lamentaram o fato de que a frequência dessas reuniões ou a participação da comunidade tenha diminuído após a mudança de local da USF:

Quando era lá em cima que tinha reuniões existia sugestões tudo isto, eu participei de algumas, agora depois que mudaram desapareceu isso. (Usuário, PSF III, Madre de Deus, Bahia)

No estudo quantitativo, observamos informações complementares no entendimento de atitudes dos usuários relativas à corresponsabilidade na gestão e no cuidado na ESF. Do total de usuários dos seis municípios investigados, 60,8% declararam conhecer as normas da unidade; 52,8% declararam ser consultados sobre as visitas domiciliares das equipes, contudo, 50% declararam não conhecer o horário de trabalho dos profissionais.

Em Piratininga, nota-se um envolvimento dos médicos no fortalecimento do controle social dos usuários:

Dr. Josildo sempre procura incentivar a gente a lutar pelos direitos da gente, se [a gente] quer tirar um funcionário [que a gente] acha que não tá servindo que a gente tem que fazer abaixo-assinado e tudo, ele sempre procura passar isso pra a gente. Ali na frente tem uma caixinha onde a gente dá sugestões, mas nunca vi ninguém fazendo. (Usuário, Piratininga, Maracanaú, Ceará)

Constata-se a dificuldade de estabelecimento de uma relação que respeite a visão do usuário como sujeito de escolha e da autorresponsabilização por sua saúde. Em conformidade com os achados de Schimith e Lima (2004), são observadas situações contraditórias, que vão desde o abandono do usuário à sua própria sorte, até a sobrerresponsabilização da equipe. Como ressaltam os autores, as equipes da ESF não reconhecem, no vínculo com os usuários, uma oportunidade para promover a autonomização do usuário ou a sua participação na organização do serviço.

Não se deve esquecer que se trata de um campo onde as visões biomédicas e populares de saúde se cruzam, numa espécie de sincretismo terapêutico. Como ressalta Kleinman (1978), a maior parte dos sistemas de cuidados à saúde contém três arenas sociais, dentro das quais se experimenta e se reage à doença: o popular, o profissional e o folk. Desta forma é necessário que os profissionais de saúde mostrem-se sensíveis à diversidade de convicções e escolhas da comunidade assistida. Se, para muitos usuários, o único caminho eficaz, em caso de doença, é a consulta ao médico e a terapêutica por ele ministrada, para outros, não há conflito em conciliar alternativas caseiras com estratégias biomédicas:

Chá pra mim, de pixilinga, noz moscada, isso não funciona. Reza também não. Pra mim só Deus e tratamento médico tossiu, já estou lá, tem que ir pra médica. (Sede, Carmópolis, Sergipe)

Elas [a moça do posto e a Agente Comunitária de Saúde (ACS)] respeitam a gente. Ela mesma [a médica] mandou que eu tomasse chá.... ela aceita. (Usuário, Sede, Carmópolis, Sergipe)

O estudo evidencia que mesmo na ESF – onde se preconiza a implementação de ações de educação e promoção da saúde – ainda são lentos os avanços em termos de práticas educativas. As práticas relatadas revelam a dificuldade em romper com as abordagens autoritárias e prescritivas baseadas, ora no discurso higienista, ora no processo de imposição ao tratamento e as medidas higieno-dietéticas exigidas ou indicadas pelos protocolos clínicos.

A gente consegue entender o que os profissionais falam porque elas explicam mais de uma vez, devagar. Com educação [...] quando a Dra. Selma marcava, sempre nós vinha[...]. Pra discutir a folha de saúde da gente. O que a gente podia comer. Essas coisas [...] parar de fumar e ela (Dra. Selma) fazia caminhada... com a gente que tinha pressão alta. Nós ia pro balneário, andava mais com ela. (Usuário, Sede, Carmópolis, Sergipe)

Quando analisamos os dados quantitativos referentes ao conhecimento que os usuários detêm sobre as práticas educativas desenvolvidas pelas equipes das USF, vimos que este é bastante limitado. Na análise global dos municípios, encontramos que 62% dos usuários declararam não conhecer os grupos educativos. O percentual daqueles que declaravam desconhecer subiu para 75,6% quando a pergunta referia-se ao horário de funcionamento dos grupos.

Corresponsabilidade na gestão e no cuidado: a visão dos profissionais

De modo geral, se apreende uma grande dificuldade das equipes da ESF investigadas em reconhecer o usuário enquanto cidadão, estimulando-o, assim, a participar ativamente de processos relativos à sua saúde e da sua comunidade. Ainda que muitos enfatizem a importância de promover o engajamento da população por eles assistida, na prática não incentivam de forma mais contundente a participação social.

Alguns chegam mesmo a questionar o direito do usuário de reclamar da ESF, tendo em vista os benefícios a ele associados.

Eu acho assim porque Madre de Deus em termos de PSF é exemplo [...] temos muito benefícios, muitos benefícios mesmo, e eles reclamam muito entendeu, eles não esperam [...] ele quer uma coisa imediata, chega quer ser atendido de imediato, que passar na frente do outro, ele chega no momento da dor ele reclama, a gente vai orientar ele não quer saber. (Auxiliar de Consultório Dentário (ACD), Madre de Deus, Bahia)

Os municípios do estado do Ceará investiram no desenvolvimento de estratégias permanentes de escuta aos usuários, a exemplo das ouvidorias ou caixa de sugestões. Entretanto, estas foram sendo, progressivamente, desativadas.

Nós tínhamos aqui, mas não só aqui, mas em todas as unidades do município um sistema de ouvidoria. Nós tínhamos na unidade uma urna onde as pessoas colocavam seus questionamentos, suas reflexões, reclamações e sugestões também. Esse material era levado à secretaria e lá era aberto na auditoria e fazia um levantamento de como é que estava a unidade, mas nesses últimos meses esse sistema parou de funcionar [...] agora as reclamações são feitas diretamente a secretaria (Médico, Conjunto Industrial, Maracanaú, Ceará)

O caráter burocrático do sistema de ouvidoria, a ausência de uma cultura de formalização de queixas por parte da população, bem como a baixa utilização dos dados coletados pelas equipes foram referidos como fatores que conduziram à sua desativação. A sistemática atual, em que as queixas ou reclamações da população são remetidas diretamente à secretária ou gerente (dado comum a unidades dos outros dois estados), foi criticada pelas equipes. Os profissionais alegaram que nem sempre os gerentes ou coordenadores da ESF repassam para as equipes as questões trazidas pelos usuários em relação aos serviços ou outros problemas de saúde no território:

O coordenador [gerente], às vezes, ele mesmo resolve e não passa pra gente. Agora, importante que tivesse um maior acesso, tanto das enfermeiras como os médicos, com o coordenador pra que tudo que se passasse lá também fosse transparente pra gente. Pra gente saber realmente o que é que tá acontecendo na Unidade. (Médico, Jardim Bandeirantes, Maracanaú, Ceará)

Para os profissionais com menos tempo nas unidades, se agravam as dificuldades na mobilização de usuários e no endereçamento das suas queixas. Além disso, se evidencia aqui a necessidade de que os trabalhadores dispusessem também de espaços para expressão de suas dúvidas, problemas etc.:

Por que nunca foi passado nada para a gente [sobre não ter ouvidoria, caixa de sugestões], a gente tá muito solto, nós estamos trabalhando por amor, nós estamos trabalhando por amor, é isso que eu digo nós estamos trabalhando por amor, porque nós não temos uma coordenadora da ESF, nós não temos aquela pessoa que a gente confie contar nossa mágoa, ninguém tem ainda, por que vocês sabe? (Médico, Coqueiro do Alagamar, Pindoretama, Ceará)

Um dos fortes empecilhos a uma maior participação da comunidade, seja em atividades de planejamento ou avaliação, ou em processos ligados mais diretamente ao cuidado em saúde, consiste na dificuldade de os profissionais valorizarem o saber popular. Sobre este aspecto, foram observadas claras contradições nos depoimentos das equipes de saúde. Muitos relatos, como nos exemplos abaixo, enfatizam a necessidade de se colocar no mesmo nível dos usuários, recusando uma relação de tipo hierárquica. Entretanto, o mesmo profissional define o seu conhecimento como superior ao do usuário:

A gente fez uma vivência que foi muito interessante, a gente avaliou desenhos de crianças [...] ela e o pai, ela pequenininha e o pai grande, ela e a professora, aí porque ela se sente diminuída em relação ao pai. A gente não pode se comportar assim frente ao paciente, seja ele um paciente que esteja lhe pagando, seja do próprio SUS [...] ou do PSF. A gente tem que se colocar no mesmo nível, é claro que a gente tem um conhecimento maior, a gente vai passar este conhecimento pra ele. (Dentista, PSF III, Madre de Deus)

A equipe em geral... Tá orientando o paciente a família, o responsável, porque sempre tem aquele que é responsável pela família [...] tanto o agente comunitário na casa, como a enfermeira como a médica, todo mundo falando a mesma linguagem [...] tem este ponto positivo, todo mundo tá entendendo que o paciente também é responsável pela sua saúde. O papel da gente é orientando mesmo. (ACS, Madre de Deus, Bahia)

Ambos os depoimentos incorporam a noção de "igualdade", mas, em ultima instância, enfatizam o papel doutrinador dos profissionais. No limite, a responsabilidade do "paciente" nos processos de cuidado em saúde é traduzida pela obediência às prescrições dos especialistas, referendadas pelo conhecimento científico. Desconsidera-se, neste caso, a importância do conhecimento prático das pessoas, fruto de suas vivências e histórias de vida, bem como das crenças socialmente compartilhadas. É comum que o reconhecimento e a valorização dos saberes não-técnicos sejam entendidos como obscurantismo ou atraso; no entanto, valorizar a dignidade dessa sabedoria prática é uma tarefa e um compromisso fundamental quando se quer cuidar (Ayres, 2006).

Por outro lado, não se pode atribuir aos profissionais toda a responsabilidade da incipiência dos processos de participação social ou da apatia da comunidade diante dos problemas de saúde que afetam a coletividade. Os dados anteriores referentes à postura dos usuários corroboram as queixas das equipes da ESF de que a comunidade não responde de forma expressiva às oportunidades que lhe são oferecidas de maior integração (ou engajamento) com os serviços. A baixa frequência da população em determinadas reuniões convocadas pelas equipes da ESF foi apontada como um indicativo deste fato.

Um aspecto importante na análise da gestão participativa diz respeito ao grau de democratização existente no ambiente interno dos serviços. Em um dos grupos focais, os profissionais denunciaram o fato de que, nos municípios de pequeno porte, as questões políticas e a precariedade das formas contratuais de prestação de serviço impedem que profissionais exponham as más condições de trabalho e lutem por melhores condições, sob pena de serem destituídos de suas funções. O temor a perder o emprego é referido também como um fator inibidor de processos de mobilização social:

Olhe eu vou falar não especificamente do município que eu estou [...] mas em relação a municípios do interior de uma forma geral, creio que isso seja um problema pior nos municípios de pequeno porte... Assim devido ao nosso vinculo trabalhista, que é zero, nós não temos carteira assinada, não temos direito, podemos ser demitidos a qualquer momento sem justa causa, sem nada[...] e no interior você sabe que todo mundo sabe de tudo, você fala uma coisa hoje e amanhã já tão falando o que você falou... muitas vezes se você estimular uma ação do cidadão paciente, isso é às vezes interpretado pelo prefeito como critica né? (Médico, Coqueiro do Alagamar, Pindoretama, Ceará)

Em outro município de pequeno porte, também encontramos a alusão à ingerência política nos processo de gestão da ESF, desta feita, interferindo diretamente nos processos de avaliação realizada pelos usuários. Denuncia-se a manipulação da opinião dos usuários, vinculando os serviços municipais de saúde, incluindo as Unidades de Saúde da Família a uma determinada corrente ou grupo político no município. Tais estratégias incluem, por vezes, a veiculação de informações distorcidas sobre a USF e o trabalho das equipes.

Apesar das dificuldades assinaladas, encontramos indícios do empenho de alguns gestores e de equipes da ESF em fomentar o controle social e a participação comunitária. Na unidade de Piratininga, destaca-se o relato de uma experiência de compartilhamento com a comunidade de decisões relativas à gestão dos serviços:

Existe a participação da comunidade, por exemplo, qualquer decisão que a gente quer tomar a gente não toma só. A gente toma ouvindo a comunidade [...] eu atendo hoje hipertenso, hoje à tarde, mas se a comunidade acha que a hipertensão tem que ser de manhã [...] então, a comunidade decidiu, a gente acata, transfere, faz o horário [...] ninguém faz aqui decisão de cima para baixo não, até porque quando você acerta com o povo você vai junto com eles, se você acerta fora dele, você tá frito né? (Médico, Piratininga, Maracanaú, Ceará)

Alguns profissionais reconhecem que uma maior participação da comunidade nos processos de discussão sobre os princípios da ESF, seu funcionamento e problemas cotidianos iria contribuir para ampliar o entendimento da população sobre esta proposta. Vale notar que o entendimento incipiente da comunidade acerca das diretrizes e normas da ESF é apontado, em alguns relatos, como um fator que gera dificuldades na relação com a comunidade atendida e concebe uma responsabilização da equipes e dos usuários nos rumos da ESF:

Eu tento mostrar ao paciente que ele faz parte deste programa, faz parte do projeto, sem ele não vai adiantar nada, ter o agente explicando, ter a médica se ele não contribuir , a gente põe desta forma, mostrando que ele faz parte do meu programa, faz parte do PSF [...] todo mundo tá entendendo que o paciente também é responsável pela sua saúde. O papel da gente é orientando mesmo. (ACS, PSF III, Madre de Deus, Bahia)

Compartilhar com os usuários os problemas enfrentados pelas equipes no dia-a-dia do seu trabalho na unidade e no território pelo qual são responsáveis contribuiria para tirar o usuário de uma posição de 'demandante': alguém que espera pacientemente (ou não) que suas necessidades de saúde sejam atendidas. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer a complexidade de categorias como corresponsabilidade e participação social, especialmente em contextos sociais marcados pela desigualdade de capital cultural, econômico e político. Demo (2005) ressalta que, na avaliação da dimensão participativa, é preciso distinguir e considerar os seguintes elementos: intensidade comunitária, coesão ideológica e prática, identidade cultural, envolvimento conjunto e o clima de presença engajada. Todos estes aspectos devem ser dimensionados em processos que se destinem a promover uma participação efetiva de usuários dos serviços de saúde e da comunidade em geral.

Considerações finais

O estudo evidencia que o processo de participação social e a incorporação do princípio da corresponsabilidade no escopo da gestão e atenção na ESF é bastante incipiente. Constata-se que as ações empreendidas pela equipes de saúde da família no âmbito da participação comunitária e do controle social não incentivam à autonomia ou protagonismo dos sujeitos nos processos relacionados com a gestão ou o cuidado em saúde. O cenário encontrado distancia-se, assim, de um projeto pautado no reconhecimento de singularidades e direitos referidos a pessoas e sujeitos (Deslandes, 2005) e na construção da responsabilização mútua de trabalhadores de saúde e usuários na produção de saúde (Ayres, 2006; Benevides, Passos 2005a).

Contata-se que muitos usuários mantêm uma atitude de gratidão pelos serviços prestados ou de passividade diante dos problemas encontrados. Por outro lado, a despeito de uma aparente despolitização dos usuários, nota-se o interesse da comunidade na resolução dos problemas de saúde locais e na melhoria da unidade.

Os dados reforçam a tese de que a participação comunitária, um dos princípios destacados do SUS, não se garante apenas pelas conquistas obtidas no plano legal, é preciso que ela se expresse na prática cotidiana dos serviços de saúde (Cohn, 2000; Côrtes, 2000). Para avançar na efetivação da pretendida corresponsabilidade na gestão e no cuidado, seria recomendável apostar na implementação dos seguintes dispositivos propostos pela PNH: a ampliação do diálogo entre os trabalhadores, entre os trabalhadores e a população, e entre os trabalhadores e a administração, promovendo a gestão participativa, colegiada, e a gestão compartilhada dos cuidados/atenção; a implementação de sistemas e mecanismos de comunicação e informação que promovam o desenvolvimento, a autonomia e o protagonismo das equipes e da população, ampliando o compromisso social e a corresponsabilização de todos os envolvidos no processo de produção da saúde (Brasil, 2006).

Colaboradores

Leny Alves Bomfim Trad coordenou o estudo, participou de todas as etapas da pesquisa e da redação do artigo, sendo responsável pela definição do seu escopo, redação do seu núcleo básico e pela revisão geral da versão final do manuscrito. Monique Azevedo Esperidião coordenou o trabalho de campo no estado do Ceará, participou de todas as etapas da pesquisa e da redação do artigo e dividiu com a primeira autora a responsabilidade na revisão da versão final do manuscrito.

Recebido em 02/12/08. Aprovado em 12/05/09.

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    Artigo inédito, resultado de Pesquisa sobre Humanização no PSF, financiada pelo CNPq, edital 37/2004. A pesquisa não apresenta conflitos de interesses e o projeto base foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, registro 023-06/CEP-ISC/UFBA.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      2009

    Histórico

    • Aceito
      12 Maio 2009
    • Recebido
      02 Dez 2008
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